segunda-feira, fevereiro 18, 2008

No dia seguinte

Eu penso muito nisto, e não fiques já com essa cara, com medo do que aí vem, porque eu sou absolutamente inofensiva; já fiz mal às formigas, mas apenas porque elas não se foram embora da bancada de mármore da cozinha após demoradas conversações, e depois de esgotada toda a diplomacia, ainda esperei três dias, mas em abono da verdade, e em minha defesa - raras vezes, como esta, eu saio em defesa do meu bom carácter -, que fique registado que nunca toquei numa mosca, apesar de descender de uma família de caçadores de varejeiras.

E por isso, talvez por isso mas daí talvez não, porque a minha mãe não é do lado da família que apanha moscas qualquer uma das mãos e até de olhos fechados, ela por vezes até me diz que me falta espinha dorsal, e que não me corre sangue nas veias, porque não quero sentir ódio ou amargura porque são sentimentos que me queimam, porque quase sempre ofereço a outra face, porque me vergo, porque não enfrento o touro pelos cornos, porque levo esta vida sem subir montanhas, e o problema, o único problema é que eu penso em tudo, sobre a mais insignificante merda que se me atravessa no caminho.

A toda a hora, e não é pêra doce, não é fácil ser eu a toda a hora, e às vezes lembro-me da Tiju a confidenciar-me na assoalhada que fica imediatamente em baixo da outra onde, em tempos tão mais felizes, fazia biscoitos em forma de estrela com a minha avó - os móveis da cozinha eram laranja mas não consigo refazer a copa, tinha uma predilecção pelo armário dos tupperwares que cheirava a plástico velho, mas não consigo ver nada na copa além do sorriso e dos lábios finos da minha avó; e sei que era lá que batíamos nos tachos à janela, quando o ano velho se despedia, mas não me lembro de que cor era a copa onde fazia biscoitos e bebia copos de água com pastilhas de Cecrisina -, a Tiju a dizer-me que o meu pai em tempos lhe disse isso mesmo: que não era fácil ser ele, que por vezes, nem ele tinha paciência para si próprio. E assim, eu tenho a certeza que sou mesmo filha do meu pai, que quem sai aos seus não é de Genebra, ou como raio é o provérbio.

Mas, descansa, eu não penso mais em ti do que penso em tudo o resto, não mais do que nas mãos da minha mãe, que estão cada vez mais torcidas como um tronco de uma árvore bonsai, não menos que nos resultados do banco de amanhã, ou nas cores dos azulejos da casa-de-banho nova que não sai do papel, e quase o mesmo do que no buço que só eu vejo reflectido do outro lado do espelho, nos olhos azuis costureira mongol que vive aos pés de Santa Marta, ou na peruca loura e despenteada da vizinha que todas as noites desce ao Andaluz para jantar com o marido gigante sempre com chapéus ascottianos enfiados na cabeça.

Mas penso muitas vezes nisto – se ao menos eu tivesse nascido no dia seguinte, naquele que vem depois da capicua 22, talvez fosse mais parecida contigo, talvez nunca reparasse no buço que mais ninguém vê, talvez eu não comesse bolachas de chocolate para esquecer todas as frustrações, muito provavelmente eu não duvidaria que sou mais inteligente do que toda a gente que me rodeia; eu podia reinar, como tu, talvez se eu tivesse nascido no dia seguinte, talvez eu escrevesse o tal livro que toda a gente me pede, se eu tivesse nascido um dia depois era leão como tu; eu penso muitas vezes nisto, que gostava de ser como tu.

E toda a gente me fala mal de ti, leãozinho, que és um predador, um mercenário, que não olhas para trás nunca, que traças o teu destino a tira-linhas todos os dias, e que arrasas quem quer que seja que te faça desviar do plano original; que te gabas do teu sucesso, que em tempos destruíste a minha reputação – como se eu tivesse alguma -, toda a gente me diz tem cuidado, que um dia tu me vais magoar, que não tens nada de santo, que és feito de pau oco, que és incapaz de amar; ninguém percebe porque gosto tanto de ti, e mesmo assim, eu oiço todos os argumentos, entra por um ouvido e sai por outro, e eu continuo a gostar de ti, a admirar-te de muito longe, e penso muito nisto, que, se ao menos eu tivesse nascido no dia 23, talvez fosse um bocadinho mais parecida contigo.

Vejamos se nos entendemos e se eu vou directa ao assunto. Eu nunca serei porra nenhuma, só vou ser dona do meu nariz empinado, eu nunca vou ser nada, não vou escrever o tal livro, já não sei se ninguém me respeita apenas porque tenho um par de mamas, não é fácil ser eu própria, não é mesmo, questiono cada centímetro do meu corpo, cada gesto impensado; pode até não parecer, mas meço todas as palavras, não é nada fácil, por vezes também me canso de mim, porque choro demasiadas vezes atrás do portátil, porque carrego o luto por todas as coisinhas que cirandam na minha cabeça que têm que me abandonar, porque é assim a vida, mas, talvez, nunca se sabe, se eu tivesse nascido no dia seguinte, eu se calhar ia mais longe, e se assim tivesse sido, eu queria ser como tu.

Agora falo menos, falo menos e rio menos, porque é melhor estar calada do que apenas falar sobre mim; no fundo, eu nasci um dia antes e, por isso, estou fechada sobre mim, e eu também penso tanto nisto, nem mais nem menos do que em todas as outras coisas juntas que andam aos saltos dentro da minha cabeça, quantas vezes estivemos juntos, se juntássemos todos os bocadinhos, ao longo de todos estes anos, quantas horas estivemos juntos, nem um dia estivemos juntos, e eu deposito quase tudo no amor que tu também me tens.

A história é esta. Simples. A do dia seguinte.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Quando é que se abre a porta aberta?

As portas estão todas fechadas, estão sempre fechadas, e quando as encontramos de outra forma, se é que as encontramos de outra forma (as portas não nasceram para estar abertas), estão escancaradas, em deboche; as portas são estridentes, elas nunca se entreabrem de soslaio, as portas nunca deixam ver o que está do outro lado por uma nesga,

(essa é a função das fechaduras, as fechaduras só existem para podermos espreitar o que está para lá da porta)

não há meio termo, nunca há meio termo, porque ensinaram-nos isto, de pequeninos - fecha a porta atrás de ti, não te esqueças de dar três voltas à chave, e não abras a porta a estranhos, nunca abras a porta.

E então, se é assim, se é sempre assim, quando é que se abre a porta aberta?


As portas estão sempre fechadas, nem que seja só no trinco, é simples o seu destino, as portas só existem enquanto portas porque devem estar fechadas, cumprem pena pesada, voto de clausura, por um pecado qualquer, por uma promessa qualquer, por um segredo qualquer, por vezes, não guardam nada, não escondem nada, mas, mesmo assim, têm que estar fechadas, com correntes, prisioneiras de aloquetes para os quais nunca foi feita nenhuma chave da salvação.

Ensinam-nos isto, que quem anda à chuva molha-se, que quem brinca com o fogo faz xixi na cama, e que as portas estão sempre fechadas, têm que estar fechadas.

E então, se é assim, se sempre foi assim, quem é que se lembra de abrir a porta aberta?


E talvez sejamos as únicas pessoas desta cidade que puderam acreditar que a porta estava encostada, apenas encostada, fomos os únicos que nos lembrámos de abrir a porta aberta – porque raio, desta vez, não levámos o pé-de-cabra, porque raio não trouxemos o alicate, o escopro e o martelo?

(E já pensaste quantos pares de pés passaram pela porta aberta antes de nós?)

E quem resisitiria a espreitar, quem não teria entrado também se ela tivesse deixado antever o que estava para lá de si - lá dentro já esperávamos a penumbra, a porta nem sempre fecha todos os segredos; lá dentro, sentia-se cá de fora, nem precisava de estar aberta para o sabermos, para adivinharmos o cheiro, uma mistura de velho com penas de pombo e pó, cá de fora eu ainda descortinava o cheiro da cera de abelha, do chão e das tralhas esquecidas -, mas quem, se não nós, se lembraria de apenas encostar a palma da mão à porta e, sem palavra mágica, sem impressão digital – todos os dias, o meu dedo abre uma porta -, ainda bem que eu acreditei que conseguia abrir a porta aberta, e que fui à frente, sem medo, e que depois pude olhar para trás, e sorrir, e dizer-vos:

Já está. A porta está aberta.


Eu juro-te, muita coisa mudou desde o último dia do ano, quando tu ficaste atrás de uma porta que eu não vou conseguir abrir apenas com a força que se acumula na ponta dos meus dedos; outros milhares de pares de pés passaram pela porta aberta, depois de lhe termos descoberto o segredo.

Sabes,

(a Carolina começa todas as frases assim, como eu, sabes?)

O meu cão desapareceu no início do ano, não volta mais, o Pax morreu e eu ainda não consegui chorar pela falta que ele me faz.

A D. Ilda morreu e eu fui a única a escrever no livro de condolências da Servilusa, eu fui a única a chorar, a chorar como uma criança, a chorar como quando ela me consolava na sala do papel de parede almiscarado (o Valter e a Teresa a falarem dos seus gatos, preocupados com os gatos, que estavam sozinhos há muito tempo, e eu a chorar ao lado do caixão da D. Ilda, e ainda bem que a D. Ilda me deu, era eu tão pequena, o vestido de princesa cor-de-rosa; a Teresa já nem se lembrava dele, eu escrevi sobre o vestido de princesa cor-de-rosa no livro de condolêncioas da Servilusa, mas cada um com o seu talento, a Teresa distingue o miado do gato persa em qualquer lado do mundo; a Teresa chorou pelo gato mas não pela D. Ilda, e eu não chorei ainda pelo Pax).

E o meu pai voltou-me a morrer outra vez, a semana passada, o meu pai voltou a morrer, quem é que podia acreditar - é tal e qual como a história da porta aberta, quantos pares de pés passaram por ela e só viram uma porta fechada, igual a tantas outras - que dois pintores partilhavam o mesmo estranho apelido e nem sem sequer eram parentes; o meu pai voltou-me a morrer esta semana, e eu ainda não fui ver o meu avô, não voltei às Finanças do Barreiro para entregar nova declaração do modelo 1 do IMI, nem passei os recibos do condomínio (ou marquei a reunião ordinária).

E todos os dias, todos, todos os dias, desde o último dia do ano, eu lembro-me de ti,eu lembro-me de ti, lembrei-me de ti,

(sabes, eu nunca me vou esquecer de ti)

sobretudo quando abri a porta aberta.


[post 777]