quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Queixume

Nem uma licitação. Nem uma para amostra.
Não há direito: um puto norte-americano [não é norte-americano; é britânico, corrigiu-me agora o famoso senhor Vring] cria um site, com um nome bem esgalhado é certo, milion dolar site [milion dolar page, diz o holandês voador], e, num instantinho, fica com a conta recheada com um milhão de notas verdes e com a fuça borbulhenta estampada no papel de péssima qualidade da imprensa mundial.
Eu já estava a imaginar-me como o novo fenómeno do Entroncamento, eu sempre tive ideias malucas, pensei que esta ia pegar, a Necessidade (uma mocita trigueira com as bochechas rosadas, que é da família da outra velha chata que não me larga, a Prudência) é a mãe do Engenho (e esse é o miúdo promissor da humilde família, aos 35 anos vai lançar uma OPA hostil à Sonaecom), eu até pensei que o meu avô Oliveira se ia orgulhar desta minha ideia peregrina, aos oito anos, agarrei numa lista telefónica velha e num caixote de nozes e anunciei-lhe que ia vender cartuchos de nozes para a Estados Unidos da América e ele deu-me uma festinha na cabeça, e deitou por terra o meu espírito empreendedor; eu já não era certa na altura, nesse dia, eu telefonei à Magui a chorar, telefonei do telefone preto, propriedade dos TLP que tinha uma rodinha e fazia trimmmm, número 898288, eu liguei à Magui em hora do expediente, porque o meu avô Oliveira não me deixou ir vender nozes para a avenida, e eu queria vender nozes porque precisava de uns ténis no dia seguinte, porque ia haver uma aula de ginástica e a professora mandou vir toda a gente de ténis e eu não tinha nenhuns, eu sofria por isso, pela vergonha de não ter ténis, eu sabia que a Magui não tinha dinheiro para os pagar, ganhava trinta contos e o meu colégio era vinte e muitos (isto foi há vinte anos e, na altura 150 euros, trinta contos, não dava para sustentar uma criança), eu disse também à Magui que a criada Isabel me queria envenenar, eu ainda hoje não estou muito certa que não fosse esse o propósito de me servir bifanas com a embalagem da mostarda fora de prazo, disse-lhe que estava muito infeliz e que queria morrer, foi a minha primeira manifestação de tendências suicidas, as minhas avós tinham morrido e o meu avô Oliveira não dizia coisa com coisa, estava órfã, tinha tantas saudades da avó Tóia, eu sei que fui sincera, eu queria mesmo morrer, eu gostava dos dias de chuva porque na minha cabeça a avó Zá e a avó Tóia estavam a lavar as suas nuvens, e a Magui veio a correr dos Armazéns da Matinha, apanhou o 50 até à Rotunda do Relógio, depois o 44 até à Rio de Janeiro, e fomos comprar uns ténis, eram fucsia, comprámo-los na defunta sapataria Angolana, na rua Palmeirim, atrás do Mercado de Alvalade Norte, eu lembro-me de tanta coisa, há quem nasça com esta sina, de ser um mero depósito de memórias, penso muito nisto: será que daqui a vinte anos eu ainda me lembro de tudo isto? Será que me lembro dos Balenciaga que comprei no Corte Inglés?
Eu achava que esta era uma ideia de um milhão de euros, eu escreveria por um euro, sim, fodem-me um juízo para eu escrever um livro, e assim talvez fizesse sentido, por necessidade, foi sempre assim na minha vida, só fiz alguma coisa por necessidade e eu já estava a imaginar a minha cunhada a entrevistar-me, a foto tinha que ser da minha irmã de nome, uma breve no Boing Boing, talvez, site mais geek à face da terra, eu achei mesmo que era uma boa ideia.
Uma gaja oferece contos a um euro, vende a alma ao Diabo por um euro, e nem um, nem um dos fervorosos leitores da [T]ralha é suficientemente corajoso para tirar uma moedinha, a mesma moeda que dá, sem pensar, maquinalmente, todos os dias ao carocho que arranja um buraco de estacionamento ao pé do escritório, nenhum desata os cordões à bolsa para ver o jogo, já nem digo subir a parada, apenas pagar para ver o jogo, não se fazem mecenas como antigamente, não há Medicis em Portugal, mas, também, para quê? A gaja já escreve lençóis de borla, e quando eu receber, em Oslo, o Nobel da Literatura vão se arrepender de ter deixado passar esta oportunidade em branco. Vão, vão.

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