Dicionário
1 Lus. Fig. Falhar, fracassar; arruinar-se.
1 Em dificuldade.
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Numa consulta bianual de rotina, na linha de montagem de uma salinha minúscula de uma oftalmologista indiferenciada, num hospital privado qualquer nos subúrbios da cidade, a médica não perdeu mais que três minutos a espreitar por uma lente potente os meus olhos, emoldurados por gigantescas pestanas encaracoladas.
Congratulou-se pela acuidade de ave-de-rapina que ainda traziam mais de três décadas depois de se terem expandido pela primeira vez com a claridade de um dia capicua de Julho, espantou-se depois, por breves instantes, com os mil cristais que existem nos olhos azuis da minha filha que lhe transmutam a cor com recurso a toda a paleta do arco-íris conforme os seus estados de alma.
Voltou aos meus, castanhos da cor do mogno, iguais a tantos outros que haviam passado por ali desde o início da manhã, e deixou o alerta para a vigilância apertada em relação ao sinal de sangue que se colou à íris do meu olho, como um apêndice, há tantos anos como aqueles que trago em mim, desde aquele dia do calendário gregoriano em que um dois se colou a outro dois num ido sétimo mês. E garantiu que, fosse esse o meu desejo, um mero procedimento em ambulatório restituiria a candura ao globo ocular do meu olho direito, como uma borracha humedecida pela ponta da língua.
Poderia ter dito à médica indiferenciada, no hospital privado qualquer do subúrbio da cidade, que partilho o sinal de sangue com a mulher de quem herdei o formato e a cor dos meus olhos, o sobrolho levantado em sinal de quem não está a gostar do rumo da conversa, o olhar grave e por vezes distante, o beicinho proeminente de quem tem sempre alguma coisa a dizer sobre todo e qualquer assunto, o corpo obscenamente arredondado em forma de pêra, o fascínio por coisas brilhantes e bonitas, e, provavelmente, sem lhe chegar aos calcanhares, qualquer coisa da genialidade desse ser maior, de seu nome Isaura.
Poderia ter posto mais achas à fábula e dizer-lhe que apesar de ter nascido sessenta anos depois de Isaura uma coisa incrível aconteceu entre avó e neta, porque eu trouxe em mim o mesmo sinal que ela tinha tatuado no olho direito.
E a história ganharia contornos sobrenaturais quando eu desvendasse que Isaura não nascera assim, como eu, que só se vira marcada de sangue por ter picado o globo alvo, branco como a mistura de todas as cores, nos anos 30, numa roseira no jardim de uma casa senhorial do Barreiro que o seu pai, António, teimara que um dia havia de oferecer à mãe quando veio para junto do Tejo secar bacalhau sob o olhar atento dos golfinhos que ali animavam a paisagem. Ou assim me contaram – se calhar é lenda, foi história inventada para eu poder agora estar a escrevê-la sem detalhes. A do espinho, da roseira, da Quinta das Canas, a praia de Copacabana no Barreiro.
Mas herdei também o tom teatral do meu pai, que hoje não está comigo, apesar de fazer 59 anos. E que está aqui comigo, neste momento, ao meu lado.
Disse: é natural que o sinal ali esteja e que seja, passo a redundância um sinal de tudo o que havia de se passar na minha vida. Lamento, mas não há fogo algum que o queime, não há feixe de luz que o apague por magia.
Ele está ali, no sítio onde está, nem mais abaixo, nem mais para um lado ou para o outro, para que todos os dias eu me lembre que já vi demasiado, que eu nasci porque havia de ter que ver tudo de bom e tudo de mau.
Riu-se. Tem nome a patologia. Está descrita, disse a médica indiferenciada no hospital privado qualquer no subúrbio da cidade. Tem tratamento, acredite, o laser de que falei. É muito simples, indolor, caso queira podemos marcar ainda esta semana.
Pois fique com a sua, e eu fico com o humor vítreo do meu olho direito intacto, e com a certeza de que tenho um sinal de sangue porque já vi demasiado. Talvez mais do que poderia aguentar. Por vezes, sinto que foi mais do que eu podia aguentar sem ter que viver com os dias com o reflexo do espelho a lembrar-me, no olho direito, que descaiu um pouco face ao esquerdo, que já vi demais.
Seguramente, vi mais do que a maioria se poderá gabar de ter visto a vida inteira. Vi tudo aquilo que me estava destinado. Nada mais, nada menos. E não vai parar por aqui, sei-o bem.
Por vezes, senti-me a cegar da brutalidade das coisas que já vi.
À noite, quando tenho os olhos bem fechados, e consigo até distinguir do zumbido agudo do silêncio o lamento do frigorífico na outra ponta da casa, por vezes volto a ver o que nunca devia ter visto. O que gostava de não ter visto, e que me ensanguentou a vista como uma ferida aberta que não sara.
Mas há também o clarão de beleza de tudo o que já me foi dado a ver. Por estes olhos.
Mas eu já vi demais. Lamento tantas vezes o meu fado.
E o sinal de sangue sempre ali, uma pinta encarnada perfeita fundindo-se com o castanho do meu olho direito, a lembrar-me todos os dias aquilo, tudo, que já vi. Como uma tatuagem.
Sou constantemente perseguida por sequências de 16 a 24 fotogramas por minuto (quantos fotogramas haverá num sonho a dormir e quantos há num sonho acordado?). E se acordo a gritar pela minha mãe – e é sempre pelo nome das mães que chamamos num momento de maior aflição –, a meio da noite, torcida no sofá, é porque, até de olhos fechados, eu vejo mais do que devia e queria. Porque eu vejo até o que não me foi dado a ver, e o que me foi deliberadamente ocultado por ingénua protecção. Como um superpoder, um dom que vira maldição.
Eu vi um revólver Smith & Wesson, calibre 38, o S enrolado no W, à cabeceira de um octogenário. Vi tudo por detrás da porta e, por vezes, vejo tudo sempre a mesma, atrás da cortina de voile branco, que afasto com a mão, como quem espreita pelo buraco da fechadura. E de todas as vezes que o vejo, falho sempre, e não consigo impedir o disparo. E acordo a gritar pela minha mãe.
Agora, mais recentemente, vejo, dia sim, dia não, árvores mortas e um mato de ervas daninhas, ruínas assombradas e um lago cheio de peixes cor-de-laranja mortos, a boiar, num recanto onde os golfões de água não chegaram a cobrir as águas – que vêem tanto como eu – de vergonha.
Antes disso, vi o meu corpo a expulsar um filho tão amado, tão desejado, na casa de banho imunda de um qualquer hospital privado, este não no subúrbio mas sim no centro da cidade, e vi também a cegueira dos olhos brancos de um qualquer obstetra indiferenciado, quando lhe mostrei, desesperada, um papel ensanguentado com o meu filho morto, e soube que ele não veio, nem virá a ser marcado com um sinal de sangue no olho direito.
Sorte dele, mas não me venham dizer que há uma máquina que apaga a marca de sangue que vive e cresce no meu olho direito.
Sexta-feira faço 33 anos, a capicua perfeita e que só será superada pelos 77, que não sei se chegarei a ver nesta terra (há cláusulas escondidas e escritas a tinta invisível a quem é dado tudo a ver por apenas dois olhos; e é bom que me habitue às regras do jogo, que podem, a qualquer altura do caminho, ser alteradas).
Vi o meu corpo expandir-se até quase aos cem quilos, carregando no ventre estriado os meus dois filhos – e eles são a coisa mais bonita que eu já vi nesta vida. Da primeira vez que os vi, a ambos, os meus olhos – podia jurar que assim foi – não suportaram tanta beleza e choraram as lágrimas mais felizes.
Vi-me humilhada, enxovalhada, vi pérolas deitadas a porcos imundos. Vi um destino fabuloso a escorregar-me, como pau ensebado, à frente de uma vista cansada e marcada de sangue que já viu demasiado.
Vi a minha mãe envelhecer ao meu lado, vi-a vergar-se como um bonsai perante a adversidade – árvore que verga não parte, assim me contou ela, e é por isso que partilhamos o amor por quem morre sempre de pé. E por quem larga raízes fundas por onde passa.
E vi como ela me defende dos demónios que nunca supôs que se atravessassem à minha frente, protegendo-me sempre, primeiro a mim e depois aos meus, dos grandes estrondos que rebentam a distâncias demasiado próximas de nós, soltando estilhaços afiados. E ela, colocando-se sempre à frente do estoiro, com o seu escudo de guerreira celta, de olhos muito azuis já turvos, de quem viu também mais do que uma vida podia ver, testa enorme, e molares pronunciados.
E aprendi como se faz, como ela faz, porque ninguém faz como ela, porque um dia terei que fazer de embondeiro como ela sempre fez por mim, desafiando os deuses e levando os filhos em segurança ao céu, ou onde eles quisessem ir. Se for preciso, até ao Inferno. Como ela fez, como ela faz sempre que o infortúnio se atravessa à minha frente.
E dando-me depois a mão, sempre ao meu lado, cantando comigo sem vergonha para quem quiser ouvir, quando caminhamos juntas até às portas do paraíso. E já lá estivemos bem perto, tão, tão perto.
Vi-me envelhecer, os fios longos de cabelo tingirem-se de branco e quebrarem-se pequenas rachas na porcelana outrora fina do meu rosto. Eu vejo tudo, tudo mesmo. Pressinto o nascimento das flores e vejo-as brotar a cada segundo que passa. Vejo diariamente as minhas mãos a deformarem-se mais um pouco numa precoce herança de doença óssea da família beirã, desconfiando que já é tarde para aprender a tocar piano.
E, todas as manhãs, vejo através do amor o que há de mais belo nesta passagem. E o sinal do meu olho direito também está lá para me lembrar.
Acordo a contragosto, muitas vezes depois de ir atrasando a hora, em intervalos de cinco em cinco minutos, e fico ali parada, o sol a cegar, da janela, imagino os melros e os pintassilgos que não vivem lá fora e fico a olhar para o grande amor da minha vida.
O gato Pi geralmente vai-me mordiscando a mão que lhe afaga a cabeça, e o João, a dormir como um anjo, do lado direito da minha cama, sempre colado a mim, como o meu sinal de sangue.
Eu já vi demasiado, bem sei.
Mas o melhor ainda está para vir.
Posted by Dia at 10:21 da tarde 8 comments
Um dia acordas e estás sem palavras, esgotaram-se as histórias e os teus sonhos não começam mais por era uma vez.
Mesmo assim, continuas a gastá-las todos os dias, saem-te da boca para fora, só que agora já não brincas com elas, não as vês como um gigante puzzle ou quebra-cabeça que vais conseguir dobrar porque és brilhante, porque sempre conseguiste ordenar o caos e dele fazer qualquer coisa dolorosamente bela. Agora, garantes serviços mínimos, e usas as tuas palavras apenas para vender empresas e produtos, e nem tudo é mau, talvez nem tudo esteja perdido, porque ainda as consegues usar diariamente – antes, elas é que te usavam a ti, aí reside a grande diferença –, e convences sempre, aqui e além, alguém um pouco mais distraído, que é mesmo assim como estás para aí a dizer (nunca é) porque tens que ganhar um salário, para pagar as tuas contas, para dar o melhor aos teus filhos.
(estás tão crescida, nunca achei que te saísses tão bem, apesar dos pesares)
Da tua garganta continua a sair voz, e continuará sempre - mais ou menos sibilante, mais ou menos estridente ou exaltada -, apesar de há muito que dessa voz não saia música. Nada. Silêncio absoluto, apesar de a voz continuar lá e de as palavras também permanecerem por lá guardadas não sei onde.
O processo é idêntico, pensas, enquanto fazes apostas sobre o que virá a seguir – as letras amontoaram-se em palavras e antes de as palavras te terem chegado num momento da maior aflição e, portanto, da maior clarividência, eram as notas, soltas, que teimavam em juntar-se à revelia e faziam comícios mesmo quando estavas de lábios cerrados.
Um dia acordas e não queres mais cantar.
Muitos dias depois, acordas e não queres mais escrever.
Por muitas voltas que dês, é assim que se processa contigo. Todos os dias, sem excepção, matutas nisto – que houve uma voz que, primeiro, te sussurrava cantigas, que, depois, evoluiu para as lenga-lengas, e mais tarde que te ditava contos. E que há muito tempo que não ouves vozes, que a voz (foi sempre a mesma) se calou para sempre, partiu e não há-de voltar.
E a ideia vai ganhando cada vez mais sentido, vai-se pondo cada mais a jeito, avançando um pouco mais junto ao precipício para onde há-de inevitavelmente cair – que não vais mais escrever tal como nunca mais cantaste. E que alguma coisa há-de surgir entretanto. Talvez.
Enquanto esperas fazes renda. E usas as palavras apenas para ganhar a vida. Ainda ordenas o caos, mas sem a mestria de antigamente.
E faz-se silêncio, os maxilares cerram-se por vezes com tanta força que, quando é hora de dizer vamos jantar, vamos vestir, vamos sair, até estalam junto à orelha por se terem desabituado de estar noutro estado que não o de sentinela.
Mas faz-se silêncio absoluto, porque assim talvez oiças alguma coisa a chegar.
Alguns suspiram de alívio e alvitram que estás mais sã, com os pés assentes na terra. Já não és nova. Tens o cabelo coberto de fios brancos. Há linhas que percorrem os teus olhos, o canto dos teus lábios. É tempo, portanto, de deixar ouvir vozes fantásticas que te ditam coisas, que te ensinam canções. Há contas para pagar. Há impostos a declarar. Há filhos que dependem de ti para tudo – sobretudo para dormir serenamente, com a respiração pesada, num quarto forrado com papel de parede pintado por anjos.
E não há sequer um pesar, um lamento, um choro miudinho enquanto molhas o cabelo no duche e, se calhar, também isso acabou, se calhar nunca mais vais chorar enquanto molhas o cabelo que já cobre todas as tuas costas.
Um dia acordaste e simplesmente não conseguias mais escrever.
Posted by Dia at 4:58 da tarde 4 comments
Sinto muito a sua dor, começou por dizer o inspector através da ligação de telemóvel que atravessou o rio, que galgou a Baixa Pombalina, e que desceu as escadinhas do metro, abalroou a multidão até às profundezas do cais de embarque.
Eu espero que não a sinta mesmo, que seja apenas uma frase de circunstância, Inspector. Desculpe-me se o ofendo, agradeço-lhe de qualquer forma, mas livro-o desse fardo, de querer sentir a minha dor.
É que eu venho trabalhar todos os dias, eu obrigo-me todos os dias a vir trabalhar.
E fico pacientemente à espera da terceira porta da primeira carruagem no átrio do Intendente, sentido Cais do Sodré, bem atrás da linha amarela de segurança. E eu não sou a mesma desde aquele dia, eu temo nunca mais vir a ser a mesma.
Eu fico atrás da linha amarela e penso no dia em que alguém se vai atirar à linha mesmo à minha frente, estou sempre a pensar nesse dia, imagino o som do embate, os travões da carruagem a chiarem, e no silêncio que se vai fazer depois.
Eu agora sei que se faz silêncio, como se uma bomba tivesse estoirado mesmo ao nosso lado e só se conseguisse ouvir um zumbido agudo, apesar de as bocas se abrirem para soltar o grito, eu sei que só se ouve silêncio, no máximo só se ouve um zumbido.
Eu não sei quando esse dia vai chegar, se vai ser do outro lado do cais, se vai ser à minha frente ou um pouco mais distante, tanto faz, porque eu já vi esse dia acontecer à frente dos meus olhos; esse dia acontece todos os dias à frente dos meus olhos.
Eu posso tê-los fechados, eu posso tentar entreter-me, tapar os olhos com as mãos em concha, ou esfregá-los para me livrar dessa imagem, ler o jornal, olhar para as feições das pessoas sentadas ao meu lado, por isso, acredite, inspector, não queira sentir a minha dor, porque se eu não trago o meu crochet que me anestesia, e se por algum acaso a minha mãe não consegue atender-me o telefone quando estou bem atrás da linha amarela de segurança, tudo recomeça de novo à frente dos meus olhos, e eu volto àquele dia, eu estou sempre a voltar àquele dia.
E naquele dia fez-se silêncio, e um breve zumbido talvez, e depois, curioso, uma única nota, eu que oiço música na minha cabeça, eu que tenho uma orquestra inteira cá dentro, e só há pouco tempo percebi que nem toda a gente tem música na cabeça, mas naquele dia, e durante tantos outros que se seguiram, eu só ouvi um dó, só um dó, martelou durante tanto tempo, só um dó, durante tantas semanas apenas um dó, e foi a primeira vez que eu não tive uma orquestra na minha cabeça, diga-me, por isso, que não sente a minha dor.
Eu continuo a fazer piadas parvas, inspector, eu continuo a fingir que a minha pele é de couro grosso, inquebrável, mas eu assino o meu nome sempre com um travo a sangue, inspector, eu estou espalhada pelo chão, em pequenos estilhaços, e não quero que ninguém se atreva a apanhá-los, eu não quero que os meus filhos me vejam, que o meu marido me abrace, porque fui eu que os arrastei a todos para uma casa assombrada; eu temo não por mim, mas por eles, temo para onde os vou arrastar da próxima vez, e eu lamento ter que o arrastar também a si.
Eu fui à lista telefónica. É coisa dos tempos de jornalista ainda, parece que não perco os tiques de jornalista nunca, que isso também nunca vai passar. Nada de Internet, nas Páginas Amarelas há mesmo de tudo, passeamos o indicador de cima para baixo e há notícias a cada folhinha com a gramagem de papel de Bíblia. Disquei o seu número, sem qualquer esperança, eu disquei o seu número como quem disca uma linha de apoio ou de valor acrescentado à procura de consolo ou ajuda.
Nunca esperei que me ligasse de volta. E agora não sei bem o que pretendo de si. Não esperava que me ligasse e agora estou no metro, e essa é a fase mais difícil do dia, quando estou no metro, recomeça tudo outra vez.
Minto. Eu sei o que quero de si. Queria que me dissesse o que sabe, Inspector, que me inventasse uma história, de tantas que já viu, de tantas que foi obrigado a ver. Eu não estava lá, e preciso que me diga o que viu, Inspector, que me leia os seus relatórios em voz alta, provavelmente quero que me mostre as fotos e o processo inteiro. Talvez assim eu consiga acordar todos os dias sem ter a cama coberta de pólvora.
Eu sonho todos os dias com aquela manhã, inspector, como se tivesse estado atrás da porta, ou do voile transparente das cortinas a assistir a tudo. Vejo todos os detalhes, a moldura e a foto da minha filha recém-nascida ao colo do tio, o candelabro com os anjinhos e a vela vermelha, as gravuras das aves em cima da cabeceira, o retrato da minha avó ao lado da janela, a bandeira da Suíça e a chaminé do Barreiro a assistirem a tudo e, tal como eu, sem poderem soltar um grito, pedir socorro.
E pergunto-me também se a cama estaria feita com os lençóis às florinhas que eu tanto gostava, a última vez que eu fui ao quarto fiz a cama com os lençóis às florinhas.
O inspector ficou em silêncio. A este ponto, a carruagem seguia dentro do túnel e guinchava talvez em protesto pelo pedido que havia sido feito.
Eu não posso ajudá-la, disse. Lamento, não posso mesmo, ninguém saberá nunca o que se passou, não consigo ajudá-la, perdoe, mas é sempre assim, levo demasiados anos nesta profissão para saber que é assim, não é possível saber exactamente o que se passou.
A cabeceira da cama sabe.
O retrato da senhora morena pendurado ao lado da janela sabe.
Ninguém mais saberá.
É tão triste quanto isto, ninguém saberá, e eu fiz o meu trabalho, fi-lo bem, acredite, mas as coisas são mesmo assim - não seria justo dizer-lhe o contrário.
E a sua cabeça há-de voltar a ouvir música, acredito que sim, é apenas uma questão de tempo, talvez não seja já amanhã, mas há-de voltar a ouvir música, talvez ao início um pouco fora de tom, talvez não consiga a afinação perfeita nunca mais, mas, juro-lhe, à medida que o tempo passa torna-se quase suportável, há-de voltar a ouvir música, isso lhe garanto.
E desculpe-me que o volte a dizer. Mas sinto muito a sua dor.
Posted by Dia at 12:16 da tarde 3 comments
Com os olhos esbugalhados, parados na manete das mudanças, quem sabe se tentando hipnotizá-la, o fiscalista, espalmado de perfil como um egípcio, pele enrugada e borrifada de manchas castanhas, longos pelos cinzentos escuros encaracolados, espetados em riste para fora do nariz e das orelhas, declarou não gostar de pessoas que olham para o chão enquanto andam.
Porque é que o fiscalista estava dentro do carro, quente da viagem, no lugar do condutor, olhos presos na manete das mudanças, não vem ao caso. E o que esta declaração de interesses tinha a ver com a entrega do IRS do defunto, com a habilitação de herdeiros, eu não sei, não consigo explicar.
Aliás, deixei de tentar arranjar explicações, cansei-me, estou mesmo muito cansada. Perdi noites a fio a tentar tecê-las por entre metros de renda, agulha dois presa entre o polegar e o indicador, aprendi a fazer renda sozinha aos 30 anos, num momento de maior aflição, e compreendi nessa altura porque passa a minha mãe todas as noites a tricotar explicações, a exigir à agulha e à lã que façam aquilo que têm a fazer, a ordenar o caos de todas as linhas que se emaranham aos nossos pés ao longo da vida, um labirinto diabólico muitas vezes sem saída.
A minha mãe que quando eu era pequenina me pedia para eu segurar as meadas de lã com os pulsos, e que gingasse à vontade as minhas longas tranças para que da meada se fizesse novelo, a minha mãe que sempre me chamou de lolita, que sempre disse à boca cheia que eu tinha nascido com o cu virado para a lua, a minha mãe que sofre por tudo o que já me aconteceu, quisera ela que Deus não tivesse tão grandes planos para mim, que a vida passasse serena como uma meada de lã sem nós cegos.
E eu acreditei que uma torrente de pontos altos, pontos altos duplos, correntinhas - e para fechar um ponto baixíssimo -, achei mesmo que o meu pulso haveria de puxar tantas laçadas, tecer tantos pontos altos, pontos altos duplos, correntinhas, fechando tudo com ponto baixíssimo - pega-se na agulha como se pega numa caneta e se começa a escrever, fazer renda é apenas outra forma de ordenar o mundo, de o pôr a rodar direitinho sobre o seu eixo -, eu à espera de uma epifania, de uma reconstrução perfeita de todos os eventos que me trouxeram até aqui, a este momento preciso, e nada: nenhuma explicação a sair-me dos dedos, o pulso dorido, os dedos em sangue e nada, só mesmo renda ao meu colo.
Permaneci nas viagens de metro, paralisada, a fixar o meu reflexo e o reflexo dos outros no vidro da carruagem, à espera que o mundo, visto ao contrário dentro de um túnel escuro, me devolvesse todas as respostas aos porquês que esvoaçam esganiçados por cima de mim. Mas em vão.
Tudo em vão.
Não há livro nenhum da biblioteca que herdei que me possa ajudar, de nada me valem os arquivos poeirentos, as gavetas invioladas há mais décadas do que aquelas que eu levo.
Eu entrei na casa que culpo por tudo o que aconteceu, passei o sensor pendurado no porta-chaves e desarmei o alarme, mas todas as sinetas tocavam estridentes dentro de mim, diziam-me para fugir dali, rápido e a bom passo, para nunca mais olhar para trás. Esquecer a mata dos medos, esquecer que ela existe, nunca mais trilhar a estrada de terra batida, apagar todas as memórias, o ford cortina, o citroen visa, esquecer os duelos de espada em noites de luar, as lanternas de pirilampos, os nenúfares e as carpas coloridas, a ponte e o lago, as azedas, os malmequeres azuis e as roseiras bravas, esquecer a Santa que falhou em proteger-nos a todos.
Uma casa são só paredes feitas de tijolos, cimento, estuque, mas ela disse-me bem alto para eu ouvir: vai-te embora e não voltes. Ela disse-me isso em tom amigo, mas eu entrei ali, eu tinha que entrar ali, na casa onde ninguém foi feliz, e disse-lhe: tu agora és minha e, por isso, eu estou à espera que me contes tudo o que se passou, rebobina e põe no play, não é um pedido, é uma ordem, é o mínimo que me podes fazer. E, sem respostas - eu que até sei tão bem falar com as casas -, passei ao ataque, e cheia de medo, mas decidida, abri todas as portas, escancarei todas as janelas, remexi todas as gavetas; eu pensei, eu acreditei que a casa me daria todas as respostas se eu perdesse um pouco do meu tempo a ouvir o que ela tinha para nos dizer.
Mas ela respondeu com silêncio, ela leva 41 anos de silêncio e teve que assistir, muda, a tudo o que aconteceu, nunca poderia contar-me o segredo, não sabe como, e eu não sei o que me passou pela cabeça de pensar que a casa me poderia ajudar, que seria a única a poder ajudar-me.
Tudo permanecerá, para sempre, em silêncio.
Engulo espinhos, mastigo pedras que me ajudem a aceitar resignada o que se passou, não sei o que se passou, não consigo desemaranhar esta meada, tudo o que se passou: o mundo gira e gira e não se cansa de rodopiar apenas porque sim, e no meio de tantas voltas sem tino, há demasiadas coisas a caírem e a estilhaçarem-se no chão, no mesmo chão para o qual as pessoas de bem não devem olhar enquanto andam, porque o fiscalista não gosta.
Mas quer ele goste, quer não, eu ando de olhos cravados no chão porque, por vezes, ele falta-me por debaixo dos pés, porque há tapetes invisíveis que alguém puxa às escondidas para eu cair sem amparo. Há alguém que gosta de me ver ferida de morte, e há outro alguém que sabe que eu me hei-de levantar outra vez, e outra vez. Por vezes, há um campo minado no chão e eu sigo descalça, olhos cravados no chão, à espera que as pedras me ensinem por onde devo ir.
As folhas são verdes porque sim, e começam a pespontar no tímido anúncio da primavera mesmo que por dentro corra um dilúvio de lágrimas que não consegui chorar, e cresça um pântano de dúvidas a caminho dos meus pés, que tornam o meu andar mais pesado.
As unhas dos meus pés encravam porque sim, nasceram assim e hão-de crescer ainda um pouco no meu caixão, porque não aprenderam a fazê-lo de outra forma. Ranjo os dentes porque sim, porque a ponta da língua descansa no cantinho do incisivo lateral direito desde há muito tempo e diverte-se a fazer um pequeno estalido que me alivia as dores que sobem até à porta da minha boca.
As orquídeas não floriram este ano. O primeiro sinal que tudo seria como foi, porque sim, só porque sim, sem nenhuma explicação, sem nenhum aviso, sem que ninguém o pudesse evitar.
No último mês, o mundo como eu sempre o conhecera deixou de existir. Porque sim.
Ao terceiro dia do ano, a casa onde ninguém foi feliz acordou pela última vez.
Porque sim.
Posted by Dia at 10:25 da tarde 5 comments