terça-feira, agosto 21, 2007

VII


Cedo, o mundo voltou ao seu rodopio habitual, talvez um pouco mais fora de eixo do que é costume, por causa da panada, mas nem mesmo assim, depois do abalo e da réplica que se seguiu, a bola anilada perdeu a mania de desenhar órbitas por cima de buracos negros.
O mundo soluçou, ou se calhar foi só um coice, ou então uma picada de um mosquito, nada demais, mesmo nada demais, nada que já não se tivesse assistido neste mundo que nunca estava velho, que nunca se cansava de girar.
As gavetas foram todas remexidas, todos os armários, mesmo os dos sapatos, onde outrora se falou com Deus, forram varridos a pente fino. E, se por acaso, algo não ficou no preciso lugar onde o tempo parou, onde eu posso sempre regressar se quiser parar com o corropio do mundo, o fantasma da minha avó Tóia já fez o favor de arrumar a casa, de pôr tudo no seu devido lugar.
Os aviões descolaram num céu um pouco mais anil, e aterraram numa terra mais cinzenta.
Uns ficaram sem palavras, outros, sem água.
Cedo, o mundo voltou ao seu rodopio habitual e nem as árvores plantadas pelo meu pai – e mesmo as palmeiras, que não são bem árvores, e eu nunca gostei de palmeiras porque ele sempre gostou mais delas do que de todos nós – deixaram de me fazer alergia e seguir com as suas vidas: deita folha, deita pólen, deita flor e depois fruto.
Eu não lancei as cinzas do meu pai pelo ar, eu nem sei o que lhes fizeram - se as soltaram às mijinhas debaixo da Ficus religiosa que tem fama de provocar epifanias a almas maiores, ou se as guardam debaixo do colchão.
Os pêndulos dos bruxos cinestésicos baloiçaram junto ao Tejo e as agulhas de bambu espetadas no cocuruto libertaram-nos de todos os conjuros e maldições. Os primos, que por acaso são irmãos, reencontraram-se numa cozinha alta, e de bancadas de mármore rosa, cobertas por folhas de jornais amarelecidas onde há tão pouco tempo eu escrevia notícias sem grande interesse.
E eu não encontrei o meu nome impresso na fonte Bodoni, a negrito, por cima das bancadas de mármore. Mas eu encontrei este blogue nessas folhas, e encontrei uma embalagem de papel Carminol, dos anos 60, que se fazia no preciso edifício onde eu, até há tão pouco tempo, escrevia notícias sem grande interesse.
O mundo, como eu disse e tenho que voltar a repetir para ver se me entendem, cedo voltou ao seu rodopio habitual.
Eu achei que o capítulo sete, o último, o que devia ser perfeito, aquele que me emudeceu por tempo demais e deixou ao abandono este canto onde as letras se enamoram e contam histórias mirabolantes e extraordinárias, que geralmente implicam uma grande dose de magia e alguns santos, teria um rumo diferente.
Eu abri caderno azul onde, há tão pouco tempo, escrevi a sinopse de cada capítulo da história de uma menina que se viu órfã de um pai que nunca teve. Lá, eu escrevi “De nenhuma forma extraordinária”, e bastava uma frase para eu saber o que queria dizer com isto. Eu acreditava que estava órfã de extraordinário, que jamais nos voltaríamos a encontrar por portas travessas.
Eu esqueci-me que o mundo cedo iria voltar ao seu corropio habitual, talvez um pouco mais fora do eixo, por causa da panada, mas nunca se esquecendo de descrever aquelas órbitas brilhantes, desenhadas pelos tropeções nos buracos negros.
Enganei-me. Todos os dias, eu encontro o meu pai de uma forma extraordinária.