quarta-feira, julho 26, 2006

A casa

Tenho oito ou nove anos outra vez, um fato-de-banho amarelo fluorescente com folhos rosa choque nas costas, há um par de gémeos cujos nomes começavam por G, sentados nas escadas da estufa, uma trança molhada que chega até ao rabo, e o meu tio Zé a atar-me os cordões do colete insuflável na borda da piscina, e o meu pai, lá dentro, a garantir-me que acabo o dia a saber nadar (há também o Paulo e o Bernardo, muito pequeninos, sobretudo o Paulo - há fotos disto hei-de as encontrar -, sentados um de cada lado dos gémeos que apenas se distinguem por um minúsculo sinal de nascença, com braçadeiras do mesmo padrão que o colete que o meu tio Zé me aperta como um espartilho, e há copos de Tang na mesa do terraço).
Há a mãe dos gémeos, uma mulher muito magra, de olhos claros e dentes de cavalo (há, amanhã, por falar nisso, uma ida urgente à ortodontista, e sei perfeitamente que o seu veredicto será que tornarei a ter que usar por uns meses um sorriso metálico), que me ensina a boiar, com uma paciência e doçura que ainda hoje não esqueço.
Não foi o Zé Ralha que me ensinou a nadar; nem nessa nem noutra tarde; também não foi um peixinho do mar: foi o meu tio Manuel, algures entre a Fonte da Telha e a Praia do Abano (eu sei, apesar de a minha desorientação congénita, que estas duas praias estão separadas à nascença), e no banco de trás de um Toyota Corolla encarnado, que ainda dorme no parque de estacionamento da Estados Unidos, eu e o Hugo apostávamos a cor da bandeira da praia, e o meu tio ensinou-me a nadar num mar crespado, interdito a banhos.
Há quem sonhe ter muito dinheiro, mandar em muita gente e decidir o destino de milhões com um estalar de dedos peludos. Há quem salve passarinhos e use barbas enormes; há quem destrua árvores e não saiba estacionar convenientemente o automóvel; há quem fique com urticária no ante-braço ao mínimo sinal de stress - e hoje, curiosamente, quando a Magui me telefonou a dizer que estou notificada para comparecer num Tribinal Criminal como testemunha de um crime que não faço ideia qual é, ou quem o cometeu, a pele não implodiu e continuou macia como sempre acorda e não escamosa como a das cobras. Há quem fume cigarro atrás de cigarro, enquanto escreve posts que não têm um princípio, um meio ou fim. Há quem leve choques eléctricos nos joelhos e goste da massagem do fisioterapeuta estagiário depois das descargas eléctricas. Há quem tatue o sagrado coração de Maria nas costas - eu cá ainda pinto a Teresinha nas pernas para esconder as varizes. Há quem durma no quarto dos fundos, constipado. Há quem durma no outro quarto, e sonhe com as aventuras do Noddy, e há um gato de duzentas gramas que ronrona embalado pelo som das teclas. Neste preciso momento, há quem envie o jornal de amanhã para a gráfica; quem faça contas à vida a pensar como vai aguentar até à próxima semana com o ordenado que entrou há muito em combustão espontânea. Há quem pense, muito, quem roa as peles do pai-de-todos a pensar nos amigos distantes, mesmo quando estão na mesma cidade. Há quem faça trinta por uma linha, quem chore pela morte de uma irmã octogenária, com um revólver, quietinho, na mesa de cabeceira (e enquanto isso, aposto, há quem fume um cigarro às escondidas, na casa-de-banho).
Há quem queira tudo; há quem não queira nada. Eu só queria uma casa. Uma casa onde me pudesse plantar ao sol, no canteiro, com os meus amigos. Uma casa com piscina, para a Carolina ficar com as mãos e com os pés enrugados todas as tardes dos Verões da nossa vida.
Eu hoje estive na casa. O coração quase que me explodiu de amor, por isso não faço grande sentido, está a transbordar, como a piscina feita à medida da minha avó. Mas na casa, neste momento, há uma piscina de águas paradas iluminada por uma lua nova muito esguia, quase anoréctica; há mais palmeiras do que no jardim botânico, que se entretêm a contar os mexericos que ouviram sobre os dragoeiros; há um eucalipto tombado desde o Inverno sobre o lago das carpas encarnadas; há cinco quadros por metro quadrado de parede; há uma biblioteca que nunca mais acaba, e dois desumidificadores ligados; há quem pense nas promoções desta semana do Lidl e que é preciso comprar iogurtes de um quilo. Mas não há vida, não há amigos, há onze assoalhadas cheias de ar: há quem chore no quarto pela morte da irmã octogenária, e quem fume um cigarro às escondidas na casa-de-banho e prepare um Valium para dormir.

8 comentários:

Isa disse...

cada x melhor. parabéns! bjs gds

Dia disse...

Obrigada, Isa, pela paciência para leres o que mais ninguém tem pachorra para ler. É um belo texto, e se todos os intervenientes (são tantos, tantos neste post) o lessem, iriam gostar.

Isa disse...

não é uma questão de paciência. publica!

Carrie disse...

Pois eu 'tive para comentar à tarde. Mas a páginas tantas é sempre a mesma coisa. Que escreves bem. Que é uma boa prosa. Que quando crescer quero escrever como tu... blá... blá...blá. Na prática resume-se tudo: És grande Dia! Um beijo amiga.

Anónimo disse...

Gostei mt....!!!

Leão da Lezíria disse...

Dia, há leitores low-profile, que lêem, gostam e são suficientemente mal-agradecidos para não deixar um comentário. Em nome dessa massa anónima, peço encarecidamente que não lhes bloqueie o IP e lhes permita a benesse de continuar a ler (ainda que onanísticamente). Já agora, fique a saber que é daqueles raros casos que têm uma escrita atractiva e bela quer esteja com um estado de espírito de terceira cave em Massamá ou de centésimo andar em Nova Iorque).

Goiaoia disse...

O gato já tem 200 gramas? Está a ganhar peso...
Um enorme Xiiiiiiiiii-**********

Rui disse...

Há quem leia e chegue ao fim com um sorriso largo. Obrigado.

(sobre a pachorra para ler, também eu tinha umas coisas par dizer)