quinta-feira, setembro 06, 2007

A Herança

Tenho a casa cheia de fantasmas e a absoluta certeza que descendo em linha directa do santo que desfilou de sandálias de couro pelas ruas de Goa.
São fantasmas da outra margem do Tejo, são fantasmas do outro lado do mundo, fantasmas que eu trazia nas veias e na textura da minha pele sem reparar.

(são fantasmas ultraleves)

Tenho fantasmas e mais fantasmas, e latas de Toddy mais velhas do que eu em cima da mesa de jantar, certidões de óbito, e declarações do modelo 1 do IMI (com o respectivo anexo preenchido em duplicado) junto ao sofá que quando crescer quer ser cama.
Tenho plantas de localização à escala 1/100 de imóveis onde os descendentes do santo com quem partilho um apelido se juntavam numa quinta que se estendia até ao mar, uma quinta onde trepavam canas e roseirais, e onde decerto a minha avó Isaura feriu o seu olho direito numa ferida que nunca mais sarou.
E tenho também registos prediais de pequenas ruínas de uma vila fabril, tenho visões de uma praia de areias finas onde hoje o mar bate sem espuma aos pés de chaminés industriais, mas também tenho um busto de barro do Sá Carneiro que comprei no Barreiro.
Tenho uma queixa à Ordem contra um advogado e que tem que ser redigida o quanto antes, tenho uma convocatória de assembleia de condóminos para tratar, tenho uma bicha xenófoba que ficou com o quintal que devia ser meu e que não gosta dos meus vizinhos uzebeques, sem falar que tenho o grunhido do meu avô Ralha na sala onde o meu pai morreu com ar de espanto.
Mas há pior - tenho o carcinoma do colo do útero da minha avó Isaura guardado num arquivo morto de Chelas, e a tristeza de me ter esquecido que ela também se chamava Faria antes do Xavier e do Ralha. Tenho o Manuel dos Anjos Xavier e a Maria Manuela Faria enterrados nos arquivos poeirentos da Conservatória do Registo Predial do Seixal.
Tenho um presépio minhoto que encontrei na mesma loja do achado extraordinário do busto de Sá Carneiro - e sim, acredito que lhe partissem a montra se o pusesse à vista de todos, e ainda bem que vejo sempre mais além, que nunca presto atenção ao que está à frente mas ao que foi escondido atrás do óbvio, senão não tinha um busto de barro do Sá Carneiro comprado no Barreiro -, e já tenho algum carinho pelo Barreiro, 500 quilómetros depois aprendi a gostar da terra de onde vêm as minhas feições, e enterneço-me pelo facto de a cabeça do menino Jesus do Presépio ser maior do que a da virgem Maria, e de as ovelhas terem um sorriso maroto.
Tenho o presépio montado no janelo da cozinha de Santa Marta porque preciso da fé, da esperança e da luz que inunda toda a gente no Natal (e tenho outra vez uma invasão de formigas, que respeitosamente contorna as palhinhas onde o menino está deitado).
Tenho novas ruas na cabeça, tenho outra vez quilos a mais e cabelos arrancados por um tique nervoso compulsivo.

Esta é a minha herança.

8 comentários:

loli disse...

"Um passado demasiado bom
dá-nos cabo do Futuro. Espera-se o pior."
E o pior já passou... Talvez.
Importa recomeçar.

Anónimo disse...

"Tenho fantasmas e mais fantasmas"
e o que é que se faz aos fantasmas? Guardam-se em caixas de fotografias, dentro de baús? O que é que se faz aos fantasmas?

Heiabelha disse...

Pronto. Fiquei sem palavras. Não sei espantar fantasmas (tenho os meus que ainda não me consegui livrar), nem resolver problemas de vizinhos xenófobos ou ter uma boa ideia do que se faz com arquivos mortos - os meus continuam arquivados.
Pára com o tique nervoso que o teu cabelo é lindo e não merece tal trato. Troca isso por uma massagem discreta nas têmporas que é mais relaxante e não afecta o couro cabelo.
Um beijo com abano de cabeça.
PS - como é que te acontece tanta coisa? E ao mesmo tempo?

Anónimo disse...

Quem és tu, que me enterneceste tanto?

Stucky disse...

Sabes que...lendo coisas tao espirituosas...tao liricamente escritas...Me enche de orgulho ter o prazer de te ter na memoria...

F. disse...

Sempre forte.

Anónimo disse...

tens 48 horas para escrever qualquer coisa...

Cerveira

Goiaoia disse...

Aos fantasmas num se faz nada...
Eles é que nos fazem alguma coisa:
visitas periódicas. Visitas de pára-quedas, sobre-anunciadas.

Adorei o sorriso maroto das ovelhas... e o respeito das formigas.

E a palavra fissuras... Antigamente num tinha hemorróidas.