terça-feira, fevereiro 12, 2008

Quando é que se abre a porta aberta?

As portas estão todas fechadas, estão sempre fechadas, e quando as encontramos de outra forma, se é que as encontramos de outra forma (as portas não nasceram para estar abertas), estão escancaradas, em deboche; as portas são estridentes, elas nunca se entreabrem de soslaio, as portas nunca deixam ver o que está do outro lado por uma nesga,

(essa é a função das fechaduras, as fechaduras só existem para podermos espreitar o que está para lá da porta)

não há meio termo, nunca há meio termo, porque ensinaram-nos isto, de pequeninos - fecha a porta atrás de ti, não te esqueças de dar três voltas à chave, e não abras a porta a estranhos, nunca abras a porta.

E então, se é assim, se é sempre assim, quando é que se abre a porta aberta?


As portas estão sempre fechadas, nem que seja só no trinco, é simples o seu destino, as portas só existem enquanto portas porque devem estar fechadas, cumprem pena pesada, voto de clausura, por um pecado qualquer, por uma promessa qualquer, por um segredo qualquer, por vezes, não guardam nada, não escondem nada, mas, mesmo assim, têm que estar fechadas, com correntes, prisioneiras de aloquetes para os quais nunca foi feita nenhuma chave da salvação.

Ensinam-nos isto, que quem anda à chuva molha-se, que quem brinca com o fogo faz xixi na cama, e que as portas estão sempre fechadas, têm que estar fechadas.

E então, se é assim, se sempre foi assim, quem é que se lembra de abrir a porta aberta?


E talvez sejamos as únicas pessoas desta cidade que puderam acreditar que a porta estava encostada, apenas encostada, fomos os únicos que nos lembrámos de abrir a porta aberta – porque raio, desta vez, não levámos o pé-de-cabra, porque raio não trouxemos o alicate, o escopro e o martelo?

(E já pensaste quantos pares de pés passaram pela porta aberta antes de nós?)

E quem resisitiria a espreitar, quem não teria entrado também se ela tivesse deixado antever o que estava para lá de si - lá dentro já esperávamos a penumbra, a porta nem sempre fecha todos os segredos; lá dentro, sentia-se cá de fora, nem precisava de estar aberta para o sabermos, para adivinharmos o cheiro, uma mistura de velho com penas de pombo e pó, cá de fora eu ainda descortinava o cheiro da cera de abelha, do chão e das tralhas esquecidas -, mas quem, se não nós, se lembraria de apenas encostar a palma da mão à porta e, sem palavra mágica, sem impressão digital – todos os dias, o meu dedo abre uma porta -, ainda bem que eu acreditei que conseguia abrir a porta aberta, e que fui à frente, sem medo, e que depois pude olhar para trás, e sorrir, e dizer-vos:

Já está. A porta está aberta.


Eu juro-te, muita coisa mudou desde o último dia do ano, quando tu ficaste atrás de uma porta que eu não vou conseguir abrir apenas com a força que se acumula na ponta dos meus dedos; outros milhares de pares de pés passaram pela porta aberta, depois de lhe termos descoberto o segredo.

Sabes,

(a Carolina começa todas as frases assim, como eu, sabes?)

O meu cão desapareceu no início do ano, não volta mais, o Pax morreu e eu ainda não consegui chorar pela falta que ele me faz.

A D. Ilda morreu e eu fui a única a escrever no livro de condolências da Servilusa, eu fui a única a chorar, a chorar como uma criança, a chorar como quando ela me consolava na sala do papel de parede almiscarado (o Valter e a Teresa a falarem dos seus gatos, preocupados com os gatos, que estavam sozinhos há muito tempo, e eu a chorar ao lado do caixão da D. Ilda, e ainda bem que a D. Ilda me deu, era eu tão pequena, o vestido de princesa cor-de-rosa; a Teresa já nem se lembrava dele, eu escrevi sobre o vestido de princesa cor-de-rosa no livro de condolêncioas da Servilusa, mas cada um com o seu talento, a Teresa distingue o miado do gato persa em qualquer lado do mundo; a Teresa chorou pelo gato mas não pela D. Ilda, e eu não chorei ainda pelo Pax).

E o meu pai voltou-me a morrer outra vez, a semana passada, o meu pai voltou a morrer, quem é que podia acreditar - é tal e qual como a história da porta aberta, quantos pares de pés passaram por ela e só viram uma porta fechada, igual a tantas outras - que dois pintores partilhavam o mesmo estranho apelido e nem sem sequer eram parentes; o meu pai voltou-me a morrer esta semana, e eu ainda não fui ver o meu avô, não voltei às Finanças do Barreiro para entregar nova declaração do modelo 1 do IMI, nem passei os recibos do condomínio (ou marquei a reunião ordinária).

E todos os dias, todos, todos os dias, desde o último dia do ano, eu lembro-me de ti,eu lembro-me de ti, lembrei-me de ti,

(sabes, eu nunca me vou esquecer de ti)

sobretudo quando abri a porta aberta.


[post 777]

11 comentários:

Carrie disse...

Gosto do 7. se fosse um número seria o 7. e a partir de hoje vou exigir um post todos os dias. sento-me na janela e grito com todas as forças. atiro-me ao achão,e esperneio e juro que não paro enquanto não me fizeres a vontade. tenho saudades tuas.

Eu disse...

Beijos

Anónimo disse...

As portas que se fizeram para se abrir...e para fechar. Para serem retiradas por não separarem coisa alguma, ficar entre abertas ou definitivamente na sua função de parede, como se não existissem, fechadas que estão para sempre.
As nossas portas, (também temos portas) são iguais às portas dos outros. Por vezes, a nossa porta é a mesma de alguém que nos está no compartimento ao lado. Uma única porta comum a separar e a ligar dois espaços pertencentes a dois universos. Que nem sempre coincidem nas vontades de fecho ou abertura entre si. E a luz que passa pelas fechaduras e que nos enche a mente, põe-nos em contacto com realidades, que sendo visualizadas de imediato, estão, no entanto, tantas vezes a milhões de anos-luz de distância.
*
A morte é única coisa definitiva da nossa existência. E morre também um bocado de nós quando alguém leva consigo, fragmentos do que nós somos, na morte que o leva.

300Miles disse...

Cheguei, vi e gostei.
Voltarei

fernando lucas disse...

Imagina eu com um fato ao xadrez vermelho e amarelo, de barrete com 3 pontas com guizos cada e aos pulos a fazer malabarismo com tomates podres e tropeço. já no chão levo com os vegetais na cabeça...Shploc! Shploc! Shploc!

serviu para alguma coisa este humor?

força moça.

Ivone Ralha disse...

Beijos, irmã.

Anónimo disse...

Rogai por Nós, Minha Senhora, agora e depois. Pois «o amor, quando vem, num sabemos também, a sorte que trás consigo»

Pois foi... o Luís. Mas o Luís era sobretudo arquitecto. Enquanto que o Zé... tudo mais umas Bótas. De resto morreu calçado. Tombando. O Luís, quando o conheci em 2001 já era mesmo velho. Impecável, mas vélho. Rijo, seguro, mas vélho, barbas de patriarca e tudo.

Devo-te confessar que também estranhei... ainda para mais...: «Zé?!? Pois... num conheço.» Estranhei mesmo, até torci o nariz (perante a ignorância) e tudo.
Era um bom homem, independentemente dos humores mandava sempre uma pála serena.

A Senhora o Guarde, A senhora Nos guarde a todos, de resto. Agora e sempre e depois.

psst. 777 é bué de fúnebre

Yin disse...

Se alguma vez publicares um livro avisa, porque eu faço questão de o comprar! Entretanto... De alguém com experiência de não chorar as perdas... Não te preocupes... Quando menos esperares vais sentir necessidade de o fazer. Até lá não stresses por causa disso.
Força!

Rui Caetano disse...

Nem sempre as portas estão trancadas, podem estar fechadas, mas a nossa chave pode, muito bem, abri-las...

Anónimo disse...

Vale a pena ouvir… o que as portas fechadas dizem.
Gabriel O Pensador
Ainda é só o começo
Faixa 8
“(…) Aprenda a viver
Descanse quando morrer
Tudo que você precisa está dentro de você (…)”

Anónimo disse...

que podre