segunda-feira, julho 03, 2006

Amor de pantufas

A minha amiga esquizo chama-lhe um amor de pantufas.
Nesta casa não há pantufas: há um chinelo de praia, comprado na loja dos 340,8 escudos, tresmalhado, algures no chão do quarto (a última vez que o vi estava debaixo da cama), não sei que é feito do par, e esta casa, como todas, tem buracos negros (estalou um na aduela da porta da casa-de-banho, e multiplicam-se as teorias para a cratera: sem o ver, a minha mãe fala em infiltração do andar de cima, onde moram os travecas que atacam no Conde Redondo; eu prefiro pensar que é a vingança das formigas que exterminei fora d'horas, num dia frio de Inverno, passados três dias de um ultimato, um tratado de paz pacifíco ao qual os pequenos seres não ligaram patavina; o Mário, que esteve cá ontem com a Mónica, a comer o meu primeiro bacalhau à Gomes de Sá - estava incrivelmente bom; pena que não houvesse o suficiente para repetirmos - diz que foi do calor; aceitam-se mais sugestões para a crise da aduela), mas, apesar de estarmos os dois descalços - ele, de peúgas, encurvado a rever um romance tolo sobre decoradores, e eu, de pé descalço e braguilha ligeiramente aberta a acusar os quilos extra da felicidade -, cá em casa há um amor de pantufas.
Não é pejorativo (espero ter escrito esta palavra como deve de ser). A esquizo, quando fala em amor de pantufas, é com desdém, é pejorativo (sim, estava bem escrito, fui ver ao Google, apesar de ter três dicionários à distância do meu braço esquerdo, em cima do sofá laranja - e que saudades incríveis de escrever no sofá laranja, apesar de ele estar a rever onde, antigamente, eu escrevia todas as noites, religiosamente, para queimar o tempo e as pestanas -, e pejorativo é mesmo a palavra adequada, diz-me um site qualquer que quer dizer "sem graça; desmazelado").
Raios, tenho apenas 27 por cento de autonomia da bateria para escrever este post, porque não me apetece mesmo cortar o ritmo e ir ao quarto buscar os cabos de alimentação e, como quem não quer a coisa, espreitar para debaixo da cama, para ver se está lá o chinelo solitário.
Eu lembro-me de umas pantufas especiais. Eram de pele, daquelas que se compram na serra da Estrela, forradas a pelo de cordeirinho. Essas pantufas tiveram o mesmo destino do chinelo tresmalhado. Foi uma para cada lado. Deliberadamente. Dei uma das adoradas pantufas a uma cachorra pastor alemão, filhota da Cléo (não tenho bateria suficiente para contar as imensas histórias da fiel e perigosa cadela Cléo, que justificou a placa ao lado do portão a advertir: "Cuidado com o cão" - como esta é uma sociedade machista, até no reino animal, o avô Ralha fartou-se de procurar uma placa de azulejos que dissesse "cuidado com a cadela", mas foi uma demanda vã, sem glória). Não posso escrever isto com demasiada convicção, porque esta é uma memória muito longínqua, daquelas que, às vezes, não sei distinguir de um sonho, mas quase que aposto que a cadelita se chamava Melanie. E sei que eu chorei quando ela se foi embora. Nesses tempos, o segundo andar de um prédio da avenida Estados Unidos da América não era povoado por animais: não havia dezenas de gatos, pássaros, e três canídeos. Nada disso. A mãe, a nossa mãe, trabalhava de sol a sol e criava, sozinha, dois filhos. E acho esse nem era o buzilis. Os avós não a deixavam ter animais de estimação. Sabiam da sua propensão para o exagero e actuavam como o super-ego da Magui. E isto é capaz de ser verdade, porque a nossa primeira gata, a siamesa e matriarca Íris, minha prenda de anos, só pôde por as suas almofadas cor-de-rosa no chão de alcatifa encaracolada de cor acinzentada como o pelo dos ratos, quando a avó Tóia morreu. E quando o avô Oliveira se seguiu, aí foi o descalabro e, na década de 90, os cento e poucos metros quadrados dessa fracção urbana, chegaram a ser o lar de mais de 60 felinos.
De volta às pantufas, que a bateria não admite desvios por trilhos estranhíssimos, nunca antes desbravados, por onde só passeiam os lobos solitários de que fala o fantástico livro do meu amigo Ricardo. A minha pantufa, a mais longínqua pantufa de que me recordo (lembro-me de outras, até sei a marca, eram DeFonseca, que eram uns colehos gigantes, e foram compradas no centro comercial ACS da avenida da Igreja), era um tesouro tão importante, que deixei a pequena cadelita levá-lo com ela no dia em que se foi embora. Para ela se sentir melhor. Para eu sentir que deixei uma marca na vida daquela bola peluda que viveu duas ou três noites no segundo andar da Estados Unidos da América.
Este é um amor de pantufas, mesmo que os pés andem descalços sobre as tábuas centenárias do soalho.
É um amor confortável e quente. E pouco importa que ele não passe a roupa a ferro e que a tee-shirt que pede reforma há, pelo menos três anos, tenha um buraquinho a meio do peito. Ou que esteja um frasco de fazer bolas de sabão, na prateleira da estante, ao lado da televisão e de um quadro do Zé Ralha que tem uma menina de cabelos de fogo que sou eu. E que ao lado dos três volumes do Houaiss esteja uma vaca que é um suporte de cinco lápis de cor da Carolina. Aliás, não importam as birras insuportáveis da menina loira que hoje não quis juntar-se ao seu amigo Pestana e desligar as pilhas sem alarido, birras que me consomem e me fazem perder a cabeça no trânsito, quando um otário qualquer me buzina, só porque não arranquei na fracção de segundo imediatamente a seguir à luz do semáforo ter passado do encarnado para o verde. Nem que o jantar, desta vez, não tivesse ficado tão bom como o de ontem.
Ai, 22 por cento de bateria e isto já está a apitar.
No amor de pantufas, vejam lá para o que me havia de dar, eu bordo mais uma libelinha de uma barra de quadrillé que há-de ser aplicada nos lençóis do enxoval da minha próxima filha, já que não vai a tempo, não foi a tempo de ser aplicada nos lençóis da Carolina. E nem eu aqui posso explicar a importância de eu ter voltado a bordar, de ter voltado àquela barra de quadrillé. Não posso mesmo, sob pena de ter mais uma crise de stress pós-traumático. Mas, como uma pantufa, aquela pequena que seguiu com a cadelita para a sua nova casa, eu sigo sem medos, pronta para o que quer que seja o amanhã.

5 comentários:

Anónimo disse...

Tu sabes bem que não tens um amor de pantufas!

AnadoCastelo disse...

Ai que isto está sério muito sério! Espero que continue assim. E gostei das tuas memórias. Podes continuar.
Jokinhas

Lcego disse...

Tu fazes-me acreditar, mulher!

[ t ] disse...

(ainda sobre a nossa conversa de hoje)

Se vocês os dois não sonharem , ninguém tem 'autorização' de o fazer! ;)

Anónimo disse...

Mas há posta ou não há posta! PUBLICIDADE ENGANOSAAAAA!

ass.: 'madrinha' loira

ahahahahah