sexta-feira, junho 30, 2006

Stress pós-traumático

Na próxima terça-feira, meu irmão, como já não tens problemas e traumas que te valham, depois de mais de cinco anos semanais de terapia com o doutor Morais, leva-lhe este, eu não tenho dinheiro para sentar o rabo grande no divã, mas acho que podemos fazer a coisa à distância, por correspondência e, como já é hábito levares, às terças, o granel da nossa família, acho que ele não se importa de me diagnosticar à distância, e já agora de me tratar, também, sem eu meter lá os coutos. É que eu acho que estou mesmo doente, e não consegui ver grande coisa sobre este distúrbio da personalidade no Google, falta-me o Larousse Medical do avô Oliveira, onde todas as semanas podíamos escolher uma doença nova, mas estou em crer que sofro de stress pós-traumático agudo.
Não estive na guerra – quando tenho estas crises, dou graças a Deus não ter a Beretta com mira de infravermelhos escondida na gaveta das cuecas, da cómoda barata do Ikea que se está a desfazer aos poucos –, não fui violada, sequestrada, torturada com penas de ganso, ou impedida de dormir durante dias a fio para confessar um crime que não cometi. Por acaso, tive um acidente de carro que só tu e muito poucas pessoas sabem, mas o problema não está aí, não está, não está, como diz o Noddy, repetindo três vezes para frisar bem a coisa: passo há onze anos na Rotunda do Relógio, vinda de Chelas (ainda ontem passei), e quase nunca me recordo de um Rover desportivo (ontem lembrei-me), meio bimbo, encarnado, do talhante da avenida de Roma (eu namorei com o filho do talhante e fiz-lhe grande parte do seu curso superior de arquitectura), estofos de pele clarinha e interiores de nogueira, o Rover a diminuir drasticamente de tamanho, como uma lata de refresco vazia, a cada embate, 2500 centímetros cúbicos de cilindrada aos tombos pelas três faixas de rodagem, já me esqueci dos dois embates contra o separador central de betão, isto tudo à roda, como num carrossel, lembro-me vagamente da mão dos anjos a desviarem o dito carro desportivo do outros carros e, se me esforçar um pouco, consigo ainda ver o filme da minha vida toda a passar-me à frente dos olhos (não era muita, a vida, eu tinha apenas 16 anos e ainda achava que ia ser cantora), e à frente dos olhos a passaram, também, à velocidade da luz, estilhaços de vários vidros, o da frente, o do lado, os airbags a dispararem, o namorado da altura a querer voar, mas a ser retido pelo cinto de segurança, e dez segundos depois, finalmente, o poste de iluminação pública a substituir o ABS que não disparou, e um pára-choques perdido na estrada. Consigo até reviver o alívio com o misto de estupefacção de estar viva e sem um arranhão – apenas com um vestido feito de vidros entre as pernas.
Estaciono o carro no Parque da Praça do Município e quando o motor pára, estafado, começam os suores frios (e eu não suo nunca, nem que corresse a maratona), e as pernas a tremerem como gelatina Royal, a negarem-se a seguir as ordens da espinal-medula para se porem a caminho: direita, esquerda, direita, esquerda, pareço um bebé que dá os seus primeiros passos a medo, e eu praticamente incapaz de subir as escadas, sem vontade, sem coragem de subir as escadas, com tonturas, e pontinhos amarelos à frente dos olhos, e um zumbido infernal que é o alarme de que estou prestes a desmaiar. E se subo, quando subo, às vezes tenho que subir mesmo, porque tenho que ir ouvir o senhor presidente da câmara de Lisboa amiúde - mas já houve dias em que não fui capaz, por isso é que eu digo que estou doente -, tenho um truque, como os burros: ponho entrolhos do lado direito, pode ser um jornal, ou a mala, tanto faz, eu é que não consigo olhar para a porta do Tribunal da Relação de Lisboa, e mais uma vez agradeço não ter a Beretta quando alguém, muito poderoso, me mandou ter filhos por inseminação artificial a Espanha.
Sempre que o telefone toca e é a advogada, a competente, não a outra que só me ficou com uns belos milhares de euros sem ter feito nenhum, e me lê um qualquer documento, um recurso, alegações, acórdãos, qualquer coisa que me faça reviver um milésimo do que aconteceu na Relação, volta a acontecer: não me aguento nas pernas, atrapalha-se-me a fala, tenho que me sentar, o coração pula, chega até ao nível da taquicardia cavalgante, qualquer dia tenho um treco, não consigo respirar, mesmo quando são boas notícias, e depois não durmo nos dois dias seguintes, estrago o meu aniversário de dois meses de namoro a recordar os piores dias da minha vida, em que emagrecia dois quilos a cada 24 horas, em que não me conseguia arrastar para fora de casa, dias em que senti uma angústia nunca antes sentida, beco sem saída, e Berettas, sempre Berettas na cabeça, e que bonita que eu ficava com a gabardine de pele preta, cabelo apanhado, e uma Beretta em punho, e ele já me acompanhava do outro lado do monitor, e dava-me o seu apoio, contrariando o acórdão que me chama de “caprichosa” e “egoísta”, e agora até diz que adopta o meu nome quando nos casarmos, e que todos os nossos filhos podem ser Ralha. E as duas esquizo, lembro-me sempre delas quando o oxigénio tarda em chegar ao cérebro, e não consigo coordenar movimentos: da que também treme das mãos a torto e a direito, a que me salvou naquele final de manhã, que me ligou e me obrigou a almoçar nas freirinhas do Chiado que têm a melhor vista de Lisboa (o Carvalho da Silva deve ter a segunda melhor vista, do seu gabinete), que me trouxe à realidade, eu não chorei durante o almoço, só na Basílica dos Mártires, a fazer uma promessa louca aos pés do Santo Expedito e, nos dias seguintes, a madrinha, a dizer-me para não desistir, que acreditava em mim e na minha causa doida, que eu não era louca, que peço apenas o que está escrito na lei, e como eu me consumi, estiquei a reserva do depósito de combustível, e o meu motor é a diesel e gripou, ela deu-me um bocadinho da sua força sobrenatural (força de fada, de fada madrinha) e eu sobrevivi, consegui sobreviver nos dias seguintes, mesmo que sem dormir. E uma semana depois, as senhoras da Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher e um magistrado do Ministério Público a contactarem-me, caídos dos céus, e então, não me senti tão sozinha e má mãe como me acusou o desembargador, e depois, dois homens, dois inomináveis, que não me fizeram lá muito bem, que me fizeram chorar entre imperiais e cigarros espetados num cinzeiro malcheiroso, mesmo aqui ao lado, no Lacinho.
E eu só sei que não fui à guerra, não fui assaltada, sequestrada ou torturada. Mas algo terrível aconteceu naquele Tribunal, algo que eu não consigo ultrapassar ou racionalizar, que me impede de estacionar o carro na Praça do Município. E, se calhar, tenho que viver com isto para sempre, como uma doença crónica que não mata mas mói, para lá da sentença que há-de sair, daqui a muitos anos, do Tribunal Constitucional, e que me há-de sossegar, e que eu espero que seja histórica, para me dar um pouco de paz, porque, pelo menos, entre mortos e feridos, e feridas que não fecham nunca e pioram em dias de humidade, fui até ao fim.

12 comentários:

Anónimo disse...

E nós, os amigos, havemos de estar por cá para te acompanhar nos momentos difíceis e também no dia em que, finalmente, conseguires fazer jurisprudência, nesta terra onde todos somos iguais, mas pelos vistos, uns mais iguais que outros.

[ t ] disse...

(acabei de ouvir, eu sou colega da secretária)

e vamos até fim. e depois catequese e cunhas aos santos :D

Goiaoia disse...

Este Poste é maravilhoso. Bem-hajas!

Eu, por ti, rapava o cabelo! E julgo que sabes o que isso quer dizer.
Ainda bem que num tens a bereta. Mas tens-me a mim, mais ao anjo da guarda e os outr@s todos que te adoram.

Anónimo disse...

(calo-me. calo-me apenas. sem palavras para dizer.)

Anónimo disse...

Podia estar para aqui a dizer que tens o meu apoio incondicional nesta luta [ainda que lamente o mal que te causa], mas limito a prometer a minha presença sempre que precisares... nas freiras ou em outro sítio qualquer desta cidade.

AnadoCastelo disse...

Ainda bem, assim é que é ir até ao fim. Eu se estivesse na tua situação tb não sei o que faria. Quando tocam nos nossos viramos onças. Aí compreendo-te perfeitamente. E, minha querida, apoio não te vai faltar. Tb podes contar comigo.
Jokas e bom fim de semana

marilia disse...

Queria poder falar alguma coisa. Mas eu também não fui sequestrada ou torturada, mas fica difícil reagir contra a injustiça.

marilia disse...

p.s nem por isso desitimos (graças a Deus)

Isa disse...

n percebi nada do post mas ir até ao fim parece-me por demais importante. Força. O pior já deve ter passado, digo eu.

do mais, está mais uma x mt bem escrito. bj gd,

Dia disse...

Os meus leitores são como filhos, filhos pródigos, filhos doces que me dão beijos nas bochechas (já que a minha própria filha, sangue do meu sangue não o faz, por estar a passar a sua fase de afirmação e do contra), e eu estou a cumprir mais uma noite de stress pós-traumático,ao início da madrugada, como há muito tempo não estava, acordada, em sentinela, mas o pior já passou, e um dia, Isa conto-te a história surreal que vivo nos corredores dos Tribunais. Que um dia vai ser mesmo notícia, aliás, até já podia ser notícia se eu quisesse, mas a esquizo diz que eu tenho a mania de ser o centro do mundo, mas não ando nisto à procura de reconhecimento feminista (eu, que detesto pêlos). Quero direitos iguais. Um dia, esta triste e lamentavel história fará jurisprudência, como sabiamente adivinha a M. E aí terá valido a pena. Porque mais nenhuma mulher vai ter que ter stress pós traumático por querer que a lei se aplique. Tão somente isso.
A todos, todos, todos, todos, muito obrigada pelo vosso apoio, mesmo sem entenderem patavina do que eu falo (falo das pessoas que não sabem o que se está a passar, que não me conhecem pessoalmente). E eu fico bem, eu oriento-me, é que agora já não é tão difícil, porque as noites já não são surdas-mudas (e esta é uma bela frase, se calhar faço um post com ela), se não conseguir mesmo dormir).

Anónimo disse...

Só u... Sou uma ingrata....
Desculpa, mas acho que sou bipolar.

Isa disse...

Eu espero que sim minha querida, espero que sim, q se fará jurisprudência. tenho fé nos juízes, sei que tu não tens assim tanta, mas eu tenho. e se tem a ver com a tua filha, só em casos mt mas mt especiais os juízes tiram os filhos às mães, disso tenho a certeza, só n sei que raio de juiz é esse. mas eu conheço um, mt bom, o melhor de todos, manda-me um mail se quiseres. bjs mil e boa sorte.