sexta-feira, janeiro 19, 2007

Interlúdio

Setas.
Há quem desenhe bolas. Outros travessões. Há ainda quem faça triângulos e outros sólidos geométricos. Não encontrei círculos.
Esta é uma pequena amostra das folhas rascunhadas que jazem em cima das secretárias dos colegas mais próximos do meu posto de trabalho (e hoje, é o último dia em que trabalho à janela da Viriato; subi na vida, subi um piso, passo a estar bem pertinho do patrão e longe da Viriato. Lamento-o profundamente).
Eu desenho setas. É mais forte que eu.
Três cadernos em cima da mesa, três caligrafias diferentes a cada folha que passa, todas desenhadas pela mesma mão, mas em algumas ocasiões, a mão fez dançar a esferográfica de manhã, como numa valsa singela, noutras, rodopiou no papel com um nadinha de tensão, e então a letra inclinou-se para a direita, como num tango, e depois há uns parágrafos, praticamente imperceptíveis, em que a caligrafia teima em não caminhar direita pelas linhas azuis dos cadernos baratos; estas letras foram escritos perto da linha da morte, do fecho antecipado em duas horas por causa de um encarte publicitário, perigosamente em cima da hora de encerramento de um colégio junto à Rotunda do Aeroporto.
Setas, setas, setas.
Agradeço as epifanias, o sussurrar dos anjos a alertarem-me para perigos, para maldades e, por vezes, a guiarem-me às escuras até ao meu destino.

O senhor Guilhermino ligou o número geral. Não foi nem a Fátima nem a São que lhe atenderam a chamada, porque a Fátima e a São também se foram embora, substituídas por um gravador. Agora anda tudo doido a premir do um ao nove no teclado, geralmente desistem, mas o senhor Guilhermino deve ter premido a combinação de números que abre o cofre do tesouro – 7 - 3 - 7 – e o meu telefone, enrodilhado de fios, tocou.
A voz era sumida, apagada, de início. O dedo indicador carregou com força numa tecla do telefone Nortel que tem desenhado uma grande coluna de audio.
Alguém me alertou para puxar do papel e da caneta. Era, certamente, uma grande história, impublicável. Tanto pior para as publicações pagas. Ainda havia um blogue para alimentar a migalhas de serviços mínimos.
O senhor Guilhermino ainda não tinha dito que era cego, e que as noites da sua infância tinham sido passadas com os braços cruzados ao peito, e eu não poderia sequer imaginar que os joelhos do senhor Guilhermino haviam de ser partidos por um marinheiro numa rua sombria dos Anjos. Eu não sabia nada disso, mas o papel e a caneta já estavam preparados para guardar a história do senhor Guilhermino, para gravar a sua voz sumida em letra miudinha.
Foi no verso de um fax da câmara de Lisboa. Três páginas para três horas de monólogo telefónico. Três páginas de papel fino e brilhante, escritas com uma letra minúscula, umas vezes escritas na horizontal, como nos ensinaram na escola à força de reguadas, outras na vertical e na diagonal, porque a mão sabia à partida que a narrativa não seria linear: o senhor Guilhermino começou mais ou menos pelo início, mas logo depois foi ainda mais trás, pulou várias vezes para o presente, se não me engano conjugou verbos no futuro, recuou, andou para os lados como caranguejo. Três folhas cheias de setas, guardadas religiosamente à chave, sem as quais eu já não saberia escrever as façanhas do senhor Guilhermino.
Andam comigo para todo o lado na mala Balenciaga. À espera do segundo capítulo.

7 comentários:

Carrie disse...

Setas! Eu também faço setas. Aos molhos. E eu gosto dos teus textos. Muito.

Isa disse...

tb eu, tb eu. MUITO

Isa disse...

hoje li um artigo teu sb o jardim da estrela. adivinhei que so poderia ser teu na primeira linha do dito. tá lindo... bjs

[ t ] disse...

:)
menina das palavras às setas. sempre àprocura de corações puros :) quando vamos a leiria?? quando??

[ t ] disse...

red is madrinha weeee

Dia disse...

Madrinha, já estou a bordar o véu!!! Está a ficar lindo, mas são 220florzinhasss aiiiiieeeee

Anónimo disse...

red is madrinha???
Já está cuase tudo visto...