quarta-feira, janeiro 10, 2007

O senhor Guilhermino I

Aparentemente, já todos tiveram que aturar o senhor Guilhermino. Mas não cuidaram de saber e muito menos de reter o nome que consta no seu assento de nascimento deste homem que nasceu em 1920, nem tão-pouco tiveram a paciência de o ouvir até ao limite de duas orelhas escaldadas e metamorfoseadas à forma do auricular de um telefone da marca Nortel.

[E, entretanto, perdoem a ausência, mas houve crianças febris com amigdalites que se transformaram em otites, houve visitas surpresa de um cigano ítalo-brasileiro-irlandês no dia de aniversário do meu blogue, houve correspondência secular dos morgados de Mateus a ser revista no Ibook, e há e continuará sempre a haver corações tão secos e espalmados como os dos bacalhaus a lerem e a copiarem este blogue de fio a pavio – ai, ai, os direitos de autor –, com más intenções, com intenções cretinas, até, coisa que devia dar suspensão na Ordem dos Advogados, todo esse trabalho, um gasto supérfluo de energia para serem abatidas mais árvores (meus queridos eucaliptos, perdoem) e interpostos mais processos judiciais de má-fé, ah, sim, e há também muita estupidez à mistura, sendo que tudo isto atrasou a produção literária]

Todas as redacções têm um senhor Guilhermino. À parte do senhor Guilhermino, nós também temos a dona Clementina, que em 363 edições anuais impressas em papel de má qualidade, há-de nos fazer chegar pelo menos 300 cartas ao director, sim, cartas, nada de emails, mais eucaliptos abatidos, mais dividendos distribuídos à Portucel, mais um selo lambido com a língua, e no fim do ano e das três centenas de cartas, como é uma querida, a dona Clementina ainda envia uma caixa de chocolates.
E havia também um tenente-coronel da armada que escrevia uns faxes com uma caligrafia muito bonita, mas esse estava zangado com o mundo, e com alguma empresa cotada também, se não me falha a memória.
O Manuel Acácio, da TSF, tem senhores Guilherminos e donas Clotildes aos magotes, e eu já ouvi o caríssimo tenente-coronel através das ondas hertzianas no fórum TSF, mas o senhor Guilhermino, o meu, o que nunca ninguém teve pachorra para aturar durante duas horas e meia interrompidas por dois minutos para eu poder fazer um xixizito, é especial, deveras especial e eu descobri isso aos dois minutos de conversa e, como a conversa é como as cerejas, deixei-me estar e os meus ouvidos encheram-se de frutos vermelhos suculentos, retalhos de uma vida às cegas, que já conta com 87 primaveras apesar de o senhor Guilhermino não ter tido nunca a oportunidade e o privilégio de ver uma flor de laranjeira, ou um jacarandá em flor.

É. O senhor Guilhermino nasceu cego. Amarelo e débil, acrescenta ele, o que é muito estranho, na realidade, porque o senhor Guilhermino nunca viu a cor amarela, e assim sendo, vai-se lá saber porque é que uma referência cromática se assume como facto tão relevante da sua infância, mas, se calhar, em garoto cheirou uma mimosa em flor e ficou com a ideia que o amarelo é a cor que cheira a mimosa, e a flor da mimosa cheira bem, mas o que o que é demais chateia e a mimosa em flor às vezes tresanda tanto que até faz dor de cabeça.

O senhor Guilhermino nasceu cego dos olhos, mas há cegos que vêem muito, e o senhor Guilhermino vê coisas do arco-da-velha há 87 anos, e viu-as e continua a vê-las mesmo quando está de olhos fechados, porque a si, tanto lhe faz, e Deus não dorme, como os cegos, e alguma vantagem lhes teria que dar por levarem a vida sempre às escuras.
Infelizmente, o senhor Guilhermino teve má sorte, não por ter nascido cego, mas sim porque os seus pais sofriam de uma cegueira que é bem mais comum neste mundo e há muito tempo, uma cegueira branca e milenar.
Os pais do senhor Guilhermino tiveram, durante toda a vida, o dom de as suas retinas reflectirem ao cérebro, através de impulsos eléctricos, as imagens de tudo o que é belo e de tudo o que é feio neste mundo, mas passaram ao lado da pessoa extraordinária que tinha uma mistura dos seus sangues e uma tez, ao que parece, um tanto ou quanto amarelada.
O senhor Guilhermino ainda era o menino Guilhermino quando foi enxotado para uma instituição em 1927. Os pais fugiram para o Brasil com os filhos que viam o mundo a cores.
O meu pai era maluco, fez-se um vadio e testemunha de Jeová. O senhor Guilhermino surpreende-me a cada três palavras que profere, deitado na cama, com uma voz muito apagada e rouca, sempre à cata de ver com os ouvidos se chega a senhora que trata dele, encontrada num anúncio classificado que foi publicado n’O Crime sem sucesso por mais de um ano. Não se amofine, senhor Guilhermino, ainda há pais que são vadios, ainda há pais que são malucos.
Deixaram-me entregue àquela gente sem coração.
Se eu estava a dormir o meu sonho angélico chegavam à camarata e destapavam-me, destapavam-nos, destapavam todos os ceguinhos. E tínhamos que dormir com as mãos cruzadas no peito, porque se eu tivesse os braços caídos, junto ao corpo, era porque estava a fazer coisas feias. Eu não sabia o que eram coisas feias. O ódio com que batiam nas crianças cegas. Precisávamos de pancada. O vigilante entrava pela aula dentro e desatava à bofetada. E a professora era ceguinha também, nada podia fazer.
O senhor Guilhermino foi criado numa Misericórdia sem misericórdia colada ao mar em São João do Estoril, mas com mais ou menos bofetadas e lençóis destapados a meio da noite, aquela gente sem dó não embruteceu o senhor Guilhermino, que aprendeu o mais belo dos ofícios: a música.
Não lhe valeu de muito o grau superior do Conservatório, o arco e a elegância do seu violoncelo ou dos seus dedos ágeis no marfim do piano. A vida dos cegos ganha-se na rua, mas o Salazar nunca fez mal aos ceguinhos, garante o senhor Guilhermino, que dispara contra o 25 do 4 implacável, nos contextos mais absurdos.
A sua companheira de vida não a conheceu através de anúncio, mas andou lá perto.
A minha mulher ganhava dois escudos a lavar casas à escova. Na terra, guardava as vacas desde os cinco anos e bebia água fresca da fonte. Veio para a cidade servir. Queres vir para a minha companhia? As mulheres dedicavam-se de alma e carinho porque precisavam, agora não precisam de nós para nada.
As mulheres, senhor Guilhermino, precisam de se dedicar a algo ou a alguém; é esse o nosso fado, nada mudou, a conta bancária pode ter até quatro dígitos no início do mês, as contas podem até estar todas pagas, mas as mulheres precisam de se dedicar.

(continua)

18 comentários:

Leonardo Ralha disse...

Eis um regresso em força.

AnadoCastelo disse...

Espero que a Carolina já esteja bem. E quanto ao teu post, que maravilha, esse senhor deve ter histórias fantásticas. Apanhar um senhor desse calibre é uma benção. Beijinhos

Isa disse...

é verdade, um regresso em grande. tenho pena q a ausência se tenha dado por motivos menos bons, a doença da Carolina, espero que esteja boa, e esse cretino que anda por aí a gamar-te os textos e tal. tu poe-te em cima dele, salvo seja, plágio é crime! e se alguém tem de ganhar algum c os teus textos es tu olha que merda. bjs mil

Luís Filipe Rodrigues disse...

Fogo!
E tenho saudades.

mac disse...

muito bonito.
especialmente a pontinha final, a derrapar para a vida que se prova hoje também com doce, depois de tanto amargo.

Heiabelha disse...

Também conheço de perto uma senhora ceguinha que via muito bem e hoje não vê nada a não ser a escuridão. Tem um netinho, perdeu um filho e não desiste de viver. É assim. Acaba um dom, começa outro.

M.M disse...

O Sr. Gulhermino é demais e o seu texto também, caso para se dizer o que ultrapassará o quê, se a realidade se a ficção.

Agurdo a continuação :)

bruno disse...

Cara(o) Dia, cá cheguei, só hoje, mas com o tempo do (e direi mesmo, ao) meu lado.
Felicito-a pelo blog e pela generosidade dele. Também pela não cedência ao apontamento breve, que or trás de vestidos cheios de ecos e ressonâncias ou sugestões, às vezes não esconde mais do que a pior cegueira de todas: a que nas coisas vê palavras.
A sua Escrita começa por, primeiro, não ser sua. E é a essa generosidade que vou voltar - talvez como o Jobim do "sabiá", mas nunca como governadores californianos.

Receba um beijo de bons Dias.

JPH disse...

não há tenentes-coroneis na Armada, pá. ´Há capitães de fragata.
Bjs
JPH

Leão da Lezíria disse...

Marcadores (meus): "A Dia continua a escrever de forma divina"

(ou então "As saudades que eu tinha de deixar aqui um comentário..."

Belakordada disse...

Este é um lado do Sr. Guilhermino!Eu conheço outros, talvez não tão românticos, concerteza marcados pela dureza da sua vida,impossíveis de se lhes ficar indiferente!
Já lhe aturei muitas reclamações!
Folgo em saber que ainda anda por aí!

Isa disse...

beijo grande querida, rápidas melhoras (andei a ler o papagaio...)

Anónimo disse...

sou capaz de estar horas a ouvir esta música.

Anónimo disse...

«assento» e não «acento» de nascimento; é a diferença entre bem escrever e escrever bem, não é?

Dia disse...

Meus caros amigos,
Muito obrigada pela enxurrada de comentários simpáticos. Preparo-me agora para escrever o segundo capítulo da saga do sr uilhermino
Caro anónimo, será imediatamente rectificado o assento. O senhor anónimo lá saberá o que é escrever bem, mas devo-lhe dizer que alguém muito próximo da sua pessoa me contou que o sr anónimo até gosta muito dos meus textos. Assim que sair o livro do Tralha, faço questão de lhe autografar um exemplar.

Goiaoia disse...

Bem, @ anónimo é extraordináriamnete culto, sm senhor, mas tão inseguro... coitadinh@.

Apesar de acertivo ainda duvida dos seus conhecimentos e necessita de aprovação, "num é?"

Mas que grande contributo. Sem esse comentário o texto d'o Guilhermino num seria o mesmo. Um grande bem haja para você

Anónimo disse...

gostaria de ler mais sobre o Sr. Guilhermino. Seus textos são ótimos.
Quem sabe não seja possível novo contado telefonico para nos brindar com outras historias.

Anónimo disse...

gostaria de ler mais sobre o Sr. Guilhermino. Seus textos são ótimos.
Quem sabe não seja possível novo contado telefonico para nos brindar com outras historias.