quinta-feira, maio 24, 2007

II

Eu não sei porque os fazem tão feios.
Os edifícios da segurança social, digo, deve fazer parte da breve nota da pasta da tutela que acompanha o caderno de encargos dos concursos públicos: por favor, senhores arquitectos, não se esmerem, esmerdem-se, queremos feridas urbanísticas a rasgar o céu, destruam o sistema de vistas sem qualquer pudor, violem as cérceas definidas pelos PDM, aliás, nem olhem para ele, dêem-nos empenas cegas para colar telas publicitárias gigantes, aqui amamos o fel, senhores arquitectos, o fel tem mesmo tudo a ver com os desgraçados que nos vêm pedir esmola à porta, vão trabalhar malandros, e eu pensava nisto tudo enquanto saía da segurança social de Ponta Delgada e me encaminhava para o carro encarnado nipónico, cuja marca não consegui fixar (Nissan, salvo erro, 191 mil quilómetros de carro de combate rasteirinho à estrada, ideal para as curvas e contra-curvas que fazem as delícias do Fittipaldi que há em mim; a Magui sempre disse que eu ia ser um Fittipaldi de saias, ela dizia isto quando eu não tinha incisivos frontais nas gengivas e eu não sabia o que isso queria dizer, mas acabou por ser verdade).

Era a hora do recreio.
E o carro encarnado ainda não tinha 191 mil quilómetros registados no contador, mas andava lá perto. Eu sentei-me atrás do volante sem esperança de conseguir em tempo útil um comprovativo da segurança social de que não era uma malandra como os demais que ali pedem esmola. E esmagada por uma tristeza infinita eu disparei para o lugar do morto, sem coragem para fazer rodar a chave da ignição e, por isso, optei por fazer baixar o vidro e atear um cigarro Além Mar: só me apetece chorar, e aquilo soou um pouco despropositado - o fado da segurança social.

Poucos segundos passaram, as crianças continuaram a guinchar no recreio, e o telefone tocou.

Aconteceu uma coisa muito má, disse o Leonardo, que nem esperou para respirar fundo num acto involuntário de ganhar coragem, ele disse logo que a Magui estava bem.
Foi o avô, ai o avô, mas, do outro lado, o impensável foi transmitido através da tecnologia GSM. Não. Foi o Zé Ralha, ele morreu.
E como estávamos em dia de os impensáveis acontecerem em catadupa, eu senti o cheiro das chagas que abraçavam a rede metálica de protecção da escola secundária, e eu sabia que as mesmas chagas estariam a trepar pela fachada da casa do Zé Ralha, e pela escarpa junto ao eucalipto que decidiu cair no dia em que o avô teve um AVC, e eu voltei a dizer, porque assim é que era certo pela ordem natural das coisas, não estás enganado, foi o avô.
E chorei. Chorei como nunca imaginei que pudesse chorar pelo Zé Ralha, nem eu sabia que o meu avô teria que dizer vezes sem conta ao telefone, não, não fui eu que morri, foi o meu filho Zé Manel, e eu chorei magoada porque ele não se ter vindo despedir de mim, e a partir daquele instante, fiquei à espera de um sinal do meu pai, eu sempre achei que ele viria despedir-se de mim de uma qualquer forma sobrenatural ao qual nos habituou com as suas histórias de bruxos e feiticeiras, reparem, ele nunca ia morrer porque era feito de outra matéria, não lhe corria sangue nas veias, mas pós de perlimpimpim, e depois de muito chorar, e sem forças nas pernas, eu segui amparada pelo João meio cega, seguimos até a um jardim que o Zé Ralha devia ter conhecido. A única coisa extraordinária que aconteceu, mas eu não sei se foi obra do Zé, porque eu olhava para o céu e lá em cima ainda não havia ainda nuvens pintadas por si, ele contou-me há muitos anos atrás, quando estava à deriva no atlântico, sem fé de ser encontrado, sozinho, a boiar de cansaço, ele disse-me que pensou que ia morrer, e que nos viu a todos, menos ao Leonardo, a dizer adeus. Eu espero que desta vez o Leonardo tenha estado lá ao nosso lado, mas eu procurava em todo o lado o meu pai pelas ruas de Ponta Delgada e não o encontrava, até me cruzar com um bebé, uma criança de caracóis negros que olhou para uma mulher de olhos inchados que estava a ser arrastada por um homem de caracóis loiros, e essa criança olhou para aquela mulher que não sabia, que não sabe ainda porque está destroçada, e lançou uma gargalhada.

9 comentários:

Isa disse...

cum cacete... estou sem palavras. e digo-te, o texto tá LINDO...
Bjs

Anónimo disse...

Sabes, Dia, os teus textos dão-me sempre aquela sensação de claridade e frecura, assim como acontece quando acaba de chover e o ar fica límpido, transparente, com os primeiros raios de Sol a trespassarem timidamente as nuvens e as pequenas gotas de chuva que se desprendem das coisas aqui e ali ... Ou isso ou os fins de tarde de Verão, lusco-fusco, em que tudo é silhueta e os contornos de todas as coisas se tornam nítidos, meticulosamente recortados contra o céu. Leio-te e surgem estas imagens belas. Divino. Obrigada.

Belinha Fernandes disse...

Isto é publicidade gratuita porque se votar na Bruxinha que queria ser selo dos CTT não ganha nada com isso!Mas ela agradece do fundo do caldeirão!

Fim de Partida disse...

Linda!

Anónimo disse...

Parei neste blog por acaso. Não foi bem ao acaso, foi através de um link de um outro blog de uma amiga.

Assim que comecei a ler os textos fiquei imediatamente impressionado.

Parabéns! Excelente escrita.

Fou adiciona-lo aos meus links...

Mary Mary disse...

Os jacarandás devem estar de mau com o mundo. Além de florirem tarde agora estão a perder as flores. Hoje fui agredida por eles vezes sem conta ou talvez fosse para reparar neles e perceber que de repente o chão ficou roxo. E ainda por cima é ao pé do teu coreto! Espero que esteja tudo bem contigo! Não vale a pena dizer que adoro os teus textos porque há 2 anos que é assim! :D

Beijinho grande

linfoma_a-escrota disse...

VOYEUR AMADOR


Se tivesse câmara aqui
Filmava-te e perseguia-te
Até aos confins deste restaurante
Onde és escrava paga,

Não falarei apesar desse olhar,
Não sou eu assim,
Mas enquanto aqui estiver
Amo-te por não te conhecer,

Serei bom e a
Declaração que juro ficará comigo
Na intriga de ti que és
Leio mistério como país tropical

De formas róseas como gosto,
Escondido e imperfeito,
Sem a presunção da verdade
Nem pista do fim do mundo.

Árvores azuis explodem
Do teus peitos e cantam em francês,
Língua do romance,
Necessidade de que ninguém fala,

Ninguém...

É pena ser
Fantasma vísivel nesta toalha,
Lento a ser eu a procriar êxtase
Sob o tecto da clarabóia de
Algum espectro inseguro
Que venha falar baixinho a meu ouvido
sussurrando imagem óbvia de consentimento,
Que a curiosidade
Diga o resto,
Tudo será bem sucedido
Sem gostos por máscaras mentirosas
Dalgum falso altruísmo exacerbado,
Aprendendo a viver as estrelas dos momentos
Presentes.

2003
in FOTOSINTESE




WWW.MOTORATASDEMARTE.BLOGSPOT.COM

Unknown disse...

Preferimos Esquerdalhas ou Faschizoides ?

Bata em Mao!

http://absolutamenteninguem.blogspot.com

Dia disse...

Aqui, onde ninguém me vê, quero-vos agradecer a todos.