segunda-feira, outubro 02, 2006

Banda sonora

Já disse isto ao chefe, numa manhã em que quando ele chegou já ia eu no meu terceiro café grátis (por enquanto, aproveite-se o café enquanto ele dura, enquanto ele não tem questões de redundância para resolver no quarto piso) e quarto Davidoff fumado despudoradamente a um canto de uma redacção deserta.
A vida devia vir com banda sonora.

Ele chegou e perguntou-me pela performance do Ipod 30 Gygas que os malucos dos meus amigos decidiram oferecer-me no dia 22 de Julho, e eu respondi-lhe:

– Chefe, eu nunca tinha sentido a Fontes Pereira de Melo como senti esta manhã.

E depois percebi que ele não estava a seguir o meu raciocínio e expliquei-me melhor: – É a cidade, T, a cidade dói-me menos com a banda sonora certa.

Nesse dia, era Tiersen, pianinho do Good Bye Lenine e tudo pareceu perfeito: a bófia na esquina da António Augusto de Aguiar a guardar os operários que estavam armados em toupeiras dentro dos esgotos, as casas-fantasmas que só eu miro e admiro, até o Hotel Sana com a sua loja que vende galos de Barcelos e nossas senhoras de Fátima cujo manto é meteorológico (e vocês não podem imaginar o quão perfeita é a banda sonora sob a qual escrevo estas palavras, e por cima do som de anjos, e de espantas-espíritos feitos de pedacinhos de vidro, eu oiço os meus dedos a martelar, e parece mesmo que esta percussão doida faz parte da música) pareceram-me sublimes, e sou capaz de jurar que se pôs um céu de milagre quando atravessei a rua por um amaranhado de carros parados à espera, pacientes, de cehgar a sua vez de entrar na rotunda que está guardada por um leão.

O Ipod estava na mala quando, pela primeira vez e descaradamente, infringi a lei, não esquecerei, já tive um termo de identidade e residência por um crime grave que não cometi, queixa do outro que me fode o juízo de três em três semanas (quem mais poderia, não é?), e tudo me diz que sou capaz de me viciar nisto como em qualquer outra droga (não me deixem entrar no casino, por favor, é um pedido).

Ele viu-me as mãos a tremer, e até tirou uma foto das minhas bochechas rosadas, prestes a explodir, e o peito muito para fora, parecia três quilos mais magra, quase não respirava, e sussurava, os olhos nem pestanejavam e a voz saía com um tom que nunca se tinha ouvido. Na rua de baixo, o João pensava que eu já tinha ido presa. Quatro avenidas a seguir, a minha mãe de alerta máximo, prevenida de que, se calhar, teria que ir à esquadra, pagar a caução.

O Ipod ficou na mala, não era preciso: a vida decorre em película, às vezes com uns planos e argumentos muito maus, mas desta vez, os heróis da trama estavam bem iluminados, e os diálogos, ou a falta deles, prendeu os olhos de todos à tela, naquela tarde, as vacas foram a leilão na pala do Siza e dois seres descobriram um propósito na ausência. Esta era a banda sonora.

2 comentários:

Miguel Marujo disse...

[a label está errada: e algo de extraordinário acontece, devia ser o mote]

Miguel Marujo disse...

Li e percebi. ;) [Mas são pequenos extraordinários episódios.]