sábado, outubro 14, 2006

Rapariga peculiar

Ela é uma rapariga tão peculiar.

Canta Mozart no fumódromo, ao fim-de-semana, e, em dez minutos da sua hora de almoço, faz uns cartazes giros para convocar eleições para a Comissão de Trabalhadores, pior, voluntaria-se para a dita cuja CT, só que a vontade de subir para cima de um armário, pode até ser o do economato fechado a cadeado, e gritar a password do seu Compaq (é o seu calão favorito) é cada vez maior, e, sim, ela fala como um carroceiro, uma asneira feia a cada sete palavras, fala demais, é uma pena, devia aprender a estar calada, sobretudo, a calar as suas mãos muito magras, e é arrogante, por um lado, insuportável, julga que todos são uma cambada, e gostava de saber revirar os olhos (só os revira, instintivamente de prazer, disseram-lhe) e suspirar "Que gente", e por outro, por outro, é a mais doce das criaturas, entrevista os loucos desta cidade, e, parece que a esposa do patrão leu dois mil caracteres que ela publicou por descargo de consciência, ciente que nada do que escreve muda a realidade, e que o Aníbal já não vai morrer num quarto pestilento onde se passeiam ratos despudorados.

Dizem-lhe, em tempos foram colegas de secretária, dizem-lhe, és uma rapariga tão peculiar, mas o extraordinário não é que lhe tenham batido palmas no trânsito enquanto ela cantava Mozart porque não tinha cigarros na mala e porque o demónio do estacionamento não estava acordado, nem que, atónito, com a mesmíssima melodia, um outro condutor tenha enfaixado o céu pára-choques na traseira de um veículo que seguia a sua frente. O que é verdadeiramente assombrador não é que ela cante, escreva, pinte, dance, ame, viva, erre, lute, sofra. É que tenha sido uma criança a escrever a dita cantilena.

5 comentários:

A. Pinto Correia disse...

Era efectivamente uma rapariga muito peculiar. pressinto alguma ironia neste texto que stá magnífico. Bom dia conterrânea

dade amorim disse...

Tive aqui o gosto especial de ler um texto delicioso em português lusitano, lisboeta, tão diferente do que seria aqui no Rio de Janeiro, que quase não resisto à tentação de "traduzi-lo" para o carioquês... :O) Beijo.

Luís Filipe Rodrigues disse...

Notícias de última hora:
Hoje uma jovem sob a influência de ácidos descobriu que toda a matéria é meramente energia condensada numa baixa vibração, que todos nós somos uma consciência experimentando-se a si própria subjectivamente, não existe morte, a vida é apenas um sonho e somos a nossa própria imaginação, agora passamos à previsão do tempo…

Dia disse...

Estou de volta. Bom dia a todos, conterrâneos e irmã carioca, e também ao meu amigo da dupla identidade.

Carrie disse...

soube que há novas histórias da rapariga peculiar? haverá tempo para as contar?