segunda-feira, outubro 23, 2006

Pequenos apontamentos de beleza

E no meio de tudo isto há apontamentos de uma beleza simples, da que dói, e que são da mesma matéria que o suicídio premeditado da octogenária que se chamava Maria Teresa de Jesus.

(foi mesmo assim. tirou os anéis dos dedos, o fio de ouro do pescoço e em último lugar a aliança, e alinhou-os na bancada da cozinha. subiu à banqueta, tirou os pés dos chinelitos de fazenda, fez questão de os colocar perfeitos na perpendicular e só depois fez aquilo que tinha a fazer, aos primeiros pingos de chuva que lhe caíram na cara)

Um telefonema ao início da manhã, a valsa de Amélie em toque monofónico a sair da mala Todds que viajou dos Emirados Árabes Unidos para o meu ombro direito há mais de três anos e nunca mais de lá saiu, tudo isto no Lidl de Alvalade, que é um Lidl mais ou menos decente, com um rácio equilibrado de gente feia por metro quadrado, o meu outro ombro, o esquerdo, eriçado, com frio, junto à arca e às salsichas alemãs refrigeradas, para ser exacta, a minha mãe a chorar, eu a pensar que tinha morrido algum gato, e ela diz

a Dona Teresa mandou-se da janela,

e nesse momento, a força é-me arrancada das pernas como num roubo por esticão, num micro-segundo vejo à minha frente o sorriso precioso da minha vizinha em frente aos iogurtes de aromas a 1,49 euros, as doze unidades, e noutro, logo a seguir, transporto-me para o futuro, para o dia em que a Magui há-de partir, muito curvadinha e velhinha, e sei que, nesse instante, as pernas não vão só ficar trémulas, vou ficar tetraplégica por alguns minutos, talvez horas, e cair estatelada no chão sem conseguir chorar ou dizer uma palavra.

Chorar no corredor dos congelados.

Mas porque é que ela faria isso, mamã?
E o João a abraçar-me, e eu a tirar os packs de quatro leites de chocolate radioactivos que deixam manchas que não saem nem à força da lixívia, eu sem acreditar, a chorar com soluços, e os fregueses de Alvalade a passarem com os seus cestos do Lidl sem sequer olharem para trás, como se fosse perfeitamente curriqueiro, ordinário, comum, que alguém irrompesse em lágrimas junto à pimenta e à mostarda. E o João a chorar também, parece-me, e isto é coisa de amor gigante.

Depois, as lágrimas de crocodilo, as lágrimas de crocodilo são também belas, quem me disser o contrário não sabe do que fala, eu estive hipnotizada no lencinho de mão da carpideira réptil que sempre quis mal à minha querida vizinha, que me contou a Magui, era enfermeira. A vizinha. Não a carpideira. E as capelas da Servilusa, na Igreja hedionda de Santa Joana Princesa, onde, outrora, durante muitos, muitos anos, havia um canavial pegado à Quinta dos Lagares d’El Rei, as capelas com tapetes de arraiolos no chão e serviço de cafetaria na mezanine, e o sermão despropositado do padre a quem não terão, certamente, dito que a defunta era uma velhinha voadora desesperada, que ninguém decide quando é a hora de morrer, belíssimo, estaria bêbedo, e a minha boca aberta de espanto, tudo perfeito, a começar na racha na parede ao meu lado, como se naquele instante tivesse havido um pequeno terramoto, e o filho da dona Teresa, no fim, a dar-me uma palmadinha no ombro e a pedir,

não chore,

e depois, logo a seguir a mim, a ir socorrer depressa a empregada, a mulata escultural de traseiro que não obedece às regras básicas da gravidade, que trouxe um enorme ramo de orquídeas com um laçarote roxo.

(a dona Teresa gostou muito delas)

E o pai da Isabel, a quem chamavam cachalote fora d’água na quarta classe, a Isabel que, agora sim, está disforme e parece ser minha mãe, que numa aula de olaria respondeu à pergunta
o que é a lambugem?, com a simplesmente genial reposta, A lambugem é para lambujar o barro.
Toma lá, que a miúda nem era nada parva e não se sintam diminuídos se não souberem o que é lambugem, eu também não vou dizer porque não sou nenhum dicionário, só que a Isabel teve um filho do mecânico da rua em idade imprópria, mas o seu pai, que surpresa incrível, é cangalheiro e eu conhecia-lhe apenas os dotes de mago com os mais pequenos, mas, afinal, até faz bastante sentido - mortos, bebés, são todos anjos, e o senhor de baixa estatura e de armações dos anos 70 tem esse fado nesta vida.
E há um vestido de noiva, o mais simples e o mais barato de uma loja nos arredores da feia Leiria, que o Leonardo insiste que é bonita apenas porque aquele pedaço de terra onde seria bem-vindo um tsunami é teimosamente conservador. E há uma demanda pelo véu perfeito, com renda de guipure, ou veneziana. E um café de fino mau gosto, obra de autor, inenarrável, coisa para foto-reportagem detalhada, os estuques nos tectos, as pedras nas paredes, a escolha cromática, os tecidos, os bibelots, as plantas de plástico, um espaço que é um vórtice, uma outra dimensão, e que, num toque de fairplay incrível, colocou no letreiro comercial o seguinte nome de baptismo: Sem Niveau.

5 comentários:

Miguel Marujo disse...

a beleza das coisas está nas pequenas coisas: grande texto de beleza.

A. Pinto Correia disse...

Fiquei - poderia ser de outra forma? - fascinado com a forma como desnudas sentimentos e com a beleza do texto. A senhora que resolveu por termo à vida certamente irá lê-lo algures e sorrir.
Um beijo.
(Há coisas que doem muito)

SGTZ disse...

Já tinha saudades de um post assim.

Dia disse...

Grata, meus caros.
Vou tentar aliviar o astral

Goiaoia disse...

No último poste escutei mas não ouvi... perdi-me nas rendas literárias com que ilustras os textos. Agora ouvi e não discuto. Nada.

De resto, nem sei bam porque comento... há assuntos em que devia quedar-me mudo e calado. No entanto e apesar de tudo: que belos textos.