sexta-feira, julho 15, 2005

Columbófila

margarida terenas

Eu sempre gostei de pombos.
Salvo pombitos bébés às dúzias, todos os anos, nos jardins das Avenidas Novas de Lisboa. Bom, a Magui é que os salva - alimenta-os à mão, durante meses e meses a fio, com a paciência de uma verdadeira mãe galinha -, eu, da minha parte, limito-me a apanhá-los.
E isso é um grande feito, permitam-me, porque eu tenho pavor a pássaros. Duas péssimas recordações - daquelas que só saem da masmorra para onde foram desterradas há muito tempo quando temos um blog - explicam o meu temor.
Ter a perfeita noção do momento em que passei a ter medo de pássaros poupa-me uma trabalheira danada e muitas horas no divã de um psiquiatra, quando e se algum dia tiver dinheiro para isso (prefiro guardar o dinheiro da terapia, continuar a fazer catarses quase que diárias na minha (T)ralha e, qualquer dia, aumentar as mamas para um tamanho acima).
O meu medo irracional dos pássaros não tem nada a ver com um determinado filme de um senhor gordo, que se deixava fotografar de perfil, de charuto na boca. Não senhor. Eu sei que os passarocos não me vão fazer mal. E gosto tanto de pássaros (quem me dera voar) que ainda é mais difícil de perceber porque é que fico com suores frios e taquicárdias sempre que me aproximo de um canário, piriquito, caturra e, claro, pombos.
Mas é fácil. Muito fácil. Chama-se recalcamento (gracias senhor Freud, por dar o nome às coisas, mas por acaso, podia ter dado um nome mais jeitoso, que não me agrada nada ser recalcada).
Antes de termos várias dezenas de gatos em casa, tínhamos piriquitos. Mais de uma dezena deles. Havia o Cobalto (que era azul cobalto, como o nome indica), a Francelina (que era uma verde má como as cobras), o marido da Francelina era o Francisquinho - cujo crâneo, os nossos gatos, desenterraram de um vaso, muitos anos depois de o bicho ter ido para o céu dos pardais, e se fartaram de brincar com ele como se fosse uma bolinha -; havia a Dona Branca, que era uma albina, havia uma lutina cujo nome não me recordo; e houve, também, entre muitos muitos outros seres alados, cujos nomes a minha memória colocou em arquivo morto, a Fifa - uma pintassilgo que o Leonardo e a malta do bairro encontraram acabada de nascer, num ninho, por debaixo de um plátano da Avenida dos Estados Unidos da América.
Os passarocos - a Magui tinha também bicos-de-lacre, lembro-me agora, uns singelos e minúsculos passarinhos cor de chumbo, com bicos encarnados - andavam à solta lá por casa.
A senhora minha mãe era tradutora, passava a vida à frente de uma máquina de escrever Olivetti, e os pássaros enfileiravam-se nas pontas do rolinho onde se colocavam as folhas. Assim, à medida que a Magui dactilografava as suas traduções químicas, de francês para português, os bichinhos iam andando para a direita, aos pulinhos. Quando a linha chegava ao fim e uma campainha fazia tlim, a Magui puxava uma alavanca, descia uma linha e recuava tudo para a esquerda. Passarocos incluídos. Um espectáculo digno de se ver, que, certamente, haverá registo fotográfico lá por casa.
Os piriquitos eram como coelhos. Multiplicavam-se à velocidade da luz. E a Magui que sempre foi péssima em controlo de natalidade (por isso mesmo, chegámos, aos sessenta e muito gatos num apartamento), nunca tirou os ninhos das gaiolas.
A postura dos ovos era uma emoção (eu tinha menos de seis anos, isto foi antes de eu entrar para a primária), o nascimento dos bébés - aliens despenados e cegos - então nem se fala. Abríamos o ninho mil vezes por dia para ver se já havia bébés, apesar das súplicas da senhora minha mãe para não o fazermos.
E, numa dessas vezes, eu abri o ninho às escondidas, um ovo resvalou para o chão, partiu-se a meus pés, e o chão amarelo da varanda da cozinha ficou encarnado de sangue.

Lembro-me de gritar como uma louca e pouco mais.
E, se nunca me refiz de ter morto aquele piriquito, pior visão de terror tive num Verão, pouco tempo depois disto, que fomos passar à casa do avô Ralha, nos Capuchos.
A passarada, claro, veio atrás. Uma praga de formigas negras, grandes, esfomeadas, matou-os quase todos.
Outra visão horrenda: a Magui na casa-de-banho verde, com o chuveiro e os piriquitos nas mãos, a tentar tirar-lhes o manto de formigas das penas...

A Qui Qui está aqui (até rima), no outro lado, a perguntar como é que está a correr este post. "Bem...", disse eu. Mas acrescentei logo: " mas já estou a contar historias que não era suposto; os posts têm vida própria".

Este post era sobre pombos. Sobre pombos correio (já apanhei um pombo correio, a quem dei comida e água e que, posteriormente, entreguei à Associação Columbófila, que fica pertinho da Avenida da Igreja), amarrados pelas patitas, pelos seus donos, com fios de computador.

Este post era sobre esta senhora da foto -, Margarida Terenas, filha de um senhor que ajudou a implantar a república a 5 de Outubro de 1910, Feio Terenas (googalizem, se quiserem saber mais sobre este bravo republicano).
Era minha inquilina, a Margarida, daquelas que pagam uns míseros 50 euros por uma casa de seis assoalhadas.
Morreu velhinha, solteira, sem filhos, sobrinhos ou enteados, apenas uns parentes distantes da família Champalimmaud, com demasiado cacau para se preocuparem em reclamar fosse o que fosse da prima solteirona e pobrezeca (afinal só vivia em seis assoalhadas na Rio de Janeiro...).
Eu reclamei-lhe o passado. A Martinha tem imensos móveis da Dona Margarida. O sofá de onde vos escrevo, por exemplo, foi estofado de laranja, mas era da solteirona Terenas.
E as fotos. Tenho quase todas as suas fotos de família. Quando estávamos a retirar os seus pertences da casa para a vendermos - eu já estava muito grávida e aquilo parecia que nunca mais acabava - fazia-me muita confusão, deitar o passado daquela senhora para o lixo.
E, desde então, colecciono fotos antigas, não resisto e sempre que vou a uma feira de antiguidades compro-as, fico a imaginar histórias para os seus rostos, adopto-os como a minha família, porque a minha verdadeira, de sangue, está cheia de segredos e omissões (ninguém me soube dizer, no outro dia, em que eu andava em pesquisas genealógicas - introduzida no vívio pelo JPH -, como se chamava o meu bisavô Correia, por exemplo, e eu apercebi-me que não sei o nome completo da minha avó Zá).
Guardei o mais que pude da Margarida Terenas. Tenho pratos, tenho malas antigas de viagem, um escrivaninha, tapetes, sei lá, tenho tudo e mais alguma coisa desta senhora que eu nunca vi na vida enquanto respirava o oxigénio cá na terra.
E eu amo esta foto. Está mesmo feliz, não está, a D. Margarida?
E eu aposto que hei-de ficar com a mesma cara de felicidade aparvalhada. E há de ser com pombos. Quando eles chegarem a Santa Marta.

Sem comentários: