terça-feira, julho 26, 2005

O dia em que o teu coração decidiu não parar

[Para o senhor da outra reencarnação. Que nos continuemos a encontrar nas próximas.]

"Rápido, vem para casa rápido". Eu estava na esquina da Casa das Lâmpadas, a cortar para a Estados Unidos da América, no Twingo, sei perfeitamente o que trazia vestido, estava bonita, estava bonita apesar de trazer o olhar perdido, afogado na bomba russa, as 50 miligramas de sertralina que me faziam levantar da cama.
Ia a pensar na vida, a Rita tinha-me feito sair de casa uma hora antes - anda, vem tomar café ao Independente, e eu a tomar café com aquele que viria a ser o pai da minha primeira filha, eu a tomar café com ele sem saber disto - e no regresso - tenho tantas saudades do meu Twingo -, quando o telefone toca, percebi logo que o teu coração se preparava para parar outra vez.
"Calma, calma, eu estou bem, liga para o 112, liga só para o 112, eu já fico bem". Eu branca, gatos por todo o lado no teu quarto, e tu aflita, sabias que eu estava por um fio, que não ia aguentar uma segunda paragem cardíaca em apenas uma semana, o teu coração a parar e tu a fingires que não era nada, liga só para o 112, já passa. Eu quero ser uma mãe como tu és para mim. Ainda me mediste a tensão, estava perto dos 20, tão alta como a tua, uma taquicárdia brutal, 180 batidas por minuto, e o teu 50, tem calma, a ambulância já aí vem, mas eu sentia-me muito calma, parecia tudo um sonho.
Ambulância do INEM à porta em três minutos, eu não falava com o Pedro e se, na altura, não estivessemos com um ódio de morte um pelo outro, ele teria enviado um helicóptero para ti, mãezinha - como ele te chama. Aplaudiram a minha calma, os tripulantes e o médico. Gracejei: é o Zoloft e o Xanax. A minha mãe a morrer e eu a fazer graçinhas com fármacos da Pfeizer.
Regresso às urgências de Santa Maria. No meu casaco, um código de barras encarnado e um A de acompanhante escrito à mão, na portaria, contigo deitada na maca, ventilada. Regresso ao banquinho silencioso junto à porta dos cuidados intensivos. Horas a olhar para os meus sapatos, lindos, Pura Lopez, 150 euros salvo erro, sem me aperceber que o tempo passava e toda a minha família estava lá fora à espera de notícias.
"Dispa-se, por favor". Eu a olhar para os sapatos e essa cena a repetir-se. Tu a teimares que não te querias despir, que te querias ir embora, e eu quase a desmaiar, sem saber como te convencer. Tu sem brincos, sem os anéis, sem nada do que é teu, por isso é que não te querias despir, porque ficavas frágil e eu nunca te vi tão frágil, tinhas razão, de bata fininha de algodão verde, muito magra, eu nunca te vi tão frágil.
O coração da Magui decidiu não parar neste dia triste de Março. Nesse dia triste de Março, em que eu passei horas à porta dos cuidados intensivos a olhar para os meus sapatos, tendo a absoluta certeza que estaria perdida se aquele coração parasse de bater, soube que, embora não pareça, tu disfarças bem, sou a tua favorita.

3 comentários:

Anónimo disse...

catártico, concerteza.
e muito bonito, pela suavidade com que escorregaram para as teclas os pensamentos e os sentimentos.

a ausência de um filtro (químicos, sintéticos ou naturais, legais ou não), ou um evento extraordinário...

liga-me e conta-me.

K disse...

está provado que as situações mais dramáticas na tua vida dão os posts mais lindos....

Anónimo disse...

E depois, qdo teve de ficar internada durante a noite e mandaram a família p casa, fomos todos comer qq coisa ao chinês e tentar descobrir uma forma de a manter lá, pq ela não queria ficar... M