quinta-feira, setembro 15, 2005

Dias assim

O dia de hoje dava um filme.
De terceira categoria.
Já imagino, iluminação à portuguesa, falas mal dobradas, sem coincidirem com a a dança dos lábios dos actores - esses seriam feios, porcos e maus, com guarda roupa pobríssimo -, planos mal paridos, com os microfones a aparecerem na cena, cenários surrealistas, erros de racord a cada minuto - num plano estou de cabelo apanhado com uma banana, noutro com ele solto, encaracolado da humidade, a chegar à tatuagem -, banda sonora pavorosa - que tal Shakira? ou os DZRT? -, argumento inexistente.
O dia de hoje dava um filme, com polícias, com carros a serem rebocados, com insultos a automobilistas e peões, o título podia mesmo ser "Road rage", até tenho medo de sair do pasquim, pegar no Idea e que me caia um bloco de 16 toneladas, ou que ele não esteja no lugar ilegal onde eu o deixei, ou que tenha um papel branco da PSP no pára-brisas, ou um "piercing" amarelo na roda dianteira (marca finíssima de joalharia automóvel, EMEL - empresa merdosa de estacionamento de Lisboa).
Durante toda a semana passada, a semana dos trágicos acontecimentos, voltei a ter sorte ao estacionamento. Sete dias consecutivos a deixar o carro à porta de casa, à porta do jornal, fora das garras da famigerada empresa municipal. Esta semana, voltou o azar, mas a sorte ao amor, cadê, demónio do estacionamento?????
A inspiração está um bocadinho melhor, ontem fiquei horas deitada no chão da Martinha a olhar para o tecto, à procura de uma qualquer coisa para escrever, fiquei ali, cabelos estendidos sobre a madeira envernizada, imagem bonita, digna de filme europeu, com uma qualquer pianada do Nyman - talvez a 15, do Piano, The sacrifice -, ando a fazer contas a vida, ver se consigo viver com menos 107 euros por mês, se abdico totalmente de comprar sapatos e roupa, ou se simplesmente páro de fumar (bastava isso, sim senhora, pode mesmo ser por aí), para no lugar de um quarto de vestir a transbordar (apesar de eu me ter queixado, ainda hoje, que não tinha nada para vestir), ou de uns pulmões negros que se revelararão no próximo raio x toráxico que a minha entidade patronal me mandar fazer

(tinha 21 anos quando fiz o primeiro, e o técnico de disse-me que eu tinha uns pulmões muito bonitos. Eu achei que era um dos piores piropos que poderia ouvir em toda a minha existência; perguntou-me se eu fazia desporto de alta competição, eu ri-me alto, apontei para o diámetro monumental da minha anca e já convencida que era a pior cantada de sempre disse, sem paciência, "Acha???". Mas ele insistiu, "sabe, assim como há pessoas bonitas e feias por fora, também há pessoas feias por dentro". E hoje, uma meia dúzia de frases no meu Gmail, fez-me sentir a pior pessoa de todas, mas tenho uns pulmões bonitos, valha-nos isso, "Canta?", perguntou o técnico daquela clínica privada, e os meus dois pulmões, impressos numa chapa negra, iluminados por uma luz fluorescente, e eu: "Canto, sim". "Está tudo explicado, por isso é que tem estes pulmões belíssimos, concluiu ele),

e se eu conseguir despojar-me de todas essas futilidades de burguesinha tonta, a música que eu oiço desde sempre na minha cabeça passará a ser traduzida pelas minhas mãos. E estes dedos, que sabem de cor o teclado "qwerty", que trazem até vós o que me vai na alma, estes mesmos dedos vão fazê-lo de outra forma - passarei não a ler livros, ou notícias, mas sim pautas, colcheias, breves e semi-breves.
Tenho só que me propor a isto - eu sou boa em tudo o que quiser; e tenho a certeza que seria muito boa na música e, sobretudo, feliz.
Tenho que arranjar os 107 euros. E os outros largos milhares de euros para comprar o instrumento; mas mesmo aí não me consigo decidir: piano, sim, era a primeira opção, estou a imaginar-me a lutar com as variações Goldberg durante meses e meses a fio, a levar à loucura a vizinhança com escalas intermináveis. Mas tenho muito medo que seja tarde demais para o piano.
Guitarra, a mais fácil, a mais barata, a que me permite ir para uma estação de metro bonita e angariar fundos para pagar as aulas.
Violoncelo, um velho sonho, mas só tem piada se conhecesse um triozito de violinos para acompanhar o "baixo" da música clássica.
Acórdeão. Por estar ligado à música tradicional portuguesa e ao Tiersen. Por ser dos instrumentos mais sensuais à face da terra. Por me emocionar sempre que algum puto romeno entra numa carruagem do metro, ou quando um ceguinho arranca harmónicos na Rua Augusta.

O meu chulo literário fica assim, na minha vida, por me ter posto a tocar um instrumento.

Falta decidir qual.
O dinheiro há-de arranjar-se.

1 comentário:

Anónimo disse...

se fores para o piano ou para a guitarra a maninha mái nova gostava de ir contigo...