quinta-feira, setembro 22, 2005

Mais coisas do baú da velha

Lá me conseguiram despir - foi um fartote de riso o meu "problema matinal" na lojinha de arranjos, sita numa rua atrás da avenida de Roma e que tem um nome genial: "Expresso da meia rota" (o logótipo não faz juz ao nome).
Antes de ser uma loja de pequenos arranjos de costura, há umas boas décadas atrás, aquela lojinha era uma retrosaria linda - Retrosaria "A Moda", letreiro dos anos 50, impresso no vidro da montra com uma letra muito patusca -, cuja dona era velhinha bonita de cabelos loiros platinados, muito baixinha, óculos de ver ao peito, presos por uma corrente, e que vestia sempre uma bata azul escura.
Eu adorava aquela retrosaria, acho que foi ali que começou a minha tara por botões - eram prateleiras e prateleiras de caixas de sapatos com botões cosidos no cartão, mostruários que me fizeram as delícias durante a minha infância, botões de todos os tamanhos e feitios, todos eles caríssimos, sei disto, porque às vezes, quando lá iamos, pedia à avó Tóia para ela me comprar uma caixa de sapatos cheia de botões e ela explicava-me que não podia, porque eram muito caros, mas levava sempre uma boa meia dúzia de pequeninos, para embelezar as minhas camisas brancas (lembro-me bem de uns com cerejinhas e de outros com a Hello Kitty).
Quando a velhota morreu - tentei, em vão, durante toda a manhã, lembrar-me do nome dela -, ainda lá fui ver se me vendiam os botões para a minha colecção. Deixei um cartão por debaixo da porta com os meus contactos, mas aquilo deve ter parecido muito bizarro aos herdeiros, porque nunca me telefonaram (e era um cartão do pasquim, bonitinho, Diana Ralha, jornalista, enfim, esta profissão tem pouco glamour e reconhecimento - a minha mãe está-me sempre a dizer que para puta e mal paga mais vale ser mulher honrada e eu não lhe dou ouvidos...).
O senhor Zé Manel, que é dono de uma tasca muito tasca em frente ao King, é que engrossou a minha colecção em largos milhares de botões. O sogro tinha uma retrosaria e ele deu-me quilos de botões com o pó dos séculos que lavei, e cataloguei em caixinhas, por cor e por tamanhos.
Ali, nas traseiras da avenida de Roma, não há gente rica nem os betos que frequentam a Mexicana. Há gente velha a viver em condições precárias, tendo como única companheira a solidão; o merceeiro e o taberneiro são os centros de dia desta gente, servem-lhes a bica, levam-lhes o almoço a casa em marmitas de alumínio e as compras que a miserável reforma lhes permite adquirir (a Celestinha dizia-me há tempos que não comia quase nunca carne, porque o dinheiro não chegava, a Celestinha é o Matusalem da Gama Barros, ninguém sabe que idade ela tem, é viúva, não tem filhos nem sobrinhos e hoje deixei a Magui e a Carolina na Conde Sabugosa e tremi ao ver que está uma casa à venda no prédio da Celestinha, provavelmente morreu e antes de ter tempo para arrefer já lá estavam milhentos herdeiros, que não se lembraram dela em vida, mas para reclamar as suas quatro assoalhadas nas traseiras da Avenida de Roma refrescaram a memória - "Esta casa cheira a alho, aqui mora algum espantalho. Esta casa cheira a unto, mora aqui algum defunto", já diz um dos meus provérbios favoritos e, agora, um repto para os leitores: "Esta casa cheira a ganza, mora aqui alguma ..." - completar, enviando sugestões para a caixinha dos comentários).
Ali, onde eu nasci e cresci, ainda é uma pequena aldeia dentro da cidade anónima, todos se conhecem, todos se preocupam com o cancro da Dona Ivone ou a constipação que não passa à D. Marina. E se a Magui não passa no senhor Manel para lhe comprar as hortaliças cortadas pela madrugada, na sua horta (e não custam os balúrdios dos produtos "biológicos" do supermercado, meus amigos, sei que vai dar azo a comentários idiotas, mas os tomates do Manel são os melhores que eu já comi na vida), e não vai buscar os gladíolos e os jarros do seu jardim (para que fique em acta, as minhas flores favoritas são os jarros), o merceeiro magrinho, desdentado e de bigodes fartos, liga-lhe para o telemóvel para saber se está tudo bem.

Afinal hoje tenho Carmona, já estou meia atrasadita e tudo, nunca mais é 9 de Outubro para a minha vida voltar à merda que era.

6 comentários:

Mary Lamb disse...

O Carmona sempre diz alguma parvoice para nos distrair. Desta vez nem vou perder tempo a ir votar!
Beijos.

fernando lucas disse...

posso estar a cometer um grande erro, mas o voto para mim tem o mesmo interesse que o futebol, que é nenhum!
não acredito em nenhum deles e só complicam-me a vida.

Anónimo disse...

Esta casa cheira a ganza,
Mora aqui alguma tansa

???

R

Dia disse...

Obrigada Ric, por seres o único a responder ao repto.
Mary, para teres o programa espião vai a www.statcounter.com. é fácil e dá milhões de horas de voyeurismo.

Anónimo disse...

...tanta coisinha boa para ler! sim porque tu sabes que nao tenho vindo cá. sabes a que horas venho,quanto tempo fico,quando volto...e quando escrevo de casa ou nao :) por isso para te facilitar as coisas, é um mac,tem a tecla do espaço a dar as ultimas e é deste novo pasquim onde agora estou.
ora... "esta casa cheira a ganza, mora aqui alguma..." eu bem queria,mas nao há condicoes psicologicas a uma hora destas..

Mary Lamb disse...

Thanks. Cada vez gosto mais de vir aqui. Inspira-me ouvir-te.