terça-feira, setembro 20, 2005

Um dedo que adivinha

Quando ia à Praça Pasteur "princesar-me" com as bujigangas da avó Zá, que estavam guardadas na última porta do armário do quarto verde hospital, numa caixa de plástico cor de chocolate , ela dizia-me muitas vezes que tinha um dedo que adivinhava. E eu sabia que era verdade.
E esse dedo, o mindinho - e é incrível como eu estou cada vez mais parecida com ela; o levantar da sobrancelha direita, aquele a que tu dizes que eu recorro compulsivamente, chulo literário, é igualzinho ao seu e, apesar de os meus olhos serem bem mais pequenos e mais pestanudos, temos o mesmo estrabismo leve e a mesmíssima expressão perdida no infinito -, esse dedo era mágico e sabia sempre tudo: sabia que o meu anel favorito das princesisses é este que eu uso todos os dias no anelar direito - um tronco de árvore em prata -, sabia que eu gostava de pôr cerejas nas orelhas a fingir que eram brincos (a Magui não me deixava furar as orelhas e não há brincos de mola para criança, aliás, não há brincos de mola ponto final - usaram-se, vagamente, na década de 70; chamava e chama, a Magui, aos furos nas orelhas, de mutilações tribalistas e eu não sabia o que isso era, tinha pouco mais de cinco anos, sabia lá o que era esse palavrão, mas percebia que devia ser algo mau e perverso, pensava nisto mais do que seria desejável para uma criança em idade pré-escolar, matutava, matutava mesmo muito, quase tanto como na questão de quem é que inventou o homem, e questionava-me: se é assim tão proibido e nefasto porque é que, então, ela, as avós e a maioria das mulheres portuguesas têm as orelhas furadas? E já agora, pobre mãezinha, ainda em relação às mutilações tribalistas, ainda achas que a tatuagem que eu tenho nas costas é daquelas que sai com o tempo, ou já te apercebeste, mais de três anos depois, que a libelinha impressa perto das covinhas do final das costas, vai comigo para a tumba?); o dedo adivinho sabia que o sabor dos Sugos que eu mais gostava era o de ananás, sabia de tudo, esse dedo maroto, sabia que a minha cor favorita era o roxo e da minha predilecção por saias que tivessem bolsinhos pequeninos. Sabia onde desencantar uma pantera cor-de-rosa para não desiludir uma pequenina de tranças enormes que acreditava no Pai Natal, que lhe tinha pedido apenas isso no Natal (e um Ferrari Testarossa, mas esse eu pedia sempre), e apesar de não haver panteras cor-de-rosa à venda em Portugal, o dedo desencantou-a, desencantou com a mesma facilidade com que arranjou num aniversário meu, um bébé chorão de olhos azuis e orelhas furadas (a avó Zá comprou dois brincos e furou ela própria a borracha; o bébé chorão chamava-se Ana Teresa).
As minhas avós eram mágicas, não me canso de dizer que eram doces feiticeiras e a minha avó Zá parecia mesmo uma bruxinha, com os seus cabelos meios lilases e tez muito morena.
Quando morreu, a minha avó Zá deixou os seus olhos ao meu pai (de um dia para o outro, ele ganhou o seu olhar, mas como o Zé Ralha não presta eu apoderei-me do olhar da minha avó) e deixou-me a mim esse dedo que adivinha. E as minhas mãos são muito magras e as da avó Zá eram muito gordas e sapudas, mas quando estava a pendurar molduras na parede, há duas noites atrás, reparei como estou a ficar parecida em tudo com ela (quando eu te disse, sei lá quando, que sei como vou ser quando for velha, a resposta não era "chata", chulo literário; era "igual à minha avó Zá")
Eu tenho um dedo que adivinha que me disse que os monossílabos não eram bom sinal. Hoje voltaste a ser mal educado, a deixar uma frase pendurada à janela. Eu não tive contemplações; com o dedo mindinho, o tal que adivinha e que tem ao lado o anel de prata da minha avó Zá, apaguei-te da minha lista num instante. Já nem custa.

4 comentários:

fernando lucas disse...

não tenho comentado, mas tenho lido todos.
:)

Dia disse...

Eu sei que sim, Manual. Sou viciada em Statcounter, que é uma cena voyeur/ pidesca, que me diz que acedes num mac, com OS tiger, e que és um "safari" men. Até me diz em que agência de publicidade tu trabalhas... Tenham medo, tenham muito medo...

fernando lucas disse...

Dia! agora vais ter que explicar como fazes tal coisa.
vá upa! o meu mail está disponível.
:P

fernando lucas disse...

dia venho por este meio avisar, que já possuo o mesmo poder.
obrigada ;-P