quarta-feira, agosto 31, 2005

Os loucos

Isto acontece todos os dias.

Olhem com olhos de ver para quem passa na rua carregado de sacos de plástico, para quem está sentado num banco de jardim a falar alto, para quem pede um cigarro na esplanada com a maior displicência, para quem faz desenhos lindos num guardanapo de papel. Tirem os olhos do chão e reparem nos loucos.

A Rua Viriato perdeu o seu louco de estimação e todos estamos um bocadinho mais pobres.

Eu tenho saudades do Afonso. Penso nele todos os dias, deitado, vegetal, numa cama de hospital, uma sombra do que foi, de certeza, penso se lhe terão cortado as barbas cinzentas, e se ele já conseguiu arranjar forma de beber um Favaios fresquinho (a Magui arranjou forma de fumar numa enfermaria do Santa Maria...).

A Organização Internacional do Trabalho, que está aqui sediada, também tem saudades do louco do Afonso. O Afonso não dizia coisa com coisa, às vezes era mesmo mal educado, não eram raros os dias em que já não se aguentava nas pernas ainda a manhã estava a começar, mas, apesar de tudo isto, de não ser um santo, a rua está mais pobre. Garanto-vos que sim.

Os empregados do Laçinho estão desolados e não é pelos enormes stocks de garrafinhas pequeninas de Favaios que estão guardadas no armazém e que o Afonso consumiria em menos de uma semana.

Um louco protegia a nossa rua. Destruía os parquímetros da EMEL. Arranjava lugares de estacionamento onde ninguém suspeitaria, avisava quando os "verdes" andavam a bloquear rodas com um prazer retorcido.

Isto acontece todos os dias.

A cidade está cheia de loucos bons.

Na semi-via-rápida da avenida Estados Unidos, um homem de meia idade, cabelo grisalho, senta-se à beirinha do separador central, com as perninhas na faixa da esquerda de quem vai para Entrecampos, e arrisca, todos os dias, ficar sem pés.

Há alguns anos, nesse mesmo separador central, onde os chopos estão cada vez mais altos e mais velhos, uma velhota carregava sacos e sacos e sacos até ao Santo António. Ninguém sabe o que tinham os sacos.

No banco de jardim, a mulher de trinta e pouco anos, magra, rosto anguloso, que tinha um filho da minha idade, que também estudava na Gago Coutinho e era muito tímido - ficava a um canto no recreio -, discute com alguém. Gesticula, chora, argumenta, desesperada, com esse alguém que mais ninguém vê.

Na Avenida da Igreja, uma velhinha, muito magrinha e bonita, cabelos brancos, presos há uns bons meses atrás com ganchos, passeia despida e com um sorriso nos lábios. Às vezes traz uma gabardine, e quando vem assim vestida, vai beber a bica ao Biarritz, pega num guardanapo de papel e faz desenhos maravilhosos.

Na Carcassone, meia dúzia de metros abaixo, um homem, meio século de vida, não mais, muito magro, rosto craquilhado por rugas profundas, meticulosamente desenhadas pela demência, e com dois faróis muito azuis como olhos, vai pedindo cigarros nas esplanadas dos cafés. Tem um sorriso franco e ninguém lhe resiste. Chega ao Júlio de Matos, com o bolso cheio de cigarros e vende-os aos loucos que não têm ordem de soltura.

A primeira mulher licenciada em Direito, pela Faculdade de Direito de Lisboa, aos noventa e muitos anos, vestia uns trapos andrajosos e, com o cabelo branco até ao rabo, distribuía comida aos gatos vadios das traseiras da Estados Unidos da América.
No seu duplex, que tinha uma mezanine muito bonita, muito moderna - foi das casa mais bonitas que vi, apesar da imundisse, não me esqueço - tinha desenhado, a giz branco, por todas as paredes da casa, grandes circunferências, "ós" por todo o lado.

Todas as noites, põe o seu fato dos anos 70, às vezes vai de boina, e, impecável, diz adeus aos automóveis que passam pelo Saldanha. Este é o louco que vibra quando estranhos lhe acenam com uma apitadela.

Isto acontece todos os dias.

Eu quero acreditar no que me diz o meu tio louco (este vê demónios, ouve vozes e tem dois doutoramentos), que todos os seus "colegas" de doença sabem o preciso momento em que passaram a linha ténue entre aquilo a que chama sanidade, para a demência.

Eu quero acreditar nisto.

Porque isto acontece todos os dias.

Mesmo aqui ao lado.

Esta é para o Afonso. O louco da Viriato.

7 comentários:

Anónimo disse...

E o q é mais loucamente assustador é que um dia estes loucos não foram loucos... e por isso pode acontecer, de um dia para o outro, a qualquer um de nós.

Dia disse...

Por isso, minha querida, por isso mesmo é que eu quero acreditar no que diz o louco do meu tio. Quer dizer que ainda não estou do outro lado.

Anónimo disse...

Belíssimo post, sim senhor. Nada mau para encerrar, de uma vez por todas, estas horas seguidas na redacção

(onde, curiosamente - estará um anjo para ganhar as asas em breve? -, também ainda está a trabalhar o progenitor de uma menina de louro cabelo em desalinho e olhos azuis)

Anónimo disse...

um dos melhores posts de sempre burguesinha....ja o li duas vezes:)

Anónimo disse...

O que distingue o louco do génio é o sucesso... desejar-to-ei?

Dia disse...

Caros,

Obrigada pelo feed back - o mano (deve estar mesmo boa, a prosa, para o mano dizer que é um belíssimo post...), o chulo literário (adoro o "burguesinha")e o "timóteo" (que raio de nome foste tu arranjar-me, ó marquês da fronteira).

Hoje o Afonso voltou à Viriato. Sem barba, com a cara afectada do AVC, magrinho, muito menos bêbedo do que é costume. Voltou e eu arrepiei-me por ter escrito estas linhas na véspera do seu regresso.

A Rua tem o seu louco outra vez. E eu estou muito feliz.

Carrie disse...

Um presente de Natal fora de horas. É uma prosa linda, onde me encontro nos loucos que recordo da minha adolescência passados nas mesmas ruas que tu.