segunda-feira, outubro 24, 2005

Há tanta gente infeliz

Eu não sabia que ela fumava.
Está escuro no parque de estacionamento. O candeeiro que foi plantado por causa de um artigo surreal que escrevi sobre um poste de iluminação pública derrubado há anos e anos que procurava um funcionário da câmara para relação séria, entregou a alma ao criador dos candeeiros menos de duas semanas depois de ser erguido num jardim descuidado da Avenida dos Estados Unidos da América; há um outro, nas traseiras do prédio onde estamos paradas a fumar, que dá choque eléctrico e o Fiel, o cão mais novo da Magui, é a prova de que a teoria do Pavlov não se aplica a todos os canídeos - continua a ir lá mijar apesar de levar um esticão de cada vez que alça a pata.
A cadela bobtail, ridícula, desde que foi tosquiada, desapareceu, mas ela nem se lembra que veio à rua por causa da bicha. Encontrou-me, e desde que estivemos barrigudas ao mesmo tempo, desenvolvemos uma estranha cumplicidade.
Acende o cigarro com o isqueiro laranja que um amigo que faz falta me deu há uns meses e reparo como toda ela é grande. As suas mãos fazem duas das minhas. Mede mais de 1,80m. A mulher gigante de nariz proeminente e queixo inexistente vive com um grunho. Tem um filho de um grunho. Não fala com o grunho, discute. Não dorme com o grunho, passa as noites no sofá. O grunho é verbo de encher. Não paga as contas, não paga a creche e se não é sequer uma boa foda, se a casa é tua, bem, na realidade, a casa é da minha família, mas, adiante, porque não o pões de lá para fora?
A solidão. Sempre a solidão, responde ela, sabendo que eu vou torcer o nariz e que, em seguida, talvez franza o sobrolho, abrindo depois a boca, sem hesitar, deixando sair um palavrão daqueles que a minha mãe beirã tão bem me ensinou desde pequenina, retirado do dicionário de vernáculo dos Oliveira.
Saiu um puta que o pariu.
Há tanta gente infeliz.
Ali a trinta passos, a nossa vizinha Sofia, a Sofia que parece uma modelo, a Sofia que teve boas notas na faculdade, que tirou relações internacionais, mas que não arranja emprego estável, que até já trabalhou como assistente de uma vidente, a Sofia que era dona do meu segundo gato, o Grieg, a Sofia engoliu várias caixas de ansiolíticos e tentou pela terceira vez dos seus trinta e poucos anos pôr termo à vida.
A 35 passos, não mais, no rés-do-chão dos prédios baixinhos, duas velhotas muito velhotas, espreitam-nos pelas grades, está escuro mas eu vejo-as pendurar, entre o ferro encaracolado que lhes protege as janelas, um pano da loiça muito enfarruscado, e umas cuecas de gola alta, amareladas. Ali mora a solidão e a velhice. A tristeza também bateu àquela porta.
Olho para cima, para os 60 apartamentos, distribuídos em três prédios de dez andares, meia dúzia de luzes acesas, é uma avenida fantasma, e enquanto ela me diz "É só deixar a miúda crescer mais um bocadinho", penso na luz do terceiro esquerdo, o meu tio deve estar a esvaziar a tristeza em mais uma garrafa de whiskey, no quinto esquerdo, o meu primo chora no quartinho da empregada, crente que não vai ser um arquitecto de renome, num terraço com vista para toda a cidade, um outro meu tio fuma a sua erva, rega o seu cânhamo, cumpre esse ritual há 25 anos para se esquecer que casou com uma bruxa, a essa mesma altitude, umas dezenas de metros quadrados para a direita, a porteira mais simpática e bonita de Lisboa chora pelo peito que amputou e a sua filha questiona-se se o acne que lhe mina a cara há quase uma década algum dia desaparecerá, a Dona Assunção, que mora nos prédios baixinhos, que reza por mim ao Santo António, perde-se pela casa vazia, entra no quarto do Luís e do Pedro, vazio, fica lá a dormir, agarrada ao passado.
Há tanta gente infeliz, penso eu, já a estacionar o Idea no largo das Palmeiras. Subo as escadas com a Carolina a dormir, penso na injustiça de não emagrecer uma grama apesar de carregar 15 quilos todos os dias escada acima escada abaixo, quarenta e muitos degraus com uma inclinação alucinante, abro a porta, tenho a certeza que é um bom augúrio a porta da minha casa ter um emblema velhinho da Mundial Confiança com uma águia, a ave de rapina protege a minha casa da tristeza, deito a minha filha no quarto fluorescente, acendo as luzinhas de Natal porque ela gosta de ter um pouco de luz durante a noite, dou uma arrumação rápida à sala, tiro a roupa ainda húmida do estendal, ligo o computador, só se ouve silêncio, tenho os meus discos, os meus livros como companhia, um anjo a dormir na assoalhada que fica do lado direito, sorrio porque sei que não vou discutir com ninguém.
Nesta casa não há ninguém infeliz. Agarro-me a essa certeza e faço por dormir, por domar as insónias de não poder estar com quem mais queria.

5 comentários:

SGTZ disse...

Ás vezes penso que dormir sozinho é a melhor forma de ser feliz. A tristeza e a solidão são pragas contagiosas a que não há vacina que resista. Quantos casais não vivem mais sozinho do que os solterões/solteironas?

K disse...

Muitos parabens...um post que deve estar nos top5....ADOREI.bj

Anónimo disse...

"Antes só que mal acompanhada"... já o povo o diz. E é bem verdade. Por muito que custe, por vezes, dormir sozinha e não ter com quem partilhar angústias e alegrias, não há nada pior do que quando isso acontece e temos um corpo, mas não uma alma, presentes ao nosso lado.

Anónimo disse...

Bem me parecia que a voz da loura que me chegava através da janela do quarto onde procurava dormir ASAP para enfrentar a nova semana indiciava que aquela era mais do que uma conversa de circunstância à porta do prédio.

[sem vírgulas, em homenagem ao grande saneador de camaradas de redacção, embora a especialidade dele seja a supressão de parágrafos]

E, no entanto, lembro-me que há uns 27 anos ela parecia ser feliz enquanto corria, já mais alta do que a maioria dos miúdos da sua idade, pelo recreio da escola primária cujo número nunca consigo decorar. Será que o era?

Dia disse...

Leonardo,
A escola era a 101.
Não sei se era feliz, duvido. Quando tive aquele ataque de choro idiota que só tu percebeste porque era, achei que era das pessoas mais tristes do mundo. Afinal, não é bem assim.
Em relação a esse teu parêntesis, deve ser uma qualquer transmissão de pensamentos fraternal, porque ontem começei a ler Saramago e, vê lá tu, gostei.
Nunca pensei vir a dizer isto, estou estupefacta, adoro a supressão de vírgulas e parágrafos, tento abstrair-me da democrática veia do camarada enquanto devoro as páginas.
Obrigada pelo comment. Eu sei que tu vens cá todos os dias, várias vezes por dia, lembra-te que a little sister is always watching you.