quarta-feira, outubro 12, 2005

Manuel Ricardo

O Manuel Ricardo é arquitecto.
Eu não falo com o Manuel Ricardo há dez anos.
O Manuel Ricardo - era sempre assim que eu o tratava, pelos dois nomes; em casa, a mãe enfermeira e o pai que lhe punha os cornos com a secretária (não me lembro já o que ele fazia), tratavam-no por Ricardo; a pandilha do Centro Roma chamava-lhe Manel - está casado com uma tipa baixinha de anca larga, com a cara marcada por um acne severo, uma nova rica que, há dez anos, conduzia um jipinho caixa de fósforos -Vitara, era isso, Vitara a gasolina, gastava 20 litros de gasolina aos cem -, têm uma filha linda, o Manuel Ricardo e a nova rica, da idade da minha.
A alcunha do Manuel Ricardo era o "conquilha". Porque ficávamos horas na praia, à beira mar, a desenterrar as conchinhas que horas mais tarde se transformavam num pitéu dos deuses algures numa praceta do bairro de Alvalade.
O Manuel Ricardo conduzia uma acelera, era Suzuki, como o jipe da nova rica, era Suzuki Adress. Ia-me buscar todos os dias ao Rainha de mota. Passavámos os dias juntos. Eu e o Manuel Ricardo conhecemo-nos numa festa do caloiro no ISCTE, eu tinha 16 anos, ele 19, acabado de entrar para arquitectura na Lusíada, não me esqueço que uma das meninas que estava sentada ao nosso lado, com o rosto pintado pelos padrinhos, e uma Super Bock na mão, tinha entrado para o curso de cardio-pneumologia. Eu reencontrei o Manuel Ricardo numa noite em que ia para os ensaios da minha banda, no grupo Recreativo Ramiro José, no Bairro de São Miguel, onde um cenourinha chamado Miguel me dava boleias para casa de XT 600.
O Manuel Ricardo era acólito, mas tinha dilemas existenciais porque servia na Igreja de manhã e à noite fumava ganzas. O Manuel Ricardo foi o amor mais bonito que eu tive. Eu namorava com o melhor amigo do Manuel Ricardo.
Tinha um Renault 5, PC-69-35, vestia sempre calças e blusão de ganga da Levis e umas botas da Vision. No Inverno, tinha um casaco de penas azul escuro.
O Miguel preto - era mesmo preto, enorme, um soba, era também um grande mentiroso, dizia que era polícia, mas era tudo treta - tinha um Panda encarnado e funcionava como guardião do nosso amor, proporcionava-nos momentos a sós, lembro-me de uma noite de Verão a vermos desenhos nas nuvens e confessarmos o quanto gostávamos um do outro, algures ao pé do rio, o Miguel levou-nos até lá e depois desapareceu, foi comprar pastéis de Belém e não regressou até a madrugada já ir alta.
Nunca fizemos nada. Eu perdi o Manuel Ricardo na Figueira da Foz, detesto essa terra, nunca mais lá ponho os pés. Perdi-o para a nova rica, cuja sala de estar tinha móveis em acrílico com dourados e colunas coríntias de gesso.
No Natal passado fiz uma reportagem sobre uns assaltos na João XXI - a reportagem foi motivada pelo assalto à casa do editor adjunto da secção de Fotografia - e fiquei estática com uma bébé linda na montra de uma loja pindérica da mãe da Sónia - é o nome da estrupícia que me levou o meu amor platónico mais bonito.
Estava do outro lado da rua, ao pé do Londres, e soube, mesmo sem óculos, que ela era a filha do Manuel Ricardo. Apressei-me em atravessar a rua, em transgressão, cega, fiquei a mirá-la da montra, a fingir que via as roupas novas ricas da montra. A cara chapada do pai.
Virei-me para a esquerda e ele estava estático a ver a minha figura de tonta com o nariz colado à montra. Ficámos parados no tempo, a memorizar os riscos de uma década nos nossos rostos, mudos, eu com o coração na boca. Até que a nova rica apareceu e eu, quase a desmaiar, saí do transe e disse: "Até daqui a dez anos, Manuel Ricardo".
Passados dez anos ainda sonho com o Manuel Ricardo Simões.
Hoje, uma noite dura, sonhei com ele.

5 comentários:

Astor disse...

Também andei no Rainha. Na volta cruzamos destinos...

Anónimo disse...

É impressionante como vivendo a 2 passos uma da outra, frequentando os mesmos sítios (Ramiro José, Centro Roma,...) e quase termos tido o mesmo 2º nome, só nos termos encontrado na faculdade... ;-) Astride.

Mary Mary disse...

Também moro para esses lados!
Bela história! É sempre bom recordar os nossos amores mais bonitos e também os mais tristes!
Também tens problemas com a terra maldita! Vivi na Figueira e odiei... Tantas coincidências num só texto!! :)

fernando lucas disse...

Há sempre alguém que passa nas vidas das pessoas que as marca para sempre, principalmente quando se trata de amor. A pessoa que me marcou mais (incrível que pareça) foi a minha 1ª paixão. Com um nome que ainda soa no meu imaginário, ao ponto de não saber se alguma vez aconteceu esse tal primeiro beijo no topo das escadas da prima (que era minha vizinha da frente que namorava o meu irmão mais velho) dela num dia de verão. Era uma angolana loira de olhos claros e tínhamos uns 5 aninhos ou mais. Descobri o ano passado que ela é cenógrafa aqui num teatro no porto (mundo pequeno)... Se tiveres a ler, obrigada Luana (bonito nome, não é?)

NUNO FERREIRA disse...

Convite: quando quiseres passa no meu blog e ouve Shanon Mcnally cantar "Geroonimo". Pode ser que te dê inspiração para mais uma prosa como esta