domingo, fevereiro 19, 2006

A história interminável [para o Da.]

Não se devia ter sentado no sofá laranja embalando o computador ao colo.
Não devia ter bisbilhotado o programa espião das estatísticas do blogue; devia ter ignorado que há mais um leitor, utilizador de Macintosh, a vasculhar-lhe as profundezas do seu ser, mas 300 pageloads a um Domingo é como um preto de cabeleira loira, e ela era pidesca, ela era compulsiva e obsessiva (nunca sabia se se escrevia assim; era das únicas palavras que lhe virava as costas, ela evitava-a, da mesma forma que evitava tratar o seu pai por pai, dirigia-se a ele sempre indirectamente, e o Macintosh de onde escrevia não tinha dicionário em português, ou isso, ou ela é que não o encontrava - era o mais provável -; ia googalizar num instante, mas, tarefa árdua, a net é um antro de analfabetos: havia milhares de páginas com obsessiva e outras milhares com obcessiva e os resultados das primeiras páginas do motor de busca falavam de neuroses obsessivas, ou obcessivas, ou como raio é que a palavra se escrevia, teorias do senhor Freud, ligadas a recalcamentos na fase anal, e acabou por pedir ajuda à sua homónima, que estava à janela do mensageiro da Microsoft, e de acordo com o dicionário da sua amiga era obsessiva e ela perdera tempo demais nisto), e sentiu-se na obrigação de seguir todos os passos deste IP, que decidiu pisar - espero que de galochas de borracha - a terra molhada do seu quintal.
Mas não devia estar a escrever - tinha o lixo todo para levar lá abaixo e nos bancos do Idea repousava um tabuleiro com lençóis passados e perfumados, que ainda não tinham o dom da levitação: precisavam que alguém os carregasse, de preferência sem lamúrias e queixumes, até a um quarto andar a pique sem elevador.
Também não devia estar a comer gomas de ursinhos desenfreadamente (compradas no Lidl de Xabregas, e quando se falava deste supermercado, ela deixava sempre esta sugestão: quem quiser ver gente feia, mesmo feia, é mesmo ali; perto do rio, dos contentores do Porto de Lisboa e das gárgulas do Convento). Não devia estar a fazer nada disto, porque prometera a si própria que, este fim-de-semana, ia descansar, ia cuidar de si, já não pensava direito, tinha os olhos raiados, às vezes adormecia nos semáforos, ou tinha pensamentos encavalitados, psicadélicos, geralmente à hora do almoço, a dar migalhas aos pardais do Picoas Plaza.
Fez uma cura de sono de um dia só.
No Sábado, dormiu cerca de vinte horas, mas sabia que não estava curada das insónias, não era assim tão simples. Desmaiou de cansaço no dia que antigamente era o mais odiado, não saiu sequer de casa, não tomou banho, nem sequer veio à sala. Ficou no quarto a ouvir os espanta espíritos numa dança e música loucas, e a ver os coitados dos amores perfeitos varridos pelo vendaval (não é sempre assim com os amores perfeitos? Não há sempre uma ventania que os leva para longe?). E ela tapada até às orelhas com dois edredons, luzes apagadas, Skype ligado, a conversar com Cambridge, e discutiu a insónia com o seu amigo investigador: o problema do sono era freudiano, as pestanas zangaram-se, as de cima não queriam saber das amantes que moravam um pouco mais abaixo; não dormia e os cabelos brancos surgiam sem pedir licença, enbranquecia a cada dia que passava, e com a zanga das pestanas secou também a fonte das lágrimas.
Ela sabia que o problema era grave, sabia que um demónio lhe tinha blindado o coração, mas recusava-se a pôr um pé no divã, só se fosse uma chaise longue de veludo beringela e com pés de garra, e ela perguntara ao seu irmão se o seu psiquiatra tinha chaise longue e não tinha, e ela inquirira mais uns quantos colegas de trabalho se os seus doutores tinham, e eles também não tinham, por isso, fazia a purga por aqui, sentada no seu sofá de veludo laranja, esburacado por muitas cinzas voadoras dos cigarros que queimava junto com as pestanas ao ecrã do computador da maçã.
Desligou a televisão. Não tinha paciência para filmes românticos, nem para notícias. Enquanto arrumava a cozinha, e juntava todo o lixo a um canto da divisão que era da cor do seu sangue, tinha o post todo na cabeça. E disse três vezes: vai-te deitar. Não se pode fazer obras de arte todos os dias. Os trevos de quatro folhas aparecem muito de vez em quando.
Mas era teimosa - e o post, claro, não estava a sair como ela imaginara.
Era sempre assim, mas, ultimamente, sentia que tudo o que escrevia não estava bem. Envergonhava-se, pensava no suicídio do seu quintal, fantasiava sobre pragas divinas de cochonilha ou de pulgão, ou uma seca, ou granizo que queimasse toda a cultura. A verdade é que escrevia amputada e culpava a popularidade desmedida do seu quintal pelos caracteres sem carácter que floriam como trevos de três folhas no seu blogue. Mas não era só isso.
Não podia escrever sobre este, nem sobre aquele, muito menos sobre o outro e respeitava; nem todos eram exibicionistas, nem todos gostavam de ser fantasiados ou hiperbolizados, mas não era só isso. Tirara da linha vários posts geniais, textos escritos com um sorriso nos lábios, e até ali ela achava que só sabia escrever bem a dor, a dor sempre lhe ficou bem, era, aliás a sigla do seu nome: Diana Oliveira Ralha, ou seja, DOR, tinha pena de não usar este nome profissional. Ficou triste. Pediram que os tirasse da linha e não hesitou. Sabia que podia recusar, estava no seu direito, mas não hesitou, apesar de serem bons textos, e bem escritos e que surpresa, tinham sido dedilhados no teclado branco com um sorriso nos lábios, e por isso, não mereciam estar em rascunho, mas ficaram na prateleira, à espera de melhores dias, quem sabe, da Primavera.
Pedaços de si, pedaços de aparvalhada felicidade estavam agora em rascunho e a multidão que a seguia, ávida de leitura, nem se tinha apercebido, e ela admitia que era mesmo isso que lhe doía mais, mas não era só isso.
Só sabia escrever sobre si. A sua obra esgotava-se em si. Escrevia sobre si da mesma forma que a sua pintora favorita, a que tinha as sobrancelhas unidas e o farto bigode, também nunca se cansava de se auto-retratar. Porque se conhecia bem. Porque era de todos os que a rodeavam, a que conhecia melhor. E mesmo assim ficava zonza com a sua capacidade de perdão, de regeneração das feridas que, há dois ou três meses atrás, pareciam fatais e de sangramento eterno. Não parava de se surpreender e com a escrita, com a sua escrita, já tinha aberto duas ou três vezes a boca de espanto.
Ficou especada a olhar para as suas mãos. Mais de um minuto. Estavam geladas e muito cor-de-rosa. Ficava sempre com as mãos frias quando escrevia coisas sérias. Não entendia o que lhe diziam as linhas. Queria muito saber onde estava ela agora, procurava um corte feio, uma bifurcação na sua gigante linha da vida, via muitos cortes fininhos, que se prolongavam, tinha a linha comprida, que lhe chegava ao pulso, esfaqueada até metade: ia ser assim por mais uns tempos. Suspirou fundo. Estava preparada.
Procurava os amigos na palma da sua mão. Da direita. A que às vezes doi porque não consegue traspor o turbilhão de palavras que mora em si. Queria saber se estes, que se aproximaram e tomaram conta dela nos últimos meses, estariam vincados na sua mão. Não os encontrou.
Mas não tinha medo de nada, nem tão pouco se deixava afogar pela tristeza. Sentia-se quase invencível. A Santa salvara-a de uma morte certa e horrível, na fogueira, e ela até aqui só tinha pavor de morrer afogada, pelo fogo sempre se purificava, pensou isto no rescaldo do fogo mansinho que soprou, mas a Santa decidiu que não havia nada para purificar, por enquanto, pelo menos (procurou o fogo na mão e também não o encontrou).
Quis dizer isto ao David, há muito tempo, quando leu o seu primeiro post sobre a História Interminável; quis-lhe dizer que, durante muitos anos, teve pesadelos com o pântano da tristeza. Aquilo marcara-a tanto como a morte da mãe do Bambi, ou como a história da malvada da formiga que deixou a pobre cigarra morrer à fome e ao frio.
Era um pântano de areias movediças que só se deixava atravessar a quem deixasse a tristeza e melancolia na margem. Quis dizer-lhe isto, mas esqueceu-se. Chorou muito pelo cavalo, que não libertou o seu coração dos medos e tristeza, isto marcou-a tanto que até se lembra que se chamava Artax.

7 comentários:

Isa disse...

word, sellect all text, tools, language, chose Portuguese language. o meu tem, afinal... bjs

Anónimo disse...

Os amores-perfeitos são varridos pela ventania, mas também chegam em tardes brancas, entrelaçados num abraço por causa do frio. Os amigos, esses que não encontras na mão direita estão vincados de outra forma, procura-os no coração, vais ver que estão lá marcados a tinta-da-china. Não saem com facilidade. Falo por mim. Um beijo grande.

Telescópio disse...

A insónia anda a ocupar-nos os dias. Os meus também.
Sabes o que acho? Só se curam com catarse. Kiss.

Anónimo disse...

Isso de falar com Cambridge é o quê? E o amigo investigador?

Dia disse...

É falar com o amigo investigador, precisamente, à borla, usando o programinha maravilha chamdo Skype.

Mary Mary disse...

Gostei da parte em que a ventania leva os amores perfeitos... Ainda estou para descobrir se é verdade ou não, só espero que não...

Goiaoia disse...

Ouvia o vendaval (o meu espanta-espíritos bailava desaustinado) e por várias vezes pensei no teu valente amigo que tombou. -Esta noite hão-de cair árvores!- pensei recorrentemente. E os trovões... E os flashs. Abril promete.