quarta-feira, novembro 23, 2005

Dia de desafiar o destino

Quarta-feira é dia de desafiar o destino, decido eu, assim, sem mais nem menos, sem deixar sequer que este pensamento passe pela consciência e receba dois contos: abro os olhos, as pestanas enormes descolam-se umas das outras (elas gostam muito pouco de acordar, o Inverno chegou e sabe bem ficar agarradinho a alguém) e plim: hoje é dia de desafiar o destino surge.
É o primeiro pensamento do dia – é bom, para variar, costuma ser o indivíduo que me fez chorar com soluços –, chega-me no preciso momento em que o telefone toca e é a minha mãe loira desdentada na versão serviço despertar, diz-me que está um dia lindo lá fora – vai já estender a roupa, Diana, que chegas à noite e tens tudo seco –, uma tentativa frustrada de me dar algum ânimo para rumar sem medo de me perder nos corredores de São Bento, mas eu dormi pouco mais de cinco horas (putas das insónias que não me largam - não querem mais nada? um whiskyzinho?, um táxi para casa?, digo-lhes eu, sem pudor, perto das três da matina, quando os camiões do lixo chegam barulhentos, em rave, acordando os cães estuporados e feiosos do prédio da frente) e sim, o sol bate nos crisântemos da janela, a terra está alagada pelas chuvadas dos últimos dias, mas eles, aparentemente, não se importam, andam a treinar para ser a janela mais bonita de Lisboa, e a vinha virgem, essa, continua a teimar comigo que não muda de cor este Outono. As orquídeas estão loucas e preparam-se para florir cinco meses antes do previsto - repito o que escrevi num post há muitos meses atrás: aquele que faz florir uma orquídea merece um grande amor, já agora, um literário, experimentei e não quero outra coisa -, o antúrio recupera da maleita de amor que sofreu quando o separei de uma varanda de sete metros de comprimento sobre a Estados Unidos da América, saio da cama azarada como se ela queimasse, num pulo que estremece o chão de tábua corrida que não tem nenhuma placa de betão onde se deitar, a minha mãe procura primeiro os óculos e só depois o português suave amarelo (e na tabacaria diz à Dona Lena, há mais de vinte anos: são dois portugueses amarelos, à falta de um branco), eu hoje quero um SG Ventil antes de ir fazer seja o que for, vou à cozinha encarnada sangue buscá-lo, parece um bordel, a minha cozinha, um espelho dourado côncavo em cima da chaminé, vou de pijama e trago o regador cheio de água para alimentar os bonsais (esses, estão moribundos: as árvores morrem de pé e de tristeza, não aguentaram os últimos golpes duros, para me poupar, absorveram a minha dor e estão para ali, vai não vai, morre, não morre, brota uma folhinha tímida, caem trinta) – tenho usado pijama, é a primeira vez em muitos anos que uso essa vestimenta e durmo de meias também: a Marta não é uma casa fria, mas as janelas dos quartos têm uma fisga enorme que faz uivar o vento da noite, e ao contrário das sortudas das pestanas, não há ninguém para eu me colar quando escurece.
Dia de desafiar o destino merece banda sonora do Tiersen, lá vou eu para a sala, ainda sem conseguir focar bem, a esfregar os olhos e arrancar as pestanas (tenho inveja delas), muita luz no quarto, sala na penumbra, quebra de tensão, não me sento, procuro o CD a custo na prateleira a ver luzinhas brancas, e carrego no play da Sony velhota, cuja coluna direita anda molengona sem querer brincar ao stereo.
Dia de desafiar o destino, mas não me apetece lavar o cabelo, rabo-de-cavalo, enrola-se os três palmos e meio de cabelo num tornucho como as velhas e faz-se um figurão. Dia de desafiar o destino merece, porém, corrector de olheiras da Clinique. E rímel Lash XXL, para compensar as pestanas dos maus-tratos de há bocado (temos uma relação amor-ódio).
Mas não vou demasiado bem vestida. Desafiar o destino já é demais, quero passar discreta o resto do dia, pelo menos aos olhos das pessoas que não vêem para lá do que está à frente do seu nariz.
Dia de mudar o destino e, claro, o taxista dá o pontapé de saída e escolhe o itinerário mais ilógico, apenas para eu passar à porta de um amigo que já não é. Mala no tapete do raio-X do Parlamento e só quando estou a passar no detector de metais e a sorrir para o polícia é que me lembro que trago na caixa dos óculos umas substâncias ilícitas vindas de Marrocos.
Dia de desafiar o destino, mas não me atrevo a perder na Assembleia da República, dia de desafiar o destino não combina com ataque de pânico, o senhor que está à entrada fica-me com a carteira profissional (tenho um lindo número de carteira e a foto é deliciosa, sou uma miúda), dá-me um cartãozinho amarelo para prender no casaco, e eu: "Explique-me como se eu fosse muito burra... Não se importa que eu anote, pois não? Apanho o elevador até ao quarto andar, depois viro à esquerda, sigo o corredor até ao fundo, depois viro à esquerda, apanho o outro elevador, subo dois pisos, viro à esquerda novamente e quando encontrar umas fotocopiadoras, encontrei o tesouro).
Sem sobressaltos, lá chego, os senhores votam, dia de desafiar o destino é assim, não há tempo a perder com passes sociais (fui buscar o Idea de metro, porém, só para me inspirar para o texto, para sentir na pele o que é isso do transporte público).
Dia de desafiar o destino e, por isso, toma-se café na Praça das Flores. Depois, segue-se a demanda rua acima, queimar algumas calorias, reduzir um pouco o rabo genético dos Ralhas, vamos lá, um pé à frente do outro (ainda bem que não fui de stilettos) até ao Príncipe Real. Dia de mudar o destino e olha-se com atenção para os prédios em obras e para os que estão em ruínas. Quando a porta está aberta, espreita-se o espectáculo de degradação ou de renascimento (muitas escadas horríveis como na Martinha, senti-me melhor com a desgraça dos outros).
Lá em cima, no jardim, encontro o vizinho louco alfarrabista (que me dá mais uns livros para a Carolina), passa-se pelo Snob (tenho saudades) e por uma ruazinha onde um publicitário uma vez me quis comer, no seu apartamento gigante, com uma vista de desmaiar para o Tejo, e eu a achar que ele era só simpático, que queria apenas conversar ao som de um Gin Tónico e de Coldplay (quando ainda ninguém ouvia Coldplay e tenho pena de não ter a vida sexual que me atribuem).
Dia de desafiar o destino, segue-se até à Calçado do Combro, cumprimenta-se a ex-madrasta e o seu actual companheiro, um holandês patusco que senhor Vring voador conheceu numa terça-feira na Bicaense (a Manuela a dizer-me, nessa noite, afogada em mojitos, que o meu homem era um pão, nem me dei ao trabalho de dizer-lhe que ele não era meu, é de ninguém, e os dois holandeses a falarem entre si naquele língua de trapos, e nunca se saberá o que disseram, mas hoje o Dirk perguntou-me pelo Andy: Está no mar, é marinheiro...). Dia de desafiar o destino e o meu irmão do meio, Bernardo, chegou ontem da Escócia, e não o apanho por um míseros cinco minutos.
O destino não quer nada comigo, por isso, sobe-se uma determinada rua do Bairro Alto para espreitar mais uns prédios antigos onde eu queria viver. Depois, nada extraordinário acontece, não se encontra ninguém (minto: vi o teu homem, Clara, do outro lado da rua), apanha-se o metro, lê-se o jornal gratuito homónimo, fecha-se os olhos entre a estação da Alameda e do Areeiro, vai-se buscar o carro à Avenida de Roma, segue-se de cú tremido até Picoas e aí estacionamento à porta e parquímetro da EMEL destruído pelo louco do poeta Afonso.
O destino não quer nada comigo, apenas sorte ao estacionamento azar ao amor e, por falar nisso, Xico (estou à espera desse post), o JPH não se cansa de me dizer que tens uma casa muito gira no Parque das Nações, que és da família dos Lucenas e monhézito como eu. A ASL confirma, passa cá por baixo e atira, acabadinha de fazer anos (parabéns atrasados): "Com que então, uma das melhores escritoras de Portugal...". Não me linkaste, não te linkei, mas estes bloggers sabem tudo, vêem tudo e assim se explicam as audiências doidas deste quintal, e o destino deve querer alguma coisa comigo afinal, porque acaba de chegar a EL, tira-me os phones da cabeça e em vez de dizer boa tarde lança: "Tu e o Xico têm que se conhecer"...
E agora o passe social, que tenho um chefe que reage mal a fechar tardinho, mas o camarada do PCP (argh!) só me enviou agora mesmo o que eu precisava para começar a escrever a capa do Local Lisboa de amanhã.

(Oito mil caracteres outra vez. Foda-se!)

4 comentários:

Anónimo disse...

fico a espera de muitos 8 mil mais.
obrigado por me teres aturado.

Mary Mary disse...

Se eu conseguisse escrever 4.000 caracteres como tu já me dava por muito feliz... :)

Anónimo disse...

Hum... dia de mudar o destino. Muda-se? Mudou? Menina Dia, a sua subtileza até dá para acreditar que fala para alguém. Eu acredito que o destino é só o sentido que damos ao que passa por nós. Dá que pensar, nas sanchas, no momento em que aparece, no prazer do sentido, o óbvio e o secreto, que liga sempre duas pessoas. Obrigado.

Mary Lamb disse...

Tu és capaz de mudar o destino todos os dia, Dia! Continuas linda e na AR devem ter-te chamado um figo acompanhado de uma bela e suculenta noz...