quarta-feira, novembro 30, 2005

Quero ir comer um bife ao Snob (continuação)

Mas a minha mãe não deixa.

Se for trabalho ela deixa. Se for conhaque já não.

Ontem descíamos a rua do Século de táxi, a caminho da Bicaense, e eu quis ir comer um bife ao Snob.

Já no outro dia fiquei com ele entalado, no dia em que me apetecia desafiar o destino, mas ele (o destino) faltou ao encontro marcado, deixou-me pendurada na bonita Praça das Flores e nem sequer eram horas de comer um bife no Snob.
E na noite a seguir a esse dia, idem, e aquele cujo nome eu não posso mais citar (que tal? dá-te um ar clandestino, fica-te bem, digo eu) telefonou a dizer-me que estava um ambiente bas fond, que era melhor eu não ir ao Snob comer um bife (ainda me conhece mal, o tal que não pode jamais ser citado: não sabe que eu adoro o mais bas do bas fond, que vou ao Lidl de Xabregas para ver gente ordinária e suja, que amo os casais de fato de treino no Feira Nova da Belavista e seus respectivos rebentos ranhosos, com rabichos de cabelo à Ana Malhoa e ouro, muito ouro, nas orelhas, nos pulsos, ao peito).

Quero ir comer um bife ao Snob mas a minha mãe não me deixa.

Toma que a filha é tua.

Queria sentar-me na mesa onde eu e o Lourenço (das arábias), putos de 18 anos, abancávamos, gulosos, cansados, desiludidos com o curso superior que nos tinha calhado na rifa, íamos ao Snob pelo prazer de um bife fora d'horas, íamos ao Snob pelo bife, apenas por isso, e eu estava longe de imaginar que ia ser jornalista, nem o arcanjo Miguel sonhava que iria trabalhar para os Emirados Árabes Unidos, éramos naïfs, não sabíamos que aqueles bêbados todos que fazem parte da decoração do Snob eram, maioritariamente, jornaleiros; gostávamos do Snob e ponto final, do Snob antigo, o mais escuro e mais inflamável (o novo perdeu um certo encanto, mas eu continuo a querer ir ao Snob apenas pelo bife), e poucos meses depois de ter ido ao Snob pela primeira vez, pelos braços do senhor das Arábias, entrei para o pasquim onde me prostituo a escrever notícias sem interesse,

(hoje, infelizmente, escrevo sobre uma desgraça, o Tiago já sabe que não me deve dar desgraças para as mãos, que fico muito tempo a matutar sobre elas, uma breve de 500 caracteres sobre um homem que morreu trocidado por uma serra eléctrica numa linha de montagem demorou qualquer coisa como duas horas a ser escrito, foi o meu primeiro fim-de-semana de piquete nesta secção, tinha as mamas cheias de leite, bastava fazer copy e paste do take da Lusa para me despachar rápido e ir esvaziar o quarto Vigor do meu corpo, era preciso apenas limar o texto, mas a boa da Dia não conseguiu desligar-se, claro que não, aquele homem morreu, uma morte horrível, e eu só pensava na mulher e nos filhos a recortarem a puta da breve e a juntarem-na às outras micro-notícias da imprensa nacional - no 24 horas, o senhor foi um rodapé de página par, sei disto porque me perseguiu a morte deste homem nos dias a seguir -, os dedos da mulher mascarrados de tinta debotada de um papel de péssima qualidade, uma vida toda em cinco micro-recortes, guardados numa pastinha com fotografias do senhor a sorrir junto aos filhos no seu último Natal, o senhor com cara de caso junto aos sogros no baptizado da filha mais nova, o senhor na maternidade com a mulher ainda muito inchada e de bochechas rosadas, acabada de parir um bébé de cabelos muito escuros e espetados, vestido de babygrow azul, um varão, e a breve que não saía dos meus dedos, eu a pensar na serra eléctrica, na linha de montagem, nos 375 euros que levava para casa ao fim do mês)

foi o mano que me arranjou um part-time na secção de Economia (e eu acho isto belo: a primeira negativa que tive na vida foi a Economia, foi também a primeira frequência da faculdade e eu tive um oito, ainda por cima uma negativa par, ao menos que fosse um sete, gaita, e a vida é mesmo assim, oito a economia e jornalista de Economia), ganhava trinta contos a facturas de restaurante e de gasolina, a culpa é do mano, eu nunca quis ser jornalista, e só mais tarde, com a saudosa Gabriela Neto e com uma pandilha selecta de jornalistas de Economia (alguém se ia embora, não sei bem quem) é que fui ao Snob em visita de estudo devidamente acompanhada com espécimes jurássicos do jornalismo nacional, nessa madrugada não comi um bife, bebi um Vodka, e percebi que o sítio onde gostava de comer às tantas com o meu Miguel era o poleiro da classe onde eu entrei sem convite, pela porta VIP.

(E a merda do Blogger acaba de me devorar quatro mil caracteres escritos na madrugada de ontem; anda esfomeado como eu, na volta, quer ir comer um bife ao Snob e a mãe Google também não deixa)

Descemos a Bica, o elevador ganhou outro encanto desde que alguém me contou que mandou lá uma queca, entrámos na Bicaense às sete e picos da tarde, crianças a correrem de uma sala para a outra, isto confundiu-me os sentidos (e a primeira vez que eu fui à Bicaense dava um grande post, mas não vai ser, não quero falar desses dois), no fundo do balcão de pedra (mármore?), a minha ex-madrasta apresentava o seu novo livro, dava autógrafos, o meu mais ou menos irmão André, cada vez mais parecido com o Saramago, pulava de conversa em conversa, e a minha quase irmã Marta, linda e deslumbrante, com sardas no nariz, pele branca e acetinada, mas também ninguém se atreve a tocar à porta, ninguém quer morar nela e na minha sobrinha assim assim Maria, de sete anos.
E a Manuela, de cabelos encarnados, muito bonita: "Minhas filhas, o problema não é vosso, ponham isso na vossa cabeça". Dá uma festinha a cada uma, eu fecho os olhos, ninguém dá festas, ninguém se beija na minha família principal, mas eu acho que gosto deste carinho, e a Manuela não repara que eu não estou habituada e vira-se para o lado direito e diz: "Tenho umas filhas tão lindas, não tenho, Dirk?"

E o Dirk, com o seu sotaque cerrado holandês: "Diana, tu és minha quê?"

E eu: "Deixa-me ver, Dirk: ora, tu és o companheiro da minha ex-madrasta, mãe dos meus irmãos, isso faz de ti o meu ex-futuro padrasto".

Risos. Os Ralhas, os Oliveiras e os Gonzagas foram pioneiros nas salganhadas de laços familiares, que agora são o pão nosso de cada dia.

E o Dirk: "Posso ser teu pai?"

E eu: "Tenho que te pagar alguma coisa?"

E ele: "Não. E eu, tenho?"

E eu: "Não, mas podes-me fazer um desconto na Tom Tom para a semana, quando for lá comprar as prendas de Natal"

E ele: "Filhinha que eu nunca tive!"

E eu: "Paizinho, não te apagues..."

Gargalhada, abraço, beijinho repenicado na bochecha do holandês magrinho que passou a ser meu pai, ginjinha de penalti para anestesiar a garganta.

E agora a merda da notícia da criança que morreu há seis anos num esgoto no Seixal.

(Não tarda há mais. Tenho a cabeça cheia de posts, hoje nem dormi como deve de ser, devido ao congestionamento literário)

8 comentários:

Anónimo disse...

uma tentaiva de um sorriso para um descongestionamento.
thê

Dia disse...

Thê,
Tou a pensar fazer um jantar com os meus bloggers favoritos. Tu alinhas, moça?

Mary Lamb disse...

Não te apagues tu também...

Dia disse...

Maria Cordeira, também conto contigo

Mary Mary disse...

Nunca fui ao Snob, mas tenho que ir pelos vistos comer um bife... :)
Salganhada de família também tenho. Sou prima em segundo ou terceiro grau do meu pai... :P

Mary Lamb disse...

Marca lá esse jantar que tenho bem tempo, agora. Mas para ti teria sempre...

Dia disse...

Para a semana, sim?

Anónimo disse...

Só falta falares da companhia do lado :(