terça-feira, novembro 29, 2005

Quem quiser morar em mim

Quem quiser morar em mim tem que morar no que o meu samba diz
Tem que nada ter de seu mas tem que ser o rei do seu país
Tem que ser um “vidinha folgada” mas senhor do seu nariz
Tem que ser um “não faz nada” mas saber fazer alguém feliz


Carlos Lyra, Cartão de Visitas

Quem quiser morar em mim tem que saber isto, é o meu cartão de visitas: há sapatos caros, bicudos, com saltos muito altos e muito finos espalhados por toda a casa. E há cabelos gigantes, ondulados, castanhos, muito escuros – e já vão aparecendo brancos, também, mais grossos, mais frisados, não parecem filhos da mesma mãe –, há fios em todos os cantos tortos da minha casa velha com vista para a Duque de Loulé e para as águas furtadas miseráveis do prédio em frente, onde vive uma senhora de Leste que usa sempre um lenço na cabeça e me diz bom dia todas as vezes que me vê a cuidar dos crisântemos pela manhã; há cabelos no chão de tábua corrida, onde passam despercebidos entre os nós da madeira secular envernizada e brilhante como um espelho, de manhã seguem-me o rasto, sabem o caminho de cor, fazem-no de olhos fechados, atravessam a cozinha e decidem aterrar no lavatório e no chão preto polido da Revigrés.
Depois de a água quente quase me queimar a pele no banho, depois de a pele ficar castigada de encarnado,

[quem quiser morar em mim tem que saber que às vezes esqueço-me de encomendar a botija de gás e tomo banho de água fria, e quem ousar morar em mim tenha isto bem presente: só desligo a água quente quando me surge o post do dia. Quem tiver lido até aqui e continuar a teimar que é possível morar em mim escreva isto três vezes, para decorar: encaixo o chuveiro entre as sobrancelhas e fico ali, a suster a respiração, à espera que a falta de oxigenação me traga a inspiração numa bandeja de vidro colorido verde-garrafa com piquinhos, como os copos da Ivima da Marinha Grande que voltaram a estar na moda; fico de olhos fechados, imóvel, à espera que um mensageiro me entre pela casa a dentro, que me assuste de morte ao abrir sem aviso a cortina psicadélica de plástico – mais uma: quem quiser morar em mim tem que saber que padeço de uma dislexia grave que chama toalha à cortina de duche -, e o susto compensa sempre, num sobressalto abro os olhos, desencaixo (gosto do verbo encaixar, quem quiser morar em mim tem que gostar de se encaixar) o chuveiro das sobrancelhas (que antes de as depilar freneticamente eram unidas, como as da Frida), respiro fundo, abro os olhos, porque surgiu qualquer coisa, uma frase, um título, uma recordação, uma música que não oiço há mais de dois anos, e hoje foi rápido, pouco mais de cinco minutos submersa, para me chegar a modinha do "Quem quiser morar em mim"]

depois de os dedos estarem bem engelhados, depois da súbita ou tardia inspiração literária sub-aquática surgir, deixo para trás cabelos abandonados no ralo da banheira, passo pelas duas salas, ligo o computador, ligo o messenger, o Gmail, leio os blogues, as notícias, não ligo a televisão há mais de três semanas, largo mais uns cabelos nas almofadas folclóricas do sofá laranja, espreito a loira que dorme de boca aberta, descansada, protegida por um com um dossel de tule anil com luzes de libelinhas que ficam ligadas a noite toda; quem quiser morar em mim tem que compreender que é esta a minha rotina matinal, que depois disso rumo ao quarto de vestir e escolho a roupa em função dos sapatos eleitos.
Quem quiser morar em mim não pode levar a mal. E tem que saber que é perfeitamente normal estar com o dedo "pai de todos" direito na boca quando estou preocupada, que levanto a sobrancelha direita quando estou desconfiada, quem ainda quiser morar em mim, depois disto tudo, tem que olhar para o lado quando estou stressada, porque a nervoseira fica-me mal: tremo a perna direita compulsivamente e surge-me uma violenta urticária nas mãos, na cara e nas costas, perto da tatuagem.
Não é fácil, morar em mim. Há algures um mapa, muito confuso, muito gasto, estão cartografados becos sem saída, ruas estreitinhas, mal iluminadas, com estradas de macadame, entroncamentos, bifurcações onde não se pode olhar para trás em noites de lua cheia (os lobisomens andam à solta nas encruzilhadas, dizia-me a minha tia Luz, de bigodes fartos, a tia Luz, em São Félix, que não usava cuecas, apenas sete ou oito saias compridas e fazia xixi de pé como os homens, a tia Luz que já dizia à minha mãe quando a apanhava em criança a beber leite das tetas das cabras: ai menina que te dá uma caganeira de merda extrema…), é um mapa feito à medida e à escala do meu cérebro, labiríntico, quem quiser morar em mim tem que ter paciência, tem que trilhar caminhos nunca antes pisados, tem que descodificar adivinhas complexas, tem que se habituar a um dicionário de provérbios na mesa de cabeceira, que não é uma mesa de cabeceira, é uma mala velha, com autocolantes de hotéis luxuosos onde eu nunca fui, onde eu nunca poderei ir, porque já foram esmagados pelos Íbis e Holliday Inn, quem ainda faça tensões de partir nesta demanda é melhor levar rações de combate e uma catana, é longo o caminho.
Quem quiser morar em mim tem que levar com dezenas de versões das Variações Goldberg do JS Bach em cima das colunas da Sony velhota que teima em não me dar som da coluna esquerda (a esquerda não gosta de mim, e quem quiser morar em mim tem que se habituar à ideia que eu sou de direita). Não pode levar a mal ouvir o mesmo disco em repeat all durante semanas (nunca em repeat one, quem se atrever a morar em mim tem que saber que sou alérgica ao repeat one e isto aplica-se aos discos e a tudo na vida, gosto de obras únicas, de autor, podem ser imperfeitas, não importa, apenas detesto as repetições, mas gosto muito de variações ao tema, saiba, quem quiser morar em mim)
Tenho pavor do tempo. De chegar atrasada. Não uso relógio mas quem quiser morar em mim não pode deixar-me à espera, guie-se pelo sol, pelo relógio biológico, por um Tag Heur, não interessa, não pode é chegar atrasado, pode ter os sapatos sem graxa, mas não me pode deixar à espera. Porque depois a perna treme, o dedo vai para a boca, a urticária vem e repito: o stress fica-me mal.
Quem quiser morar em mim não pode estranhar o dom de ver o invisível e um sindroma raríssimo que amplifica ou inventa cores berrantes onde elas não estão; terá que se habituar ao facto de eu gostar de piano e ouvir sempre a melodia que toca a mão esquerda e nunca a que sai da mão direita (aqui temos das raras excepções à dicotomia direita/ esquerda; oiço sempre o acompanhamento, nunca a melodia).
Quem ainda estiver a ler e continuar a querer morar em mim tem que saber que durmo de barriga para baixo, com a cabeça enfiada na almofada de sumaúma, que para adormecer escavo os lençóis com os pés. Que uso há muitos anos o mesmíssimo perfume: Rush, da Gucci. Que dois terços do meu guarda roupa são pretos e o restante é beringela, encarnado ou castanho escuro. Que à noite uso um aparelho de contenção ortodôntico para os dentes continuarem perfeitos, alinhados, que tenho o tique de brincar com a língua atrás do incisivo lateral direito.
Quem quiser morar em mim tem que tolerar as “coisinhas” que me rodeiam: as fotos antigas da minha família, pregadas nas paredes do hall, as fotos das famílias dos outros que eu compro por tuta e meia, na Feira da Ladra, amontoadas nas prateleiras, nos livros e em caixas; tem que saber que gosto de jarros, de orquídeas, de ciclamens, de bonsais e de monsteras, que salvo pombos, pardais, gatos, cães, pessoas, tudo o que me aparecer à frente; tem que saber que não sei dizer não. Que trago pedrinhas roladas e folhas de plátano para casa, que adoro rebuçados bola de neve e bolo de bolacha.
Quem quiser morar em mim tem que saber tudo isto e muito mais (pára aqui, porque já estamos muito perto dos oito mil caracteres).
Está aí alguém?

10 comentários:

Lcego disse...

Já tinha saudades... vou dar numa de casamenteira... e pedir ao Branco para encontrar a chave dessa moradia...morariam tão bem as palavras submersas em àgua.

SGTZ disse...

O que esta menina não fala: as artroses, o mau feito, as longas conversas sobre malas, a má resposta das costas a alguns estímulos externos e a pancada da moda!
De resto parece-me bem ...

Mary Mary disse...

Eu tou aqui ainda... :P

Quem quiser morar em ti será único e especial como tu! E vais encontrar decerto quem queira morar em ti... Um talento destes não pode ser desperdiçado... :)

Anónimo disse...

Beijinho !!!!!

Dia disse...

Sargento... Eu só falei de malas nesse dia fatídico de há três anos atrás em que tropeçámos um no outro. Acho inacreditável só te lembrares disso e não da converseta tão imparável como comer amenoins, a bordo de um Daewoo Kalos verde, pelos campos verdejantes da Suíça.
A todos muito obrigada pelas palmadinhas nas costas (sabem bem), mas, de facto, é um repto lixado, o meu, ninguém se atreve a chegar perto.
Eu, Quem és tu? :-) É só para eu saber quem é que me manda beijos exclamativos.

Anónimo disse...

Eu tenho pena de não ser Eu. Essa morada precisa de ser assaltada.

Anónimo disse...

presente! sou o vinte mil e muitas/os... não devia vir ao teu blog. xiça! posso copiar algumas coisas? pra postar no meu! xiça
thê

Dia disse...

Copia à vontade. Eu também me inspiro no teu, o das bolinhas e letras ora laranja, ora encarnadas.

Anónimo disse...

[“We are all empty houses, waiting
for someone to open the lock and set us free”
thê

Dia disse...

João, eu gosto de variações ao tema.
E reza a lenda que não foi o Bach quem as escreveu, mas sim, o seu discípulo, um miúdo chamado Goldberg. E eu quero uma bola de pistáchio, por favor.