Quero ir comer um bife ao Snob (continuação)
Mas a minha mãe não deixa.
Se for trabalho ela deixa. Se for conhaque já não.
Ontem descíamos a rua do Século de táxi, a caminho da Bicaense, e eu quis ir comer um bife ao Snob.
Já no outro dia fiquei com ele entalado, no dia em que me apetecia desafiar o destino, mas ele (o destino) faltou ao encontro marcado, deixou-me pendurada na bonita Praça das Flores e nem sequer eram horas de comer um bife no Snob.
E na noite a seguir a esse dia, idem, e aquele cujo nome eu não posso mais citar (que tal? dá-te um ar clandestino, fica-te bem, digo eu) telefonou a dizer-me que estava um ambiente bas fond, que era melhor eu não ir ao Snob comer um bife (ainda me conhece mal, o tal que não pode jamais ser citado: não sabe que eu adoro o mais bas do bas fond, que vou ao Lidl de Xabregas para ver gente ordinária e suja, que amo os casais de fato de treino no Feira Nova da Belavista e seus respectivos rebentos ranhosos, com rabichos de cabelo à Ana Malhoa e ouro, muito ouro, nas orelhas, nos pulsos, ao peito).
Quero ir comer um bife ao Snob mas a minha mãe não me deixa.
Toma que a filha é tua.
Queria sentar-me na mesa onde eu e o Lourenço (das arábias), putos de 18 anos, abancávamos, gulosos, cansados, desiludidos com o curso superior que nos tinha calhado na rifa, íamos ao Snob pelo prazer de um bife fora d'horas, íamos ao Snob pelo bife, apenas por isso, e eu estava longe de imaginar que ia ser jornalista, nem o arcanjo Miguel sonhava que iria trabalhar para os Emirados Árabes Unidos, éramos naïfs, não sabíamos que aqueles bêbados todos que fazem parte da decoração do Snob eram, maioritariamente, jornaleiros; gostávamos do Snob e ponto final, do Snob antigo, o mais escuro e mais inflamável (o novo perdeu um certo encanto, mas eu continuo a querer ir ao Snob apenas pelo bife), e poucos meses depois de ter ido ao Snob pela primeira vez, pelos braços do senhor das Arábias, entrei para o pasquim onde me prostituo a escrever notícias sem interesse,
(hoje, infelizmente, escrevo sobre uma desgraça, o Tiago já sabe que não me deve dar desgraças para as mãos, que fico muito tempo a matutar sobre elas, uma breve de 500 caracteres sobre um homem que morreu trocidado por uma serra eléctrica numa linha de montagem demorou qualquer coisa como duas horas a ser escrito, foi o meu primeiro fim-de-semana de piquete nesta secção, tinha as mamas cheias de leite, bastava fazer copy e paste do take da Lusa para me despachar rápido e ir esvaziar o quarto Vigor do meu corpo, era preciso apenas limar o texto, mas a boa da Dia não conseguiu desligar-se, claro que não, aquele homem morreu, uma morte horrível, e eu só pensava na mulher e nos filhos a recortarem a puta da breve e a juntarem-na às outras micro-notícias da imprensa nacional - no 24 horas, o senhor foi um rodapé de página par, sei disto porque me perseguiu a morte deste homem nos dias a seguir -, os dedos da mulher mascarrados de tinta debotada de um papel de péssima qualidade, uma vida toda em cinco micro-recortes, guardados numa pastinha com fotografias do senhor a sorrir junto aos filhos no seu último Natal, o senhor com cara de caso junto aos sogros no baptizado da filha mais nova, o senhor na maternidade com a mulher ainda muito inchada e de bochechas rosadas, acabada de parir um bébé de cabelos muito escuros e espetados, vestido de babygrow azul, um varão, e a breve que não saía dos meus dedos, eu a pensar na serra eléctrica, na linha de montagem, nos 375 euros que levava para casa ao fim do mês)
foi o mano que me arranjou um part-time na secção de Economia (e eu acho isto belo: a primeira negativa que tive na vida foi a Economia, foi também a primeira frequência da faculdade e eu tive um oito, ainda por cima uma negativa par, ao menos que fosse um sete, gaita, e a vida é mesmo assim, oito a economia e jornalista de Economia), ganhava trinta contos a facturas de restaurante e de gasolina, a culpa é do mano, eu nunca quis ser jornalista, e só mais tarde, com a saudosa Gabriela Neto e com uma pandilha selecta de jornalistas de Economia (alguém se ia embora, não sei bem quem) é que fui ao Snob em visita de estudo devidamente acompanhada com espécimes jurássicos do jornalismo nacional, nessa madrugada não comi um bife, bebi um Vodka, e percebi que o sítio onde gostava de comer às tantas com o meu Miguel era o poleiro da classe onde eu entrei sem convite, pela porta VIP.
(E a merda do Blogger acaba de me devorar quatro mil caracteres escritos na madrugada de ontem; anda esfomeado como eu, na volta, quer ir comer um bife ao Snob e a mãe Google também não deixa)
Descemos a Bica, o elevador ganhou outro encanto desde que alguém me contou que mandou lá uma queca, entrámos na Bicaense às sete e picos da tarde, crianças a correrem de uma sala para a outra, isto confundiu-me os sentidos (e a primeira vez que eu fui à Bicaense dava um grande post, mas não vai ser, não quero falar desses dois), no fundo do balcão de pedra (mármore?), a minha ex-madrasta apresentava o seu novo livro, dava autógrafos, o meu mais ou menos irmão André, cada vez mais parecido com o Saramago, pulava de conversa em conversa, e a minha quase irmã Marta, linda e deslumbrante, com sardas no nariz, pele branca e acetinada, mas também ninguém se atreve a tocar à porta, ninguém quer morar nela e na minha sobrinha assim assim Maria, de sete anos.
E a Manuela, de cabelos encarnados, muito bonita: "Minhas filhas, o problema não é vosso, ponham isso na vossa cabeça". Dá uma festinha a cada uma, eu fecho os olhos, ninguém dá festas, ninguém se beija na minha família principal, mas eu acho que gosto deste carinho, e a Manuela não repara que eu não estou habituada e vira-se para o lado direito e diz: "Tenho umas filhas tão lindas, não tenho, Dirk?"
E o Dirk, com o seu sotaque cerrado holandês: "Diana, tu és minha quê?"
E eu: "Deixa-me ver, Dirk: ora, tu és o companheiro da minha ex-madrasta, mãe dos meus irmãos, isso faz de ti o meu ex-futuro padrasto".
Risos. Os Ralhas, os Oliveiras e os Gonzagas foram pioneiros nas salganhadas de laços familiares, que agora são o pão nosso de cada dia.
E o Dirk: "Posso ser teu pai?"
E eu: "Tenho que te pagar alguma coisa?"
E ele: "Não. E eu, tenho?"
E eu: "Não, mas podes-me fazer um desconto na Tom Tom para a semana, quando for lá comprar as prendas de Natal"
E ele: "Filhinha que eu nunca tive!"
E eu: "Paizinho, não te apagues..."
Gargalhada, abraço, beijinho repenicado na bochecha do holandês magrinho que passou a ser meu pai, ginjinha de penalti para anestesiar a garganta.
E agora a merda da notícia da criança que morreu há seis anos num esgoto no Seixal.
(Não tarda há mais. Tenho a cabeça cheia de posts, hoje nem dormi como deve de ser, devido ao congestionamento literário)