quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Bicker da Costa [Vox Populi]

[Reescrito]

Seis da tarde.
A neve já está arrumada na gaveta das recordações longínquas.
Nevou em Lisboa há coisa de três horas, mas todos, sem excepção, já só a admitem rever daqui a meio século. Já ninguém sorri. Já ninguém partilha essa absurda felicidade branca com o estranho que está ali ao lado, a pisar as mesmas pedras da calçada. As temperaturas baixaram muito, os termómetros, preguiçosos, não estavam habituados a estas andanças, a descer abaixo do sete, mas lá tiveram que, a contra-gosto, rumar até aos zero graus da escala de Celsius. Fizeram birra, estiveram impossíveis de se aturar nos dias que se seguiram.
Os meus sapatos, que coisa admirável: hoje comprei três pares de Balenciaga, mas no dia em que a neve caiu na minha cidade, sem ninguém, a não ser o meu carro, a ter sentido a chegar, assim de mansinho, tinha nos pés uns ténis ranhosos. Vá lá que o decorativo me deu uma memória para trancar no cofre do dia do "nevão", vá lá que não me vou lembrar dos ténis manhosos, mas sim, de quadros a caírem das paredes (é o que a minha amiga esquizo chama de sexo desenfreado), da ponte sobre o Tejo (reparem, como nós os reaccionários evitamos chamá-la pelo nome) meia iluminada, meia envergonhada, mas, às seis da tarde, os pés estavam encharcados de terem andado a dançar com a Carolina junto à "bela sombra" que guarda a minha infância (quero que ela guarde a infância da minha loira também), às seis da tarde, 18 horas, os pés estavam roxos e eu sem os sentir, as mãos inchadas e roxas e eu também sem as sentir, e o meu cabelo encaracolado, como o do Zé Ralha, com vida própria e também não o sentia (no Brasil, com 90 por cento de humidade, o meu cabelo também revelou os seus genes paternos), e eu e o desgraçado do fotógrafo catalão, que apanha sempre comigo os serviços mais sinistros (lembro-me de irmos à Lapa fotografar uma cratera de um metro de diâmetro, descrita assim pela Lusa, e quando lá chegámos era uma rachita no chão), nós os dois com o dente a bater, a desesperármos por quatro almas caridosas que respondessem ao Vox Populi, e era tão simples a pergunta: "Já alguma vez tinha visto neve em Lisboa. Gostou de ver nevar?", não custava nada responder, a fotografia é um crominho, quase não se vê, e o rapaz é bom fotógrafo, faz as velhas bonitas e as novas trigueiras, mas ninguém, ninguém queria responder, nem uma filha da mãe de uma tipa que, sádica, ainda teve o desplante de dizer que tinha um filho jornalista mas que não estava interessada, e eu a desejar desemprego crónico ao filho jornalista, a desejar-lhe um balcão de MDonalds, ou recibos verdes e 14 horas de trabalho por dia, pelo menos durante cinco anos, para ver o que é bom para a tosse, para ver se para a próxima responde, mas, à porta do Monumental, depois de termos corrido, também, a Maternidade Alfredo da Costa, e todas as paragens de autocarro da Fontes Pereira de Melo, abordámos o senhor Bicker. Velhotes. É o desespero de causa. Todos os velhotes gostam de opinar. Basta ver a média etária do Fórum TSF ou do Opinião Pública da SIC Notícias.
E graças ao senhor Bicker, à neve e à outra filha da mãe, eu tenho mais uma história para contar. Abençoado senhor de olhos azuis cristalinos e placa dentária saltitante, abençoada loucura, artereosclerose, solidão e galopante surdês.
"Fartei-me de ver neve na minha vida. A brasileira que cuida da casa é que estava doida, nunca tinha visto". Foi esta a resposta de Bicker da Costa e, claro, transformei o testemunho do homem de 85 anos numa coisa mais politicamente correcta, não estou certa, sequer, se mencionei a brasileira que o velhote, de origens alemãs, tratava como se fosse de uma raça menor.
Sem pedir licença, como a neve que caiu em Lisboa, Bicker da Costa começou a discorrer as suas memórias. Tínhamos que ouvir. Ele era uma alma caridosa, a primeira, que tinha respondido ao Vox Populi. Era o mínimo que podíamos fazer.
Surdo que nem uma porta, identificou-se como enólogo e, sem avisar para apertarmos os cintos e endireitarmos a cadeira, levou-nos de viagem até à Venezuela, a palácios e a quintas que não conhecemos, que nunca ouvimos falar.
Fortunas que se perderam, jogos de azar, jogos de amor. Levou-nos ao baile. Nem reparou que eu estava de ténis. Não disse o nome dela, apenas nos revelou que, à segunda dança, e tenho eu a certeza que foi ao som de Irving Berlin (o talentoso judeu russo Israel Isidore Baline, um self made musician, que aprendeu essa linguagem que eu percebo, que eu falo, mas que não sei ler ou escrever; ele aprendeu de ouvido, fiquem a saber isto: um dos melhores compositores de sempre, aprendeu música de ouvido e, se, de facto, fosse o meu destino andar a cantar, eu também devia aprender por obra e graça do divino Espírito Santo; não tarda, tiro da cabeça que é o que eu sei fazer melhor; não tarda, convenço-me que é mesmo a escrever que tenho que cantar o meu fado), escolho o Let's face the music and dance (There may be trouble ahead, But while there's moonlight and music, and love and romance. Let's face the music and dance), e antes o Cheek to Cheek (and I seem to find the hapiness I seek, when we're out together dancin' cheek to cheek), à segunda música, o senhor Bicker pediu a elegante menina com quem dançava graciosamente, com uma leveza de colibri, em casamento
Inveja. É coisa feia a inveja. Três Pai Nossos e Dez Ave Maria já. Quero que me peçam em casamento ao segundo post. Não sei rezar, aviso já. Com seis anos passei a vergonha na sala 5 da professora gertrudes Maria porque não sabia o que era jurar. Com nove anos, passei outra vergonha, numa sala da Gago Coutinho, durante um teste de Português, porque não sabia o que era imolar carneiros (e ainda bem, fiquei impressionada e ultrajada).
Ela disse que não. Mas o senhor Bicker, galã de filmes, mas com os olhos azuis da cor de um Pantone que ainda estava para inventar nessa altura, em vez de a preto-e-branco, como nas salas escuras do cinema, insistiu. Foi falar com os seus pais, impressionou-os com o porte nobre, mas, sobretudo, com o seu pátua. Ia partir para a Venezuela, explicou-lhes, queria casar o mais rapidamente possível. Isto foi há mais tempo do que o último nevão que cobriu Lisboa de branco.
O senhor Bicker era um homem lindo, ainda é um homem lindo, trajando sobretudo de cachemira e fato de alfaiate, mas no dia em que a neve caiu dos céus em Lisboa e em todo o país, no dia em que toda a gente sorriu, esticou os braços como que num demorado espreguiçar, e gritou o seu nome alto - Neveeeee -, no dia em que toda a gente sacou dos telemóveis com camera fotográfica e tentou parar o tempo para depois matar as saudades ao longo dos próximos 50 anos, o senhor Bicker esteve indiferente ao espectáculo: "Fartei-me de ver neve. A brasileira é que parecia parva. Fiquei sentado no divã".
A menina angelical, pele de pêssego e cheiro de rosas chá, a menina disse, poucos dias após as duas danças mágicas, disse que sim, que se aceitava casar, mas a bela noiva de cabelos loiros do senhor Bicker não tinha sequer enxoval. Apanhara todos desprevenidos, a paixão louca e decerto interesseira e de conveniência do senhor Bicker.
Esperaram, então, cinco meses até que as bordadeiras acabassem de bordar os lençóis e as toalhas, até que chegasse a baixela de prata e o serviço de porcelanas de 180 peças da Vista Alegre. Passados cinco meses, estavam casados. Na alegria e na tristeza. Até que a morte os separasse. Viram o mundo todo, viram neve em toda a parte.
Ela partira há três anos. E o senhor Bicker desdenhava da brasileira e contava ao primeiro estranho que o abordava que, depois da segunda música de Irving Berlin, a tinha pedido em casamento.

8 comentários:

FTA disse...

Isto é que é um vox populi.

fta

Anónimo disse...

Lindo, veio com o post o cheiro a frio, um arrepio na espinha e as saudades de casa.

Anónimo disse...

Nos últimos tempos o trabalho tem sido mais que muito e o tempo quase não tem dado para passar por aqui. Às vezes até imprimo e levo para ler no caminho. Mas hoje, enquanto o programa "desmoi" a análise que lhe pedi, passei por aqui. E ainda bem. Ler-te faz-me bem. Alegra-me a alma. Apesar do cansaço que é de tal forma que até me faz febre. Obrigado Tia.

Anónimo disse...

Bom isso é que é. Cheguei, vi e venci.
Jokas do Castelo

Anónimo disse...

que bonito mana :)

MPR disse...

Gosto de histórias de amor e gosto de histórias (sim não tiro o H nunca!) com História...

Mary Mary disse...

Já não há histórias românticas como antigamente. Hoje em dia é: "À segunda bebida já tava na minha cama!"... Enfim, romântica inveterada continuo a acreditar que é possível ainda haver histórias assim...

Uma história de conto de fadas, esse senhor deve ter sido fantástico de conhecer... :)

Dia disse...

Tenho saudadesssss. M.zinha!!!!! Ainda bem que te faço rir. Sempre às ordens, minha querida babysitter.