segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Sem título

Isto é muito triste.
E como é tão triste, talvez se aproveite qualquer coisa que saia sem ser à força nesta madrugada que sei que vai ser longa, porque não me vou drogar com nenhum químico, não vou fazer o chá que a Magui comprou na ervanária, preocupada com a negritude das minhas olheiras, não digo que vá conseguir parir algo sublime, que erice a pele, a soberba é um pecado mortal, pelo menos, se não é, eu vejo-a como defeito capital, mas talvez eu consiga purgar qualquer que se assemelhe a âmbar e não apenas mais uma merda viscosa como tudo o que tenho escrito por estes dias.
É que hoje saí de mim, senti a alma a desprender-se do meu corpo, ela foi para um canto, lá em cima, de castigo, enfiou voluntariamente o chapéu de burro, e leu alto, com a sua melhor voz de rádio, as últimas coisas que plantei neste quintal e eu fiquei tão envergonhada com o amontoado de caracteres desalmados que para aqui andam, em fundo preto, que, antes de partir para o caminho da auto-flagelação, ainda me consegui rir com a história das acções do blogue, que está avaliado em seis mil b$, seja lá isso o que for, não tarda começam a ser emitidos profits warnings, mas o que me fez mesmo rir foi o Mau Tempo, que me linkou à sucapa, que canalhice, valer muito menos que esta tralha escura, e já imagino o Francisco a não dormir por causa da sua reles cotação no Blogshares, mas depois desse apontamento de humor, e ainda não me conformei com esta história de um accionista ter um quarto do capital literário da (T)ralha, que está disperso sem a autorização da sua CEO e CFO, em bolsa, e falando em bolsa e em acções, estou maravilhada com esta do meu patrão a querer comprar a PT, a sorte protege os audazes, sim senhor, mas, fazendo jus à minha cavalar bipolaridade, depois de uma gargalhada, nem um minuto depois, tive vontade de apagar posts, partes de posts, posts inteirinhos, sem contemplações, uma espécie de plano de reestruturação, de redução de custos para aumentar os dividendos a distribuir aos accionistas, chegou a apetecer-me dar à (T)ralha uma morte com alguma dignidade, uma eutanásia rápida, abrir falência, sim, apeteceu-me apagar o blogue inteiro, acabar tudo, era um bom dia para acabar. Mas eu não apago nada nesta vida, há pastas deste e do outro computador cheias de ilusões, de conversas do messenger, arquivadas com nomes sugestivos, a conta principal de Gmail carrega às costas, todos os dias, 1079 megabytes de tralha, coisas boas, coisas menos boas, há conversas arquivadas com a etiqueta dramalhão, há as conversas da treta, há 1410 comentários postados pelos meus leitores, há um amor literário guardado com uma etiqueta que eu não posso escrever e isso é indecente, até o nome da etiqueta eu tenho que esconder.
Isto é muito triste e se sair delicodoce não publico.
Esta aprendi com quem já não me ensina mais coisas tontas, disse-me um dia a tristeza é loira, é fácil de enganar, basta forçar um sorriso, o que parece é, e a tristeza foge dos sorrisos a sete pés, como os vampiros das cruzes e os casais de namorados (foda-se, mais um ano, o quinto, sem um caralho de um gajo para ir jantar fora no idiota do dia de São Valentim) dos refogados com alho.
Isto é triste e quando estou triste, esqueço-me de respirar, cerro as mandíbulas, aparece uma veia no meu pescoço, os olhos ficam achinesados, ficam tal e qual como quando nasci e a Magui desatou a chorar por pensar que eu era mongolóide, mas o que parece é, esforço por esticar os lábios e ajuda sim senhor, se calhar, também não me devia vestir tantas vezes de preto, carrega-me, e já não vou a caminhar para nova, diga 27, repita comigo, 27, o chefe farta-se de me elogiar quando vou de calças de ganga, não sou eu, mas eles gostam daquela que eu não sou, um pouco como a audiência silenciosa da (T)ralha, eu não sou isto que vêem aqui, mas olhem, o decorativo ligou, cantou e tocou para mim, disse coisas descalibradas, como sempre, e os sorrisos saíram cada vez mais escorreitos pela madrugada fora (são três e um quarto da manhã).
Se ele tivesse morrido teriam ligado? Se ele morrer, enviam-nos um telegrama?
No Algarve, a 300 quilómetros a sul de onde escrevo, sentada numa cadeira de rodas, a filha do meu avô acha que ele caiu, que não foi nada de grave, está mais preocupada em saber que tamanho de roupa veste a minha filha, porque amanhã uma amiga vai levá-la aos saldos, ao Faro Shopping, e isso é um acontecimento para uma catedrática multi-deficiente com esclerose múltipla.
Isto é tudo muito triste e eu vou esforçar-me agora por sorrir. Dói.
No dia 25, eu estava no Bairro da Liberdade a ver imundices várias, a ficar com as pernas cartografadas por pulgas sem muita falta da chá, que não sabem que não se ataca os convidados. No dia 25, antes dizer ao taxista para me levar para o pior cenário daquele bairro de Campolide, estava dar duas fatias de Panrico aos pardais do Picoas Plaza, cagada de medo, a tentar acalmar o nervoso miudinho que tinha na barriga e que não sentia há muitos anos, instalado que está o funcionalismo público na minha profissão e, também, em mim. No dia 25 de Novembro, eu pensei, juro-vos que pensei isto, que tinha que fazer um trabalho que o meu avô comentasse ao pequeno-almoço, na Costa, e quando eu fui cantar ao Coliseu, ele deixou-me uma mensagem no telemóvel, eu ouvia-a uns minutos antes de entrar no palco, dizia: "não importa qual é o resultado, se ficas em primeiro ou em último lugar. Para mim, tu já és a vencedora". E ele disse isto com a voz embargada, estava a chorar e foi nesse momento que eu soube que ele não lia só os artigos do Leonardo, que não falava de mim, mas, também, me seguia de longe, mas com muita atenção, talvez com a mesma atenção.
No dia 25, o meu avô teve um AVC e eu não soube, ninguém me avisou.
Ontem, sabe-se lá porquê, teimei em trazer para Santa Marta a prenda de Natal que ele deu à minha filha, a primeira bisneta Ralha. Estava em casa da Magui desde Novembro, trocámos prendas em Novembro às escondidas do Zé Ralha, que amua se sabe que nós vemos o nosso avô, é um Bambi gigante, grande demais para esta casa, mas, desde ontem, passou a fazer parte da decoração da sala, está mesmo à minha frente. Desde ontem. Meteram-se comigo na rua, por causa dele, vi adultos a sorrir, a carregar nas buzinas, porque o Bambi foi comigo para Santa Marta instalado no banco laranja do pendura.
E hoje eu soube que o meu avô teve um AVC. E não estou certa que, se ele morrer, alguém nos avisará.

[Não reli este post, são quatro da manhã e o blogger não deixa postar. Amanhã corrijo. Acho que não está delicodoce]

8 comentários:

Anónimo disse...

Está mto bom. Não vi erros. E até verti uma ou duas lágrimas. porque hoje estou mais sensível, porque tenho de sair do emprego a meio do dia para ir convencer o meu avô que o melhor que há a fazer neste momento é ele aceitar ir para o lar, onde está a tentar entrar há mais de 3 anos, para o qual contribui com quotas há mais de 30 anos, e para o qual conseguiu finalmente vaga. Mas agora, diz que não quer ir. Que se for, já não sai. O que é verdade. Porque tem 86 anos e já não está a caminhar para novo. Porque o tempo é cruel e retira-nos, à medida que passa, tudo de bom que nos deu ao longo da vida. E porque é difícil, depois de uma vida, aceitarmos que praticamente só nos resta aguardar a morte. Que é uma inevitabilidade. A única certeza que temos ao nascer. É que ela nos espera, mais cedo ou mais tarde. E ele não se conforma. E o ir para o lar é como ir na estrada e começar a ver placas de que o local onde nos dirigimos se aproxima. E não serve de nada dizer-lhe que a mãe dele viveu num lar, feliz, durante mais de 15 anos. E morreu aos 99 anos e 9 meses. Serena. Não foi na sua casa, é certo, mas foi na casa que a acolheu com carinho nos últimos anos da sua vida. E ele não quer ir, agora. E depois talvez seja tarde demais. E eu hoje, tenho de o ir convencer de que esta é a melhor solução. Porque não somos ricos. Dizem que o dinheiro não traz felicidade. É certo. Mas ajuda muito.

MPR disse...

Não está delicodoce... está profundamente sentido.

Filipe Simões disse...

Sem erros,mas com muita sinceridade e honestidade como tu sempre nos habituaste.
Continua...
Beijinhos.

Anónimo disse...

está optimo! e "M." acho mesmo que devias escrever um blog :)

Mary Mary disse...

Estou com o coração apertado, consumido! Há coisas que simplesmente não deviam acontecer! Lembrei-me também do meu avô, que está doente também... Nem quero pensar nisso...

O post está fantástico! Não está uma merda, está fabuloso... É um dos meus preferidos...

Carrie disse...

Amiga, os teus posts não são uma merda. Nenhum deles. Talvez que a ‘esquizo’ que nos une me tolde a visão... quem feio ama bonito lhe parece… e podem-me acusar de lesbianice que não me importo. Gosto do que escreves, gosto que ti, e custa-me ver-te passar por isto, sabendo que é inevitável, se não for agora será mais tarde, sem poder fazer nada para amainar essa dor.

Anónimo disse...

Delicodoce uma ova. Como se pode chamar delicodoce a uma situação destas, apesar de já não ter avós desde que nasci, mas calculo o que se deve sentir. Tenho muito pena de não ter conhecido os meus principalmente a minha avó materna, que ,dizem, era uma santa senhora. E mesmo que fosse delicodoce o que importa???

Beijão do Castelo

Anónimo disse...

querida dia,

sem mágoas, sem quem tem culpas, talvez fosse uma altura de reatar alguns laços. Algumas coisas doem mt mais quando insistimos em não as enfrentar. Durante um certo tempo marcamos uma posição perante os outros, a partir de um dado momento inflingimos danos mt profundos a nós próprios. Dada a inevitabilidade daquilo que vais acabar por passar, e essa dor vai ser partilhada, aproveita e atenua algumas dessas questões. Se quiseres dou-te uma ajuda!

Beijinho grande,