quarta-feira, março 08, 2006

Foi então

[Preparem-se; sentem-se o mais confortavelmente possível na cadeira muito pouco ergonómica que vos arranjou a entidade patronal, e eu sugiro, ainda, um chá preto para acompanhar a leitura de um lençol]

Foi, então, que ela soube.
Falhava a interpretação de todos os sinais. Era recorrente este lapso, apenas gostava de sinais sobrenaturais, dos que mais ninguém vê: dos anjos que acordam de madrugada e evitam fogueiras no Marquês de Pombal, dos coelhos que saem das cartolas das suas caixas de comentários, do visitante 33.333, dos telefonemas de um perigoso inominável após actividades potencialmente sifilíticas.
Estes, sim, ela via, e interpretava ao sabor do vento, da ventania em forma de remoinho que varria tudo de mau para trás do coração. Mas, como sempre foi directa, sem rodeios, não tinha grande pachorra para insinuações, para o dá e tira, para chove que não molha, e quando assim era, levantava a sobrancelha direita e fazia uma covinha, na bochecha desse mesmo lado – o seu melhor lado, como não poderia deixar de ser, ou não fosse ela uma perigosa reaccionária –, e ignorava.

Por isso, na grande maioria das vezes, era sempre a última a saber, mesmo quando tudo se apresentava à sua frente – de uma forma desordenada, é certo, mas estava tudo lá, a monte, e até um ceguinho poderia ver, e ela sempre acreditou na sabedoria popular, dormia com o dicionário de provérbios na mala antiga que usava como mesa de cabeceira e algures na página 735 dizia que o pior cego é aquele que não quer ver, e, mais atrás, na 512, vinha esta verdade: em terra de cegos quem tem um olho é rei.
Mas, apesar das dioptrias, duas e meia num olho (era ligeiramente estrábica por isto, porque tinha muitas dioptrias num olho e visão de ave de rapina no outro), via muito bem, nunca trazia os óculos na ponta do nariz, sobretudo porque a aleijavam atrás da orelha direita e, também, não há que negar, porque ele dissera que ela parecia uma professora da primária com os seus Calvin Klein de massa preta, de estilo anos 50.
Estava cega por opção e, por isso, não se podia queixar. Não queria ver e sabia que isto era uma sina. Era bom e era mau: evitava chatices, taquicardias, sobretudo gritos, mas havia um preço alto a pagar. Tinha que se conformar, por exemplo, com o facto de ter conhecimento de notícias relacionadas com a sua carreira na máquina de café, vindas da boca de alguma alma caridosa com pena da figura triste de ceguinha que fazia, quando metade da redacção já estava careca de saber o que os ventos da aleatoriedade lhe trariam.

(contra todas as expectativas, não foi emprateleirada: não a puseram de castigo num outro piso, mas para não se habituar mal, fizeram com que ela sangrasse um bocadinho. Às escondidas, enfiaram uma pedrinha no sapato, um pionaise na cadeira, tiraram-lhe dez por cento da avaliação anual: toma lá 90 por cento, que a menina tem o apelido errado, que a menina tem a mania que é do contra e, em 2005, ela até precipitou uma alteração legislativa, e não foi nenhuma fonte dela que bufou fosse o que fosse, não foi trombone, foi ela que descobriu tudo sozinha e já nem se lembrava disto, não tivesse feito um esforço sobrenatural para se lembrar do que escreveu em 2005, e depois de se ter lembrado de uma manchete que andou nas Tv’s durante uma semana, não percebia porque lhe faziam isto, não percebia mesmo).

E andava sempre de headphones nos ouvidos, e isto não ajudava, passava-lhe muita coisa ao lado, mas, ainda assim preferia viver assim, embalando os dedos ao som da música – o trabalho purifica e liberta ainda mais ao som de uma boa banda sonora, e neste preciso momento estava a ouvir com muita atenção uma senhora húngara, de seu nome Marta, a cantar uma melodia triste que fala de amor (e é fatal como o destino: é tão fácil ser triste quando é sobre amor, e amor em húngaro diz-se "szerelem" e bem sei que não soa nada bem, mas pior, pior, era a sonoridade do amor na língua do povo que inventou a Nokia: "mina rakastan sinua", ensinou-lhe a sua irmã de nome mais nova e ela apeteceu-lhe ripostar com um "santinho!").

Por vezes, achava alguns dos seus comportamentos bizarros, mas atribuía-os a uma enorme excentricidade e leveza de ser; não parava um instante para os analisar, nem sequer com a clarividência que chegava nas noites em que o sono não tinha paciência para subir as mais de seis dezenas de degraus em estado de decomposição avançada do seu prédio situado na rua da santa mais amiga.
Tinha necessidades de informação mínimas, e isto era no mínimo estranho e surreal, porque ganhava os dias, pagava as contas a catar informações como quem anda ao papelão, de ouvidos e olhos bem afiados, permanentemente atentos a tudo o que se passava.

Aos fins-de-semana também não lia jornais. Nem nas férias. Era assim.

Começou com os telefonemas às cinco da manhã. Não percebeu.
Depois, com o fim da clandestinidade: na bola, onde encontraram os seus directores duas ou três bancadas acima e, no dia a seguir, no segundo jantar dos encalhados em Santa Marta. Ela não estava à espera que ele fosse, não estava à espera que desse jantar à loira, não colocou sequer a hipótese que ele ficasse, quando os demais convivas partiram escada abaixo. Ainda assim, não deu a devida importância. Deixa andar...

Começaram as cantorias nessa noite em que ele não ficou para dormir e ela encantada com essa sua mania de se ir embora, porque não estava preparada para o ver de manhã, de cabelo despenteado e aspecto de merda.
Já andava de rede de caçadora de borboletas no banco de trás do Idea quando ele chegou, sentou-se no lugar do morto e entregou-lhe um CD pirata, uma playlist de 18 canções. “O rádio não lê mp3”, disse ela. “Eu sei. Não são mp3. Eu penso em tudo. É para as aprenderes”, respondeu ele. E, nesse instante, ela desconfiou e levantou a sobrancelha. E ignorou. Como sempre fazia.
Já lhe tinham perguntado, no Idea, porque andava ela a ouvir Jorge Palma. Desconversava. “Não interessa”, rematava.
Estava a aprendê-las. Era bem mandada e à noite sonhava com duetos ao som de um piano.
Há poucos dias, o telefone tocou.
Do outro lado ouviu-se Xutos. “Amas a vida e eu amo-te a ti”.

Conta-me histórias, engana-me que eu gosto, nega tudo com figas atrás das costas.

Foi, então, que ela soube. Que ele a amava.

10 comentários:

Maria disse...

E que coisa deliciosa é essa que vc nos conta, tão bom, tão bonito quando a gente faz essa descoberta! Beijos e muita sorte para vc!

Dia disse...

Saiu bem este, de facto. É um lençolito de seda.
Obrigada Maria

Mary Mary disse...

Escreves como ninguém... Até o li duas vezes... :)

[ t ] disse...

um leençolito de seda sim, já bebi o chá, que não foi preto e sequei o cabela! gostei.

Isa disse...

:-)

MPR disse...

Está mesmo a rebentar, se é que não rebentou já! A pergunta que se impõe após tão cuidada narrativa é: e ela respondeu o quê?

Dia disse...

Sorriu. E os olhos brilharam. E ele não viu nada porque estava longe. E manteve-se em silêncio.

Anónimo disse...

E a pergunta é, para qdo um anjo moreno?

Mary Lamb disse...

Ai! Lindo. Linda

AnadoCastelo disse...

Bom, mas que bela seda. Podes ditar mais lençóis destes que eu quase tenho a certeza que todos vamos adorar.
E o pequeno está com muita sorte, não achas?? Uma moçetona (é assim que se escreve??)como tu não é para desperdiçar.
Boa sorte rapariga
Jokas