quinta-feira, março 30, 2006

Leite com groselha

Todas as manhãs.
Todas as manhãs saio da cama, em dois passos mato o corredor estreito onde hei-de pendurar os mortos dos outros, a quem dou abrigo, recolhendo-os do abandono da Feira da Ladra, vou sempre de olhos fechados, como um cego de nascença que sente como ninguém o espaço, até ao chão de xadrez encarnado sangue de boi e ocre da cozinha. Não me magoo na ombreira da porta do quarto, que só abre até metade porque o chão cedeu ao longo dos séculos, já faço parte desta casa, sinto-me tão bem aqui, conheço esta casa de outra vida, e nesta assoalhada onde durmo - durmo poucas horas, é certo, mas ainda assim durmo, raramente sonho, porque nunca chego ao sono profundo. Nestes doze metros quadrados onde me deito todas as madrugadas, depois de escrever posts de pernas cruzadas em cima do sofá laranja, esquecendo-me de ligar a televisão encarnada, abrindo apenas o iTunes e os cordéis à música, durante mais de 80 anos serviu-se o almoço e o jantar, comemoraram-se mil aniversários e consoadas, e tinha que vir eu para subverter as rotinas em Santa Marta.
Desde que cá estou, desde que começaram as insónias - a culpa não foi da casa, foi de quem me veio visitar ao segundo dia -, ainda não passaram nove meses, nenhum bebé saiu do ventre de sua mãe e, no entanto, sobrevivi a uma mão cheia de desventuras, encontrei amigos no escuro do blogue, e ainda não pendurei cortinas: a vizinha apanha-me sempre em cuecas, porque eu não gosto de dormir com calças de pijama, gosto de sentir o linho bordado pela minha mãe na pele.
E só quando já estou a meio da cozinha, em transe sonâmbulo, é que abro os olhos, inchados, ramelentos, abro-os quando estou muito perto do pequeno frigorífico Aspes, bravo electrodoméstico que comprei a um colega do jornal que não vejo há tanto tempo quanto o que vivo por baixo do Marquês, por 50 euros, e desde então, desde 2002, o ano da ruptura, que ele me serve fielmente, sem lamentos ou queixumes.
Tiro o pacote de leite. Procuro uma caneca no escorredor inox. Verto sempre alguns pingos na bancada de mármore. De olhos fechados outra vez, tacteio à procura da garrafa de vidro fria, desatarraxo a rolha de latão que às vezes me corta os dedos, tinjo a brancura do líquido de cor-de-rosa, com groselha Altoviso e lembro-me de ti, avô. Todas as manhãs.
Mas tu ensinaste-me esta delícia, ainda era de noite, os galos ainda dormitavam, numa madrugada longa, distante e quente de Agosto. Desceste as escadas, que hoje não consegues desbravar, a desoras, preocupado comigo e com o Bernardo, era já muito tarde, e na tua casa, apesar de não gostares disso, nunca houve regras: devorávamos filmes que não eram para a nossa idade, jogávamos poker, esvaziávamos o bar onde mandaste colocar um painel de azulejos da Viúva Lamego com um Baco, fumávamos cigarros que o Zé Ralha nos deixava às escondidas, fritávamos batatas às primeiras horas da madrugada. E nessa noite, estávamos na copa a tentar recuperar o tempo que irmãos nunca deveriam ter perdido e tu desceste, cabelo em desalinho, muito encaracolado, de roupão de xadrês apertado à cintura.
E ensinaste-nos a delícia do leite com groselha.
E sinto-me desprezível, todas as manhãs, por não te visitar, por nem sequer ligar à empregada para saber se já falas como antes ou se ainda não consegues organizar o pensamento, sinto-me igual aos vândalos que tentaram matar o filhote do plátano que há 15 anos crescia junto ao cadáver da sua mãe, que tinha soltado as primeiras folhas muito verdes e muito tenras há dois dias atrás.
E tento refazer o meu mundo, admitindo para mim própria que há gente muito má, que é mesmo por isso que o mundo não cai, que é como o amarelo, o que seria dele se não houvesse quem gostasse dessa cor que só é bonita nas flores? Só assim posso viver sem angústias no peito, incorporando a maldade do ser, nunca a ignorando, nunca vivendo nessa ilusão e dentro de uma redoma, e tento salvar por tudo o que me é mais sagrado o pequeno plátano de dois metros e meio, com a Magui, perto da meia-noite; peço ajuda aos lobisomens, apesar de estar lua nova e de eles só porem pé na rua na lua cheia, e eles ouvem-me, guiando-me até a uma estaca de madeira que dava para matar vampiros, perdida num contentor de entulho, e desencanto numa gaveta da cozinha da Magui um rolo de fita-cola de selar caixotes de mudanças. E, enquanto endireito o pequeno tronco, e o prendo à estaca com a fita gomada, sei que não sou malha mal tecida, que não sou uma aberração, que não quero passar tanto tempo sem te ver, e apesar da distância que criámos entre nós, decido que vou passar para a outra margem do Tejo e dizer-te que todas as manhãs bebo leite com groselha.

9 comentários:

Isa disse...

mais um, mais um post fixe, como sempre. veio tanta gente daqui parar lá ao tasco... obrigada!!! e mandei-te um mail, que eu sou como a outra, n acredito em coincidências... :-D bjs

Dia disse...

A minha alma está parva, Isa (a Isa, que não me conhece mas vem jantar comigo e com o gang do tralha no sábado, reconheceu-me numa rua perto de Santa Marta, enquanto eu rezava ao demónio do estacionamento por um lugarzinho para encostar o Idea)
Sinaisssssss, logo agora que eu andava a pedi-los aos céus!

Isa disse...

adoro, adooooooooooro estas coisas... e mais, acredito, confio... bjs

Catarina disse...

Sabes Dia, o meu também me fazia leite com groselha... Liet muito frio com aquelas nuvens cor de rosa. Gosto de não misturar.

Anónimo disse...

Só falta uma citação da NYRB para ficar perfeito...

Dia disse...

Arranja tu, FTA.
E põe na caixinha dos comentários.

Anónimo disse...

encontrei este blog, por acaso, através das palavras "groselha" e "altoviso". Sou designer, e estou a fazer um rótulo para uma qualquer garrafa de xarope de groselha, procurava os ingredientes do produto. Não encontrei o que procurava aqui... mas depois de ler o texto não pude deixar de comentar. O texto está belíssimamente escrito, e os sentimentos expressos, a serem verdadeiros (às vezes sou muito ingénuo) fazem-me imaginar a fantástica pessoa que escreve este blog. Parabéns... talvez me torne visitante fiel do blog, depois deste momento de leitura aprazível. Agora sem mais tempo, despeço-me, tenho de voltar ao trabalho.
Mais uma vez...
Obrigado

Anónimo disse...

PS: vou experimentar leite com groselha, espero que seja bom, senão venho pedir contas :D

Ludmila disse...

Que bonito texto... estava sem o que fazer, e escrevi "leite com groselha" no google... Valeu a noite.