quarta-feira, março 15, 2006

A passarada

Já passou. A sério que já passou. Dá forte. Passa depressa.
Exagerada, pedi três dias para voltar a ser a mesma pessoa doce de sempre. Doce nas palavras. Só há doçura nas palavras.
Já passou. Nem foram precisos três dias que solicitei no requerimento burocrático do guichet da neurose, 72 horas era demais, ficámos pelas duas folhas da agenda que não existe (a minha agenda é o meu blogue; se quero saber o que fiz neste ou naquele dia, consulto os arquivos), em 48 horas vomitei duas vezes, vomitei o meu ódio na sanita, deixei de comer para me limpar, hoje, de madrugada, tossi sangue, restos da hemorragia que já estanquei, porque já passou.
Eu cerro os maxilares, e ranjo os dentes, e levanto a sobrancelha direita, e empino o nariz (o nariz que ele me diz que é de refilona e que foi a primeira coisa que reparou e eu sorrio e pergunto: como não foram as olheiras? Como é possível?), e só solto as lágrimas na Igreja da rua Garrett, e olho para os pés, e vou de cabeça baixa, resignada, quase a desistir, e, para desanuviar, para limpar o cérebro da escuridão que me polui, brinco a um jogo dos tempos de criança, bato com a biqueira do sapato no canto direito da pedra da calçada, e quase desisto de lutar, e quase cedo à dor, e oiço um piropo numa rua estreita e solarenga, e depois ergo a cabeça das pedras da calçada, porque o passeio está esburacado e atrapalha-me a concentração do estado de alma vazio, e insisto, luto por um mundo em que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens. Onde a lei é aplicada e onde as tradições não têm a mesma força de um diploma.
Eu sei que os sonhos não se dão bem com a realidade. Eu sonho com esse mundo para a minha filha. Que um dia será mulher.
Mas já passou.
Um juiz desembargador do Tribunal da Relação diz-me que a sociedade não está preparada, que o redactor do código civil foi “romântico” ao escrever o artigo 1875º. Não diz, porque era só o que mais faltava, que a lei existe mas não é para aplicar, que está só lá para decorar. Não foi tão longe. Mas dá a entender que é assim, e que o caminho é encolher os ombros e suplica para eu desistir.
E eu não aceito isto. E o mesmo juiz, cuja cara e os olhos azuis eu nunca esquecerei na vida, humilha-me, sugere-me um banco de esperma anónimo na vizinha Espanha, apenas porque eu luto por direitos iguais entre o cromossoma y e o x. E ele sabe que eu vou até às últimas consequências, ele sabe que isto vai até ao Constitucional, chama-me assertiva, eu preferia que me chamasse teimosa, e eu devia-lhe ter dito: senhor juiz, eu tenho dinheiro para prolongar esta guerra durante muitos anos, eu luto por esta migalha legal apenas porque tenho dinheiro e porque tenho esse direito, mas passava fome, se fosse preciso, para continuar esta guerra contra essa sociedade que o senhor me diz não estar preparada para mim.

Vamos preparar o recurso. Vamos chatear novamente a Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher, cujo parecer, que me é favorável, foi ignorado pelo colectivo de juízes, homens. Vamos à luta sem o sentido esquerdalho da palavra (e é tão interessante, uma conservadora lutar contra uma tradição), porque a mudança dói sempre, porque ainda há muito sangue para cuspir, há muita tripa para vomitar, quem sabe, se não há, entretanto, orquídeas a florir e arco-íris desenhados nas poças de óleo de automóvel largadas no alcatrão, é que eu não desisto de acreditar nessa sociedade que o senhor me quer convencer que é romântica.

Na minha sala ouve-se a passarada durante a noite toda.
Os melros não dormem de noite, e eu nunca tinha reparado que eles eram arraçados de morcego, de facto, vestem-se de preto, mas hoje estou alerta, estou de olhos bem abertos, em sentinela, de ouvidos tísicos de demente, e hoje apercebo-me que os melros acompanham-me na insónia.
Mas eu já estou bem. Eu só não durmo porque a solidão funciona como cafeína. Se alguém estivesse aqui, em silêncio, só a fazer-me companhia, a velar pelo meu sono, eu estaria a dormir. Profundamente. É tão simples quanto isso. Eu sei da cura, um médico receitou-ma num sonho bom, de cinco minutos de duração, entre as 09h10 e as 09h15 da manhã.

Andarão à cata da minhoca? Ou a Primavera chegou e estarão a fazer aquilo que as abelhinhas fazem nas colmeias? [Eu só sei que o raio da prima veio visitar-me, apanhou a camioneta e saiu ali perto da embaixada dos EUA, apareceu-me à porta de casa com um presente, eu desembrulhei e era a rinite alérgica. Que simpática, prima Vera, e a Lusa diz-me que, até Domingo, a concentração de pólenes no ar vai piorar, e, provavelmente, morro afogada em Atarax até lá, com as primas Vera e Sónia (miúda na idade do armário que julga que é “in” e que me rouba o sono) sentadas no sofá, quietinhas, sem me prepararem, sequer, um chazinho.]

Esta noite, não carrego no play, não se vai ouvir Elis Regina, no Fino da Bossa volume I, CD que se casou com a Sony velhinha esquizofrénica (que salta faixas, aleatoriamente, impondo a sua autodeterminação), há semanas e semanas. Só vou escutar a passarada.
Vou fixar os olhos no tecto imperfeito, sem esquadria, vou encandear os olhos nos seis globos de 75 wolts do candeeiro, vou isolar todos os ruídos: a gota que cai da torneira do lava-loiças, o relógio despertador do quarto da minha filha loira que faz faz “tic-tic” (e não “tic tac”, porque é made in China, e custou um euro na loja do senhor Lee, e toda a gente sabe que os relógios no país dos olhos em bico não fazem tic tac, falam uma língua diferente), o vento sobre as folhas e sobre os frutos do limoeiro carregado, as patas de uma gata tricolor (todos os gatos com três cores são gatas) de coleira encarnada e guizinho ao pesocoço, no telhado de zinco da velhota que dorme no quintal.
Isolo tudo, os sons, os cheiros, as imagens, espanto o negro, chamo a luz, e só vou ouvir a passarada.

4 comentários:

MPR disse...

Não sou de leis mas fui à procura, aliás nunca teria jeito para Direito, decorar nunca foi o meu forte, mas encontrei... Não sei dos pormenores, mas se é aquilo que eu penso os juizes que vão para a que os pariu, que não tem culpa nenhuma (e se calhar até tem)...

AnadoCastelo disse...

Mt bem Dia és cá das minhas. O problema deste País é não haver pessoas que façam frente a esses juízes de meia tijela. Aos que roubam, aos que corroem a sociedade, aos que tiram o sossego às crianças esses "senhores" (se alguma vez o foram, não esquecendo as excepções, sim, porque felizmente ainda há excepções)ainda chegam a ter alguma comiseração, mas quando se chega ao Tribunal de Menores mtas das vezes o machismo deles brota para fora com toda a força, a sua arrogância e se preciso for ainda ficam do lado errado.
Deixa lá Dia sempre ouvi dizer que Deus não dorme e vais ver que ainda chegarás aonde queres, é só preciso paciência.
Agora, neste momento, cuida-te
Grande beijo

Isa disse...

independentemente do facto de ter ADORADO mais este post, tenho a dizer-te, independentemente (mais uma repetição, é horrível mas n tenho nada a provar a ninguém) de ser um clichê, e da frase n ser minha, o sonho comanda decididamente a vida. pq nos dá força, porque sim, por que sem sonhar n temos nada no horizonte. sonha, sonha e luta pelos teus sonhos. pelo menos n chegas ao fim com a sensação de q n lutaste o suficiente. e, podes crer, compensa sempre. pq é preferível sofrer por n ter, do que viver com alguma coisa, alguma situação ou alguém, q n nos preenche, que nos faz sofrer, que nos é um peso. pq antes sofrer sem ter, simplesmente pq nos dá a possibilidade de virmos a ter qq coisa q será seguramente melhor. coisa que se tivermos envolvidos numa situação, qq q seja, nos impede de vivermos outra que pode ser a tal. bjs mil minha querida, e tudo do melhor.

PS: a luta é para os inconformados e n para os comunas! os inconformados procuram o mais perto possível da perfeição. os acomodados deixam-se viver uma vida numa situação q está longe de ser satisfatória. + bjs

Isa disse...

já tou um bocado com os copos, n sei se me fiz entender...