terça-feira, dezembro 20, 2005

Encontramo-nos por aí

Quando a escalada de degraus, que têm e aparentam ter mais de uma centena de anos, estava quase no fim, quando já me tinha conseguido arrastar até ao patamar do terceiro piso, o que tem dois vasos, com duas plantas cuja graça eu desconheço, e que é a minha dica que só faltam 16 degraus a pique, a Carolina a dormir profundamente e a ressonar baixinho sobre o meu ombro direito, e eu, em piloto automático para os espécimes do reino vegetal, "Tchau Flores", e a mão esquerda a dar uma ajuda valiosa às pernas, a fazer batota, agarrando-se com toda a força ao corrimão de madeira, a mão a ajudar as pernas que tremiam reclamando o excesso de esforço, os joelhos a estalarem e eu a imaginar, nas minhas entranhas, a cartilagem cada vez mais desfeita e o ortopedista que trata dos joelhos dos futebolistas do Sporting a dizer-me, há nove anos atrás, que eu tinha as rótulas descentradas, a cartilagem destruída, a falar-me em cirurgia, mas deixando o aviso "Acabaram-se as canzanas, menina Ralha", mas de volta aos degraus, o coração a bater nas têmporas, a respiração descontrolada, mas sem poder exprimir-se em toda a sua sofreguidão para a loira não acordar, e eu a agradecer aos deuses de ter ido ao circo com um vestido encarnado espampanante, mas de sapatos novos, redondinhos, com uma rosinha do lado direito, mas sem salto alto, eu a pisar os últimos blocos de madeira gasta que são a via sacra até a um quarto andar sobre a Duque de Loulé, eu a ter pensamentos profundos, os mais profundos dos últimos dias, e não é mais do que dois minutos, a expedição que vence todos os degraus de Santa Marta, mas já me acontecia isto quando vivia sobre o céu da Estados Unidos da América e a viagem de elevador, os mesmos dois minutos de Santa Marta, nos quais não tonificava os músculos das pernas, o velho motor da extinta marca Hércules é que ficava sem fôlego até ao décimo piso, e já então me deleitava com pensamentos profundos até chegar à porta de casa - às vezes, a viagem parecia um relâmpago, nem se dava pelos andares a passar, outras vezes, pareciam horas, nunca mais se chegava mais perto do céu. (ufa, primeiro ponto final)
E eu a meio das escadas e a luz apagou-se, ainda mais difícil, eu a imaginar a voz do circo a gritar: "grandioso exercício!" E, às escuras, pensava: "O filme acaba hoje aqui, não vai acontecer mais nada". E enganei-me. Toquei no interruptor, fez-se luz, e, no tapete da porta de minha casa, o tapete do falecido senhor que cá morava, um tapete muito ranhoso e poeirento, nesse tapete, estava aninhado, um enorme gato preto e branco, o maior gato que eu já vi na minha vida e eu já vi muitos gatos na minha vida.
Para trás, tinha ficado o circo e a Carolina sentada ao colo da tiazorra bonita que estava na fila de trás e que tratava a sobrinha Constança, de seis anos, por você: "Está a gostar, Constança? Olhe que o senhor não engoliu as bolas, isto é magia, tá?". Para trás ficou o Hotel do Chiado, eu e a Teresinha refasteladas nos sofás encarnados com pés de garra, ambas lindíssimas, ambas devastadas, e a Carolina a aterrorizar o outro bébé da sua idade que ali estava, e a tiazorra que era a mãe dele a dizer: "por favor, tire a sua filha daqui"; para trás ficou o empregado do bar a pedir educadamente para eu controlar a miúda que estava a incomodar os outros clientes, mas isto foi antes de o diabo loiro agarrar no iogurte natural que a Teresinha pagou a peso de ouro e o ter atirado às calças de um homem de aspecto decente, mas de intenções duvidosas relativamente a uma quarentona que estava sentada demasiado perto de si, a fingir que tirava apontamentos num bloco de notas Caravela (por falar em blocos de notas, Teresinha, deixaste cá a tua Moleskine).
E as calças do homem cheias de iogurte junto à braguilha, e eu a morrer de vergonha, e ele: "E agora o que é que fazemos?". E, eu, sarcástica: "Quer que eu limpe?" E ele, para a minha filha, agarrando em meia dúzia de guardanapos de papel, limpando ele próprio a enorme mancha branca: "Nós encontramo-nos por aí..." E eu a franzir o sobrolho, sem saber exactamente o que é que ele queria dizer com isso.
E depois fomos para a rua, subimos o Chiado, e a Carolina quis roubar as moedas do senhor que era surdo, mas que cantava o fado com a alma, junto ao Fernando Pessoa. Poucos metros à frente, quis sentar-se na esplanada e nós acompanhámo-la. Levantou-se logo a seguir e foi tocar guitarra para junto de uns rapazes com péssimo apescto que ali estavam sem fazer mal a ninguém. Mas os rapazes, os tais que tinham ar de drogados, que nem sequer conseguiriam passar do lóbi do Hotel do Chiado, não me vieram dizer para eu controlar a criança porque ela estava a incomodar os outros clientes. Pelo contrário, fizeram-lhe um caniche com um balão azul e deixaram-na tocar guitarra. Nem os brasileiros que servem na Brasileira (que apropriada a mão-de-obra imigrante, neste caso) se queixaram quando ela decidiu reorganizar a disposição das cadeiras da esplanada, não disseram nada, riram apenas, é um bébé, seus idiotas, não faz por mal, e nem sequer tínhamos pago 14 euros por um lanche, na verdade não tínhamos consumido nada. Sentámo-nos e ficámos ali, a falar, uma hora, talvez, com vista para a ruazita da Hagen Dazs (não sei onde é o trema neste teclado, lamento), a rua escondida por onde passa o eléctrico (eu não vi passar nenhum, porém, se calhar já não passa). E, ali, nas cadeiras de metal, estava-se muito melhor do que nos sofás encarnados, com pés de garra, do hotel do Siza. E apesar do frio que me fez cieiro nos lábios, tivemos direito a um trovador de sorriso bonito, da trupe dos rapazes com mau aspecto, que cantou esganiçado apenas para as duas mulheres de casaco preto com coragem de estar na esplanada, cantou palavras tão certeiras, que se tivessemos sido nós a escrevê-las não teriam saído melhor.
É difícil eleger o acontecimento mais surreal do Domingo. A Teresa poderá ter outra leitura do fim de tarde no Chiado, mas, quando a mulher bonita, muito bem vestida e cheirosa, de olhos verdes, cabelo longo negro e raízes brancas, apanhou o caniche-balão do chão e perguntou: "É da sua filha?", eu confesso que este foi o climax e olhei para o meu lado direito e depois para o esquerdo à procura das câmeras. E eu disse que sim e ela começou a desenrolar uns sacos de plástico, e eu e a Teresinha pensamos as duas, ao mesmo tempo, que ela ia fazer uma magia, como no circo, e tirar do saco transparente um rebuçado para oferecer à loira diabrete. Mas não. Dali saíram Dodots esterelizados e impregnados com desinfectante hospitalar, "porque sou médica e esta zona é muito mal frequentada, há muitas doenças por aqui, e eu sempre que ando de metro pego num Dodot e limpo o banco". E dizia isto enquanto me desinfectava o caniche e eu, mais uma vez sem saber o que dizer, disse obrigada, e a Carolina até se portou como o anjo que sabe ser e, no final, deu-lhe dois beijinhos e ela balbuciou não sei o quê sobre o menino Jesus e que esta mensagem tinha que ser transmitida a todos os meninos do mundo e, depois, despediu-se de mim e da Teresinha, desejando qualquer coisa muito católica à nossa descendência.
Conheço a Teresinha há uma semana e três dias, entrou na minha vida da forma mais bonita e mais trágica de sempre, e ambas sabemos, passados apenas dez dias sobre um bife no Snob, que, juntas, inspiramos os acontecimentos mais improváveis, aqueles que só se vêm nos filmes.

Aceitam-se sugestões para acabar com o formigueiro de Santa Marta. Hoje aspirei algumas, varri outras, açoitei muitas mais com o pano da loiça, queimei com o vapor do ferro as que lá viviam, dentro do electrodoméstico (é verdade!) e, agora mesmo, às três da manhã, afoguei um batalhão de infantaria no lava loiças. No amor e na guerra vale tudo. E é sempre assim: uma pessoa dá a mão e lavam logo o braço todo.

São três e vinte da manhã e Diana Quintela pede-me para eu ser "madrinha" da sua carteira profissional de jornalista. Eu estou emocionada e feliz, mana afilhada.

7 comentários:

MPR disse...

E um tipo vem aqui de manhã imaginar as formigas gigantes que saltam de um elefante de balão para se deleitarem com o iogurte nas calças de um tio que anda por aí nas ruas da minha cidade, quiçá escondido nas escadarias do S.Carlos à espera que passasses para um ajuste de contas...

Quanto a formigas... li na Mafalda o pai a fazer um carreirinho de açucar até uma tomada de electricidade... mas dúvido que funcione...

Anónimo disse...

Eis o que chama uma narrativa com ritmo. Desta vez até consegui rir antes de começar a praticar a velha prática de “o trabalho liberta”. A loura é mesmo uma Gengis Khan em potência...

Carrie disse...

E esta (T)Ralha transformou-se no meu primeiro vício diário, ainda antes de abrir os jornais, o e-mail, a Lusa para saber as novidades do dia. Morro de inveja por não escrever assim, por ser cinzenta… morro de inveja por não conseguir transformar, como tu fazes, a minha tristeza em algo de belo.

Tens a certeza que esse domingo existiu mesmo? As pessoas, não vocês, antes os outros, parecem saídas de um filme do Ed Wood, os tais de série Z, em que me sinto enredada, com a diferença que as minhas personagens não são divertidas, limitam-se a existir e a atazanar-me a vida. Livros dentro de livros, imagens dentro de imagens, como personagens de um sonho de alguém, que eu gostava que acordasse para acabar de vez com isto. Mas isto sou eu a divagar para chegar ao FTA, e agradecer-lhe um post que me fez chegar até aqui...

[ t ] disse...

maravilhoso! :) as formigas já sabes, eu tornei-me perita nas pulgas quem sabe se não consigo convencer as pulgas a abandonar o teu ninho? é só preciso despir-me lol!! e sim,nada do que acabaram de ler é ficção, nós atraímos as personagens.

Anónimo disse...

Muito bom. Como sempre.

Dia disse...

Vocês são lindos, mas este post está cheio de (g)ralhas. Vou corrigi-lo.

Anónimo disse...

Só mesmo tu é que consegues transformar o caos em poesia...