sexta-feira, dezembro 30, 2005

A octogenária que comprava cuecas de renda por 30 euros e outras histórias que não lembram ao menino Jesus

Não queria fazer aquela chamada.
Inventou mil pretextos para não a fazer.
Podia ser que ninguém lhe perguntasse se já tinha cumprido aquele seu último dever.
Primeiro, ficou de ir lá a casa despedir-se, à casa que cheira a velha, e que fica junto ao estádio do Sporting.
Não deu satisfações para não o ter feito. Ninguém lhas pediu, também.
Todos compreendiam a resistência em pegar no telefone portátil e fazer um pouco de ginástica nos dedos pelas teclas numeradas de zero a nove.
Teve uma vida cheia. Mentiu sobre a idade desde os 30 anos. Gastou rios de dinheiro em lingerie. Ainda hoje, com 89 anos, compra cuecas de 30 euros. E soutiens, com muita renda. Manda ainda fazer por medida, à costureira, as suas combinações de seda pura.
Foi uma mulher vistosa. Vistosa, não bonita. É baixa, é muito magra. Tem umas mãos e unhas enormes, belíssimas.
Este ano, deixou de pintar o cabelo de loiro platinado, vi-a no dia de Natal com um plix roxo, estranhei, percebi que algo se passava, mas a maquilhagem estava impecável, a lucidez e pose altiva iguais, e apesar do cabelo roxo, ninguém diria que que faltam três meses para os 90 anos.
Ninguém diria que a morte estava sentada a seu lado.
Não chegará lá, dizem. Ninguém acredita que chegue aos 90. Eu arrisco que sim, que chega. Porque é teimosa e quer morrer com 90. Não com 89. Gosta de números redondos. E 90 é um posto. Aos 80 muita gente chega.
Aos 80, fez o pino. Quando estava de cabeça para baixo com as pernas ao alto, já tinha a seu cargo, numa cadeira de rodas, o ex-marido, de quem cuidou até à morte apesar de não suportar o velho, sentiu orgulho da mulher que era. Da família enorme e unida que tinha. O sangue subiu-lhe à cabeça, sentiu-se uma menina de tranças e laçarotes de seda a passear de sapatos de verniz pelas ruas da Figuerira da Foz, mas nunca, nem aí, nem minutos, dias e anos mais tarde, lhe passou pela cabeça que ali, com o pino, com os 80, tinha ficado tudo de pernas para o ar.
Começaram os anos mais difíceis. Com pouco glamour. Sem as idas ao Casino com os visons, sem as jóias, sem as unhas pintadas de encarnado.
O velho morreu, até foi um alívio, era um vegetal. Meses depois, suportou a morte dolorosa e rápida do seu único filho, um solteirão bon vivant, que um cancro nos roubou a todos nós. Todos vaticinaram que morreria em menos de um mês. Com o desgosto. Resistiu.
Há coisa de seis meses não se finou numa cirurgia de coração aberto. Os médicos ainda não acreditam na pujança daquele coração remendado de Matusalém. Às vezes, os mais cépticos, vão lá com o estetoscópio ver se ele bate mesmo, se a mulher dura de rosto quadrado estará mesmo viva, ou não será um boneco da madame Tussaud.
Há seis meses atrás ainda me deu conselhos sobre a importância da disciplina na educação da minha filha Carolina. Há coisa de dois meses, conseguiu enlouquecer uma empregada brasileira com o seu mau feitio.
Parece que o seu fígado parou, resta-lhe pouco tempo.
Ele não queria discar o número.
Sabia que era a última vez que falava com a sua tia Mami.

Esta é para o Miguel, que parte daqui a duas horas para o Dubai, e para a Mami

2 comentários:

Mary Mary disse...

Fiquei com lágrimas nos olhos... Essa senhora tinha e tem muitas histórias para contar... E a sensação de falar com uma pessoa pela última vez é horrível. Ninguém devia passar por isso...

Foi como este Natal. Sei que foi o último Natal com o meu avô. Que não resiste mais um ano... E custa sempre, custa mesmo muito... Mas temos as histórias e os pequenos gestos que nos ajudam a olhar para trás e conseguir fazer um sorriso no meio da tristeza...

Mas nunca é fácil pois não? :(

Mary Mary disse...

BOM ANO minha querida! Que o ano de 2006 seja único e especial como tu. Que o ano que vem aí brilhe e sorrie intensamente para ti...

Um beijinho do tamanho do mundo... :)