sexta-feira, abril 21, 2006

O 50.000 do 56

Pensei que o ponto alto do dia tivesse sido às dez. Ninguém esperava por mim, por isso, a casa da Magui continua a ser o meu asilo, ali peço santuário todas as noites, ela não me dá, nunca me deu colo, mas dá-me de jantar, e sobra sempre comida que dava para alimentar um batalhão porque ela cozinha para todos os filhos, os que nasceram e os que não chegaram a nascer, e sou sempre só eu que apareço, todos os dias sem falta, pico o ponto, assino a folha de presença com o meu apelido perfeitamente imperceptível e, durante uma hora e meia, tenho com que quem falar das idiotices dos meus dias sempre iguais.
No AXN passava a série "Missing", que gosto de ver Português Suave amarelo atrás de Português Suave amarelo (e a Magui não entende porque é que fumo dos cigarros dela depois do jantar e eu também não encontro nenhuma justificação plausível, não gosto sequer do sabor: arrepiam-me a pele ao primeiro bafo), a Carolina brincava com as Barbies pernetas em cima da gaiola dos pombos bebés, que a cadela Boneca resgata do jardim e traz na boca para a Magui criar grão-a-grão (hoje, a cadela encontrou duas rolas bebés e amanhã a Magui vai largar uns borrachos criados a pão-de-ló desde o Natal), o gato Lucas ronronava no meu colo, dengoso, e vinte anos depois do meu primeiro pedido, a Magui finalmente arranjou cinco minutos de paciência para me ensinar o ponto básico do crochet.
E eu fiz duas carreiras, toscas, a linha castanha escura (novelo e agulha estão aqui ao meu lado; tenho que praticar, talvez o crochet me dê sono, talvez o crochet me impeça de ficar agarrada ao computador pela madrugada fora, em noites em que são laranja, da cor do sofá e da parede da segunda sala de Santa Marta, noites sem estrelas, sem lua, noites em que nascem corujas lá em cima, no Marquês, mas aqui em baixo, em Santa Marta, morrem amores perfeitos à janela de um quarto andar, e eu sei que os leitores são capazes de não gostar desta ideia, de eu trocar as postas de pescada pela renda, mas eu estou a enlouquecer e este blogue não ajuda).
Não apanhei o jeito de fazer dançar o pulso com a agulha e a linha (um passinho para a frente e outro para trás), tropeçavam uns nos outros, a linha engalfinhava-se na agulha e o pulso caía para cima deles, uma desgraça, de língua de fora, esforço imenso, crochet em câmara lenta para retardados, e a Magui a gritar comigo e eu nervosa por não ter aprendido sozinha como ela (já não me bastava ter tido um irmão que aprendeu a ler e a escrever sozinho, tinha que levar com uma mãe que aprendeu todos os lavores do mundo pela sua própria mão de fada-do-lar, não é assim, não é assim, dá uma laçada, não é por trás, é pela frente, dá cá essa merda; e eu, mamã, deixa-me tentar, eu só consigo perceber se for eu a fazer; ai que tu és lenta, pega na agulha como se fosse uma caneta, sabes o que é uma caneta?) Mas, apesar da impaciência para a minha descoordenação motora (queria eu tocar piano...), a Magui finalmente conseguiu ensinar-me a fazer crochet.
E eu pensei que o dia ficava por aí.
Eu bordo, eu pinto, eu escrevo, eu canto, eu até já sou modelo fotográfico, não cozinho lá grande coisa, mas passo camisas a ferro com distinção, crio uma filha sozinha, levo uma causa idiota até ao Tribunal Constitucional, tenho o cabelo a bater-me no fundo das costas e um pacote de gomas de ursinhos do meu lado direito e, do esquerdo, um pacote de Drum azul claro e mortalhas Smoking de papel de arroz (e, depois disto, devia ter aqui comigo o material que me faz rir, mas não, a pedrita que nunca mais acaba está longe, escondida, e não consigo ordenar às pernas que se levantem), tenho comportamentos compulsivos com a comida, com o tabaco, com o blog, com o gmail, com o messenger, com a perna que não pára de tremer, com o pai-de-todos da mão direita que está todo escavacado e, para me parecer um pouco mais com a minha mãe, comecei, também, a destruir as sobrancelhas enquanto leio.

Vesti-me de Primavera, ainda estou no campo, na Ponta do Mar, freguesia do Seixal desde 1832, escrito no barracão sem telhado, o chão coberto de lusalide, lá ao fundo, o homem de tee-shirt encarnada apanha caracóis colados às folhas carnudas dos chorões amarelos, vesti-me de turquesa e verde seco, padrão anos setenta, alças cruzadas nas costas (as costas que fazem dois pequenos pneus de lado, descobri isso pela objectiva do Joaquim Gromicho), mas hoje o céu chora.
E dou dois euros ao arrumador que ainda é um homem bonito, e ele gaba-me a pulseira de madrepérola que comprei na loja chinesa, diz que comprou uma igual para a namorada, e a Teresa está à minha espera à chuva, e eu nem sei onde me enfiar, porque já nem consigo ser pontual, eu era obsessiva com a pontualidade e é assim que eu vejo que estou um farrapo. Agradeço-lhe mais mil vezes por ter encontrado o meu anel na Ponta do Mar, junto à roda do Frontera. O anel queria lá ficar, não é a primeira vez que ele tenta fugir do meu dedo, eu nem sei como seria a vida sem ele, tenho calo no dedo de nunca o tirar, é o anel da minha avó Zá, era o anel com que eu brincava às princesices na Praça Pasteur, e ele quis ficar na fábrica abandonada de seca de bacalhau, e a Teresa a procurá-lo, frenética, e eu sem reacção, ao volante do tanque da Opel a falar com a minha avó, a dar-lhe um responso, e até já tinha desistido, mas a Teresa não, e à última da hora ele aparece enterrado na areia, prateado, brilhante, ao pé da roda direita do jipe e eu abraço a Teresa - este foi o momento do dia de ontem e, desculpem-me, é só um instante, mas eu tenho que olhar para ele e para a minha mão, a que já não se queixa da tendinite de esforço há uns meses.
E Davidoff atrás de Davidoff, e eu como uma panela de pressão debaixo da Ficus do Príncipe Real, e a panela de pressão que a Milucha me ofereceu há quase dez anos para o meu enxoval continua virgem, queria aqui fazer uma comparação qualquer com o alívio da pressão da panela, mas eu nem sei como ela funciona, ou para que serve, eu só sei que, da mesma forma que ela encontrou o anel, que é um tronco de árvore, conseguiu que eu não explodisse naquela tarde por debaixo da árvore secular. E depois do Príncipe Real levou-me ao jardim da Estrela, eu precisava de jardins, e lá fomos para minha segunda expedição à Estrela. E ela é a única pessoa no mundo que alinharia na demanda louca de descobrir onde vive o 50.000 sem quaisquer pistas.
Eu até já sei algumas coisas sobre o 50.000. Este não é um blogue de engate, Ana. Já me deixei de parolices românticas. Ninguém no seu perfeito juízo ama alguém apenas pelo que esse alguém escreve ou já escreveu, o 50.000 leu-me os arquivos e tornou-se íntimo, e como tem memória fotográfica, até sabe que o reembolso do meu IRS do ano passado foi de 1237 euros, eu já tentei engatar neste blogue e falhei e não me meto nunca mais numa dessas esquizofrenias (mas era uma ideia bonita, não era, encontrar o amor por aqui?).
Apesar de não ser um blogue de engate, este quintal tinha grandes expectativas em relação a dois leitores surpresa: o 33.333 e o 50.000. A minha vida é dura. Se eu não a adocicar com estas superstições, vou voltar a picotar os pulsos. E eu só sei que há cacos meus por todo o lado, como quando deixo cair um pirex no chão da cozinha, milhares de fragmentos, e não há ninguém que tenha paciência para montar tudo de novo. E depois há ainda o problema da cola. A avó Zá colava tudo com Araldite e eu já nem sei se ainda se vende e se é assim que se escreve. [e como hoje, eles, os dois inomináveis favoritos deste blogue, me partiram mais um bocadinho e me fizeram chorar, quando tudo o que eu não precisava era que abrissem mais uma fenda, eu não sei o que vou fazer, se calhar, vou passar a andar com um autocolante nas costas a avisar: handle with care, hand wash only]
O 50.000 dorme menos do que eu [neste momento, espero, está a dormir, depois de uma maratona de 25 horas seguidas]. Manda-me mp3 de poemas de Al Berto, ditos pelo próprio Al Berto, para o Gmail. Faz-me companhia toda a madrugada, pelo Google Talk, até ontem, até ao feito mais notável dos últimos tempos, tratávamo-nos por "você" e eu sabia mesmo muito pouco: o nome, que vive em oito assoalhadas, que galga 130 degraus para chegar até a casa, que da janela vê o castelo de São Jorge e o jardim da Estrela. Sabia isto. E farejei a Estrela como um perdigueiro, eu e a Teresa inventariámos as várias hipóteses, isolámos probabilidades, subimos e descemos ruas, ambas de saltos altos, e escolhemos que o 50.000 vivia no número 56 de uma rua próxima não muito próxima do jardim. E à noite, pelo Google Talk, eu escrevi-lhe: Já escolhi onde é que quero que more. Para mim, mora no 56.
E ele mora no 56.

[E este é o post 616. Tinha em mente, há algum tempo, que tinha que sair um belo post. Não estou certa que tenha conseguido]

8 comentários:

ffidalgo disse...

Olha Dia, a sério, porque não escreves livros? Ou escreves?

(a cola penso que se chamava Araldite)

Goiaoia disse...

Meu amor e pela tua saúde, crochet. ai. Touchet. ai. tu-cás-te-me

Isa disse...

podes ter a certeza que é um post excelente e eu nem acredito na história do 50 mil e qq coisa... a sério, passo-me ctg. juro. se os posts do blog n resultarem em livro, escreve policiais mulher, tu tens faro!!! bjs mil

[ t ] disse...

é um excelente post sim. (acho que o 50 mil já tem uma legião de fãs e provavelmente de... fãs com ciúmes) um beijo amore, não há próximo 50 mil nem 56 ;)

FMS disse...

Eu cá concordo com elas %)

FTA disse...

Este inominável gosta muito de ti. E gostar não é aldrabar. É gostar.

Dia disse...

Francisco, peço desculpa se me repito, mas eu sempre medi o amor na proporção do sangue que se está disposto a derramar. E, por ti, eu cortava o meu cabelo à máquina zero e não assumas que sabes o que isso significa, não assumas que sabes.
Bom Domingo.

Mary Mary disse...

É claro que conseguiste. Consegues sempre! Um dia vai haver alguém corajoso que consiga escrever-te à mesma altura! Vai ser complicado porque tu escreves como ninguém! :D