terça-feira, abril 25, 2006

Probabilidades

[isto deve estar cheio de gralhas, mas a revisão do texto fica para amanhã]

Aprendi as letras na sala cinco, da escola 111, com a senhora professora Gertrudes Maria e a sua régua e palmatória em cima da mesa. E lembro-me da primeira vez que conseguir ler fora da sala de aula e dos manuais escolares. Foi na televisão, foram as legendas de uma série do tempo dos romanos, onde uma personagem, de sandálias atadas à perna, comprava azeite para alumiar a noite e as candeias.
Estava sentada em cima de uma colcha de crochet feita pela Magui nas suas noites de insónia (it runs in the family). A colcha tapava os buracos de um sofá que mendigava por reforma, que me quadriculava a pele das pernas e da cara quando lá adormecia em cima de uma almofada de patchwork feita, também, pela minha mãe fada-do-lar (e eu sou fada-do-blog, mamã, orgulha-te!).
A gata Íris amassava a colcha e ronronava, as garras às vezes ficavam presas nas cadeias e eu ajudava-a a desenganchá-las, a minha mãe reluzia, ouvia-se-lhe o coração, porque, ao seu lado, nos sofás pretos, estava um dos poucos "amantes" que lhe conhecemos depois do fatídico episódio Zé Ralha - e esse amigo, um amor que nasceu ao telefone, tinha-me trazido uma boneca Tucha, ou uma mini-tábua de engomar com um ferro de engomar eléctrico (não consigo precisar, mas trouxe ambos os presentes, em ocasiões distintas), chamava-se Nelson e, quando ele nos visitava, eu saía em pézinhos de lã do quarto da empregada onde dormi durante vinte anos, encostava-me, matreira, à porta de vidro martelado da sala, e via-os a dançar e ficava feliz e ia-me deitar novamente -, e eu resmunguei, de pijama de tecido turco azul, e cabelo preso em duas trancinhas: "as letras vão muito rápido, assim não consigo ler".
E o primeiro espanto foi que o azeite servia, não só para temperar a salada e o bacalhau, mas, também, para dar luz aos romanos. Depois de digerir essa informação, uma maior revelação abateu-se sobre a pequena cabecita, que nunca foi simples: descobri o poder da palavra escrita. Post-it da memória.
A minha memória é um enorme baú - façam-me uma Ressonância Magnética ao cérebro e há-de aparecer no monitor uma enorme mancha azul, que é da tristeza, e um buraco escuro e sem fundo, que é a memória. Porque eu sou isso mesmo, carrego esta sina: um reservatório de memórias, das minhas e das dos outros (e, no entanto, apesar de ter uma memória fotográfica educada nos melhores colégios, o Goaiaoia diz que eu, bebé, bebé como a minha filha, entrava muda e saía calada de uma casa bonita da Travessa do Noronha e, no entanto, não me lembro dele e, por falta de papel e de caneta, ou seja, da palavra escrita, apenas guardei dessa casa no Bairro Alto, um estaladão do Zé Ralha nas minhas bochechas na sala-dupla, e a Marta a dar-me papas Cerélac na cozinha enorme (lembro-me, também, de chorar baixinho, às escuras, num quarto ao fundo, à esquerda, e os meus irmãos, os emigrantes na Escócia, ainda nem sequer tinham nascido, ou talvez o Bernardo já tivesse, de qualquer forma, eu tinha talvez uns três anos, e a memória, a minha, recua até aí).
Comecei a escrever, a escrever para a minha memória, com sete anos - eu soube logo o poder da palavra escrita, vocês acreditem nisto que vos conto.
Num saco da 5-à-sec, abandonado há semanas e semanas atrás da porta da cozinha encarnada, está uma caixa, de Pandora, com os meus diários. Li o segundo volume, 8 aos 10 anos, foi inofensivo, e até me ri com o relato preciso dos dias de uma menina que nunca foi parva, mas que também não era, e continua a não ser, suficientemente brilhante.
Não ouso abrir os volumes três e quatro. Porque a memória é funda, é um armazém sem fim de arquivo-morto, mas também é selectiva, faz a triagem à entrada e fecha a sete chaves o que não interessa.
Esta não escrevo, não preciso: ficou gravada a ferros e, depois, foi tatuada por cima da cicatriz. Enterro-a comigo e quando eu morrer, para além de baterem em latas, como no poema, arranjem-me um bouquet de rosas de santa Teresinha.
Quais eram as probabilidades de passares à memória vitalícia, de seres uma daquelas recordações que nem é preciso escrever?

8 comentários:

Isa disse...

lindo este post, liiiiiindo e tu escreves cada vez melhor. bjs

Mary Mary disse...

Eu tenho uma cabeça completamente despassarada e vai piorando com o tempo, tenho que começar a escrever porque senão daqui a uns tempos esqueço-me. Não sei o que tenho mas ela está-me a pregar partidas e quem me dera ter esses diários como tu tens!!!

Goiaoia disse...

«em primeiro lugar, o primeiro espanto foi que o azeite servia, não só para temperar a salada e o bacalhau, mas, também, para dar luz aos romanos. Depois de digerir essa informação, uma maior revelação abateu-se sobre a pequena cabecita, que nunca foi simples: descobri o poder da palavra escrita.»: "Beautifull!"
Linda, tu és linda! E brilhante, muito brilhante. Sempre fostes, pelos vistos, mesmo que não saibas ler aquilo que tu própria escreves...

Dia disse...

Isto está cheio de gralhas. mas eu tenho que sair em serviço. desculpem qualquer coisa.
beijossss

Dia disse...

Como é que fui capaz de não ver tanta gralhaaaaa?????? aiiiii, acho que já está melhor, ufffff

AnadoCastelo disse...

Com gralhas ou sem gralhas podes e deves continuar a escrever, porque apesar disso continuas a escrever mt bem e nós percebmos.
Jokas

ffidalgo disse...

Sempre bom, vou dizer o quê mais?!
Não sei o que fazes na vida mas deves fazer muito bem para não te dedicares só a isto.
por acaso agora, por falar nisto, até fiquei curioso...
Ehehe, não interessa.
Bjs

Isa disse...

e digo mais, estava tão bom, o texto estava tão bem escrito que, JURO, n reparei em gralha nenhuma... bjs