quarta-feira, abril 05, 2006

Pietá

O que é belo é belo, não tem nada que se lhe diga, é belo de caras, de chapa, e às vezes cega, e por vezes dói.
Campos de papoilas, sarapintados aqui e além de amarelo e de branco das margaças bravias (o dicionário do Word não conhece a palavra "margaça", mas ela existe, ela existe em todos os campos na Primavera – primeiro vêm as flores brancas, depois as amarelas, e só depois a Primavera alarga o leque cromático – e eu hoje de manhã, sob uma chuva torrencial que me feria o vidro do Idea, encontrei papoilas fora de tempo e margaças, em Chelas, foi esta manhã, e é sobre isso mesmo que versa este post: a grandeza da beleza escondida no meio da fealdade), barricadas por uma muralha de espigas verde fluorescente.
Isto é belo. Ninguém pode pôr defeito, que é pecado. É o cenário das minhas mais doces fantasias românticas (isso e vestidos brancos de algodão fininho, que deixam passar a luz e o sol, e cabelo com reflexos cobre, levemente ondulados e ásperos do sal do mar, e a unha do meu indicador direito, sem verniz, a tapar a fenda que nunca existiu entre os meus incisivos).
Há uma beleza maior na dor, na fealdade. Borrão de tinta-da-china debaixo dos olhos, desenhado com rigor de tento pelos pêlos finos dos pincéis de pestanas empapadas em rímel, outrora rijas como icebergues, e que se transformam em aguarela, que se derretem como os relógios dos quadros de Dali, à primeira lágrima que se verte do copo cheio do canto do olho.
Verniz encarnado estalado entre os dentes, unhas e peles roídas com medo do devir, treçolhos de noites em branco. Olhos de cor-de-burro-quando-foge, na cara suja de uma criança com demasiadas cicatrizes para o veludo fino da sua pele. Entrançados complexos numa cabeça onde todos os fios de cabelo são brancos, onde a cara é um mapa de becos de rugas, narizes que pariram verrugas peludas. Bebés de crânio deformado, achatado como um melão, pela travessia sinuosa do parto e da bacia das suas mães, cabecinhas pequeninas como laranjas, marcadas no cocuruto com um círculo perfeito das ventosas. Rapazinhos de cabelo laranja crespo, pestanas da cor do cobre, encaracoladas a mais de 300 graus, medidas por um escantilhão; sardas executadas por um pintor pontilhista na face, e na mão, muito pequena e branca, leitosa, uma camélia rosa, dois lírios azuis, colhidos do quintal e unidos num bouquet, no mais belo bouquet de todas as salas de espera, com um retalho de papel de alumínio.
Há uma beleza maior em tudo isto. Escondida. Para quem vê. Vedada a quem olha.
Na minha amiga Ana, a minha Pietá do dia, espartilhada por um roupão azul, sentada comigo no banco de madeira da recepção do segundo piso da Maternidade Alfredo da Costa, a vermos passar um vai vem de sorrisos, flores, embrulhos e máquinas fotográficas, a pele dela minada por um acne que nunca lhe conheci, e a Ana a segredar-me, seca, sem lágrimas, sem brilho nos olhos, automática, que as odeia, que não consegue voltar para o quarto, porque elas têm os bebés ao seu lado e ela não.

4 comentários:

Dia disse...

Post, não chores. O problema das coisas belas - esqueci-me de escrevê-lo - é que às vezes tiram o fôlego e por vezes silenciam as palavras.
És um belo post, não ligues à caixa de comentários vazia, e eu sei que não acreditas nisto, que resmungas que amor de mãe não vale.

Anónimo disse...

cera que alguém percebe?
tops dnlio.vero.e amor of main é u mellor.

Leão da Lezíria disse...

As jóias mais preciosas são apresentadas com um fundo preto. Para não nos distrair do que é belo.

Quando a escrita é sublime, valerá a pena estragá-la com comentários que não farão mais do de distrair-nos do essencial?

AMM disse...

porque é que alguém não escreve? porque nem todas as encruzilhadas se resolvem com explosões de palavras. há momentos em que as palavras denunciam, há momentos em que elas, como se oráculos fossem, prenunciam desfechos. em que a qualquer momento temos a consciência de que aquilo que queremos dizer pode precipitar um futuro...umas vezes desejado outras não. mas escreverei, breve, brevemente. como quem chama por mim.

obrigado pelas tuas palavras