quinta-feira, janeiro 12, 2006

Alô?

[Peço desculpa pela quantidade enorme de gralhas da primeira versão deste texto. Até estou envergonhada, acho que vou deixar de escrever por uns tempos]

Para que é que eu fui telefonar, para quê?

Para que é que eu fui telefonar, para sofrer?
Ao nosso encontro não apareceu
E aí telefonei
E quase que chorei

O telefone às vezes nos faz mal
E sem querer acabou uma paixão
Eu me chamo Zé, pois é
Fiz a ligação
E ela disse "Alô João"
Ai, ai
E ela disse "Alô João"...

Autor: não faço ideia e Google não me ajuda. Está num CD da Elis Regina, no Fino da Bossa, vol 1.

Tenho uma relação esquizofrénica com o telefone.
É o meu mais importante instrumento de trabalho. É o revólver dos polícias. O bisturi dos cirurgiões. É a lima da manicura.
É mais importante do que a caneta. Que o papel. Se não trago comigo o bloco merdoso Caravela e a esferográfica, que me faz calos no dedo "pai de todos", tenho olhos, tenho ouvidos, tenho o que resta da memória, e se ela falha, ainda tenho o gravador, isto se ele tiver pilhas, o meu gravador azul, oferecido por uma empresa de telecomunicações protesta que eu nunca o uso e tem razão, encostei-o à prateleira, dispensei os seus préstimos.
Se não tivesse um telefone sempre ao pé de mim, um analógico, o outro GSM, eu não falava com o presidente da câmara, eu não apanhava ministros e banqueiros (velhos tempos) em coisa de dez minutos. Não sei se o telefone é mais importante que o Google. Talvez. São as minhas muletas, porque eu sou uma jornalista de secretária.
Infelizmente.
Durante muito tempo, achei que tinha nascido talhada para este jornalismo, não queria outro, contentava-me quando, aqui ou ali, um editor deixava passar qualquer coisa com graça - às vezes, bastava um parágrafo para eu ficar feliz, mas nada me dá mais gozo que um título bem esgalhado e uma vez escrevi no suplemento de economia "arrogante pedaço de merda" e soube-me muito bem, foi um dia bom, esse.
Tenho jeito para o telefone. Saio da redacção, ao final do dia, com o ouvido direito muito encarnado, a arder, semi-surdo. Ainda fico nervosa sempre que ligo para alguém importante, não são raras as vezes que escrevo as perguntas no caderno Caravela, para não me esquecer de nada, escrevo tudo, como uma cábula, com a minha letra de jornalista - eu tenho várias letras, seria o cabo dos trabalhos para os grafologistas, davam em doidos, porque eu também sou esquizofrénica com a caligrafia, quando estava na Faculdade tinha uns cadernos muito bonitos, em folhas da Ambar de cem gramas por metro quadrado (desde a primeira classe, que meti na cabeça que estas folhas me davam sorte, estas folhas, quatro furos para guardar no dossier do lado esquerdo são mais pesadas, parecem cartolina, são estupidamente mais caras, geralmente só se vendem nas papelarias, as de 70 gramas em qualquer supermercado se encontram, e eu já era maior de idade e, apesar de ter a vacina do tétano em atraso, se calhar foi por isso, acreditava que naquelas folhas aprendia melhor, que tinham um encantamento qualquer, e ainda acredito nisto e a Carolina há-de usar folhas de cem gramas por metro quadrado), eram uns cadernos mesmo bonitinhos com letras microscópicas escritas com a Art Pen da Rotring, cor sépia, não tinha toda a matéria, porque raramente ia às aulas, mas arriscaria dizer que eram os mais bonitos da turma, se os do Miguel não tivessem uns sublinhados e separadores perfeitos (e os teus, Mónica, também eram muito bonitos, não fiques com inveja, sempre gostei dos teus émes e da forma como agarras nas canetas, muito em baixo, quase junto ao bico, da mesma forma que amava os zês do Miguel e os cês cedilhados da thê foram separados à nascença dos meus, são gémeos). A minha letra de stressada é diferente desta miudinha, se estou perturbada, escrevo a itálico com a letra muito bem desenhada, como na primária, como me ensinou a senhora professora Gerturdes Maria. A minha letra de jornalista é, também, inclinada, garrafal, mas são gatafunhos que eu só entendo nas primeiras seis horas após ter escrito: o que escrevi hoje no Garcia Pereira já não vou entender amanhã, letra de jornalista é equivalente à de médico e a que propósito veio esta coisa das letras? Tenho que ir ver para cima o que escrevi...
Ah, fico nervosa quando ligo, mas depois sou uma charmosa do pior que há, uma das minhas "fontes" mais queridas, diz que é impossível resistir aos meus encantos telefónicos, de facto, tenho jeito mesmo, já me apaixonei, inclusive, por algumas vozes, já levei grandes baldes de água fria quando conheci os donos dessas vozes (registo apenas uma agradável surpresa de uma linda voz para uma linda cara), mas apesar do jeito para a coisa, do talento natural para a conversa, desde que o Miguel foi para o Dubai, o meu telefone, o privado, calou-se.
Até há coisa de um mês.
Eu ligava ao Miguel dezenas de vezes ao dia, pelos pretextos mais idiotas. Imagino que, se ele estivesse por cá, estaria sempre a discutir com ele o blogue, os posts, as estatísticas deste quintal e o diabo a sete. Mas não está. Está nas Arábias, onde Alá perdeu as sandálias e o pano da loiça que os senhores usam na cabeça.
Deixei de ligar aos meus amigos quando ele partiu. Não o quis substituir, ele é insubsituível, tudo me pareceria menos dedicação, menos paciência, menos sabedoria, menos sensatez, depois da amizade dele, tudo seria assim, insonso, nada a fazer, é injusto e eu não gosto de ser injusta.
Calei-me.
Sinto-me um fardo para os amigos que ficaram neste rectângulo e sei que sou inadaptada. Optei por uma carreira que nada tem a ver com o que andei a estudar durante quatro anos, as profissões dos meus amigos estão nos antípodas da minha, vivo num mundo que nada tem a ver com o deles. Não tenho, também, muitos amigos jornalistas, é um facto.
Todos têm as suas vidas, ninguém tem filhos, não têm que me aturar as paranóias, não lhes ligo para ir tomar café, para ir ao cinema, têm os seus problemas, as suas casinhas na suburbe, os seus GTI, muitos deles nem sabem o que é um blogue, não sabem que tem sido o meu melhor amigo, e quando estou com eles não lhes sei explicar porque não tenho namorado, porque é que estou sempre triste mas rio alto, com todo o fôlego dos meus pulmões enegrecidos pela renda que pago todos os dias à Philip Morris, e acho mesmo que, às vezes, se sentem incomodados, invejosos, já senti isto parece-me, mas se calhar estou a ser mesquinha, quando lhes falo do fabuloso destino Diana Ralha, que tropeça em histórias do além todos os dias, que repara em coisas que mais ninguém repara, ficam invejosos.
Se tenho amigos, poucos, foram os que não desistiram de mim, nesta fase bicho do mato, que insistiram, que vieram até mim quando eu os exotava, que gastaram rios de dinheiro em telecomunicações, que me tiraram de casa para ir jantar secretos de porco preto, que me passearam nos sábados em que a minha filha me era retirada por ordem judicial.
O telefone, o Nokia azulinho, que não tem toques polifónicos, que não tem bluetooth, não tem jogos Java, nem coisa parecida (nem agenda tem e sinto muito a sua falta), esteve mudo. Não quis incomodar ninguém. Deixei-me ficar. À espera do meu insubstituível, com quem sonho trocar banalidades como antigamente, ouvindo a sua voz encostada às minhas orelhas, enquanto escrevo textos, enquanto mudo fraldas, enquanto faço xixi. O único telefonema que recebia diariamente até há umas semanas era o da Magui a acordar-me na sua versão de galo pós-moderno.
Tudo mudou.
Voltou a tocar, a valsa da Amélie, para quem nunca tenha ouvido o meu telefone, toca desenfreadamente a valsinha do Tiersen, e comecei a contar a minha vida a perfeitos estranhos, comecei a ligar-lhes sem ter medo de estar a ser inconveniente, a ligar a torto e a direito como uma adolescente esquizofrénica que tem que contar o beijo que deu ao rapaz mais giro do liceu, até o telefone do jornal já tocou com um amigo improvável do outro lado.
Fiz as pazes com o telefone.
(não sei é se tenho é dinheiro para pagar a conta ao final do mês)

7 comentários:

pinky disse...

parece-me que houve um afastamento natural por tomadas de caminhos diferentes, parece-me que sentes já não ter coisas em comum com os teus amigos para te sentires á vontade para partilhar os teus medos, receios e fraquezas, mas devias tentar, lembra-te do ke foi que vos aproximou, se calhar não foi o gostarem das mesmas coisas ou caminharem da mesma forma, se calhar foram coisas mais essênciais, e essas não se esvaiem assim.
compreendo que muitas vezes
e mais fácil falar com estranhos, parece que não estam "viciados", também já fiz isso.
espero que o teu telefone nunca deixe de tocar e que tu nunca deixes de fazer chamadas com ele, bjkas and smile!

Mary Lamb disse...

Desculpa...

Anónimo disse...

Não comento. Estou com ciúmes!

Anónimo disse...

a menina não se preocupe com a conta. dentro em breve passarei à sua rede! (novamente!) não se preocupe não se preocupe!

thê

MPR disse...

Deixar de escrever aqui por causa de (g)ralhas??? Atreve-te! Que eu sei onde trabalhas! E sei onde vives! Quer dizer, não sei mas sei como saber! ;)

Carrie disse...

Descansem por 'por uns tempos' em liguagem de Ralha significa no máximo umas quatro horas.

Mary Mary disse...

Orelhas quentes e a ferver. Quando o telefone não pára gostávamos que parasse, quando não toca sentimo-nos tristes...

Há sempre aquele amigo especial, aquele que será sempre diferente de todos os outros. É natural, é normal, é bom...

Eu estou a estudar Biologia, imagina a catefrada de amigos que não têm nada a ver comigo. E por isso tento-me ligar aos meus amigos da faculdade. Da faculdade que deixei e que morro de saudades. Hoje matei algumas saudades, até de professores !

As janelinhas mágicas são óptimas companhias, mesmo quando queremos ficar sozinhas há sempre alguém com um ombro ainda que não esteja presente.