terça-feira, janeiro 10, 2006

Rugas

Duas e trinta e um da tarde. Almoço ou post? Post. Porque hoje tenho um dia infernal de campanha e só para variar, ainda vou ter que escrever uma qualquer inutilidade - o chefe assim a apelidou, esta não dá justa causa, lamento - para a secção que me paga o salário.

Já sei que, depois, vou chegar a casa às onze da noite, vou deitar a minha bébé, dar corda à caixinha de música, vou ligar as luzinhas com libelinhas a quem a Carolina chama de lulús, vou tirar a roupa da corda, vou ficar com os dedos dormentes do frio, vou aquecê-los em vão, entalando-os entre as pernas, vou espreitar a loira diabrete já a dormir de boca aberta o sono dos inocentes, vou ficar feliz com aquela imagem, vou guardá-la no meu chip, depois vou sentar-me no sofá laranja com frases soltas prestes a explodir como milho americano em lume forte, mas vou ligar o programa que me faz companhia todas as noites e depois vai aparecer, no messenger, o sargento, a adolescente esquizofrénica, a habitué Qui Qui, e já sei, vou ter pouca coragem para o escrever: o meu cansaço é como o desemprego em Portugal, é estrutural, não é meramente cirscunstancial, e já pareço o Garcia Pereira a falar, ontem, gostei sobretudo quando ele disse, no Centro de Estudos Judiciários, perante meia dúzia de gatos pingados que andam a estudar na antiga prisão do Limoeiro para ser juízes em causa própria, ele disse que tem um gabinete de pirotecnia no afamado escritório de advocacia que dirige e que solta um foguete por cada cada vez que a Justiça cumpre os prazos estipulados, mas soltou, também, que tem a sala cheia de foguetes, que estão prestes a passar de prazo, ele disse isto sem mudar o tom de voz, ácido, implacável e eu tive um ataque de riso histérico, que se transformou num ataque de tosse e que me trouxe as desaparecidas lágrimas aos olhos.

Começam-me a nascer as primeiras rugas.

Eu estava há pouco tempo no colégio, ainda não me tinha habituado à ideia de tratar a professora por Ana Paula e não por senhora Professora Gertrudes Maria, na escola 101 do Bairro das Estacas, a senhora professora tinha uma menina dos olhos de não sei o quê e uma régua que içava sempre que alguém abria o pio, e a sala cinco tinha dezenas de colegas indianos, lembro-me de um que tinha 14 anos, o António Odô, tinha a caligrafia mais bonita, e uma menina muito pequenina, que mal falava português, chamava-se Minashri. No colégio, a única pessoa com a cor de pele diferente da minha era a Ruzena, filha de um embaixador, era muito escura, tinha uma carapinha muito cerrada, tinha uns lábios enormes, rosados, tinha as palmas das mãos mais brancas que as minhas, tinha um perfil de estátua aborígene, havia o Aguinaldo também, mas esse tinha cor de meia de leite, e apesar de estarmos numa escola privada, eu e as minhas duas tranças fomos as únicas a brincar com a Ruzena no recreio, porque, diziam os outras crianças, más como eu nunca mais vi, os outros gozavam com ela e diziam que ela era das barracas que havia no morro da Estados Unidos da América, junto ao Parque da Belavista, e isto foi só porque um dia ela trouxe os collants com uma malha.
E, nesta altura, o avô Oliveira ainda estava vivo, a avó Tóia já não, lá em casa, a alcatifa do hall era verde bandeira e eu tinha uns sapatos de presilha azuis escuros, com sola de couro e passava a vida a escorregar naquele cobertor do soalho que lembrava o feltro das mesas de jogo, lembro-me de estar a ajudar a Dona Teresa, a minha ama e ama do meu avô, estávamos a dobrar lençóis no hall, com a cómoda dos puxadores de faraós dourados e tampo de mármore do meu lado esquerdo e, nesse dia, em que dobrámos um jogo de lençóis com padrões dos anos 70, e em que a Dona Teresa me ensinou um jogo que envolvia bolinhas em folhas quadriculadas, tínhamos ido a Vila Franca de Xira, em visita de estudo com o Colégio, à Xira Jovem e isso era uma espécie de feira, montada numa tenda de circo - é assim que eu me lembro dela -, davam-nos dinheiro de fingir à entrada, dinheiro de monopólio, e depois havia barraquinhas, com comes e bebes, com jogos, o chão era de terra batida e estava enlameada, eu lembro-me de andar com cuidado por causa dos sapatos que eram mesmo bonitos, comprados numa loja do centro comercial ACSantos da avenida da Igreja, lembro-me de andar atrelada com a Rosalinda, a contínua do colégio que me recebia todas as manhãs na carrinha, bata cor-de-rosa, permanente no cabelo que lhe tinha emprestado os caracóis de um carneiro, e parámos na barraquinha onde umas senhoras simpáticas faziam penteados e pinturas, e puseram-me uma peruca loira na cabeça e sombra verde nos olhos e lembro-me de sorrir ao espelho, um espelho de camarote com luzes, e de elas dizerem: "faz uma covinha tão linda na bochecha direita". E a Rosalinda: "É a menina mais bonita que eu vi". "Mas vai ficar rapidamente com rugas", disseram.

E na Quinta do Lambert, o tecto radioactivo, as bananeiras do jardim interior, o supermercado do patrão no piso de baixo, o meu cabelo cortado à escovinha, um top de seda verde seco, bordado com missangas, um fato preto, os olhos pintados de verde também, a fazer as bolsas em traje de cerimónia, porque dali seguia para a inauguração do Zé Ralha, a que teve a Amália a dizer que o meu pai e o meu avô e toda a minha famíllia eram pessoas muito puras, a Amália agarrada à minha mão direita sem largar, depois de ter emborcado uma garrafa de whiskey sozinha, a Amália que se esqueceu de colar a placa ao céu da boca, e a Sílvia, quando me viu a tirar os prints da Reuters do Euro Stoxx 50, "tens uma pele tão linda, não tens nenhuma ruga".

Começam-me a aparecer algumas rugas

Rugas de chorar


[Não me perguntem como é que tenho fotos de mim a chorar, porque senão eu tenho que vos dizer que tenho a mania psicopata de fotografar os momentos tristes, da mesma forma que toda a gente fotografa os sorrisos de felicidade Pepsodent, para mais tarde recordar]

Rugas de sorrir

Rugas de cantar [é o que eu mais gosto de fazer e não tenho nenhuma foto a cantar]

Começo a franzir

Rugas de sentir
Amanhã, vou comprar o meu primeiro anti-rugas.

Créditos fotográficos: entre outros, inomináveis, a Diana Quintela.

E não almoçei, mas também não escrevi o post. Fiz tudo como tinha descrito, tirei a roupa no estendal, liguei as luzes de libelinha, a caixa de música a tocar uma canção de embalar, o sofá, a Qui Qui e a outra esquizofrénica no messenger, foi tudo como eu escrevi.

8 comentários:

Anónimo disse...

Desde que me deste a tua morada não páro de te visitar... quando acordo passo rapidamente por aqui... quando vou dormir também...
Busco todos os dias a pureza e simplicidade das tuas palavras que me levam a sorrir de forma pura e simples.
ainda bem que o meu aniversario calha na mesma altura do aniversário deste teu 'menino'...
continuarei a visitar-te com a certeza que irei encontrar algo de apaixonante.
gosto de te ler.
um beijo.

pinky disse...

não te preocupes com as rugas,
elas são o testemunho da nossa vida.
espero que tenhas muito mais rugas e sorrir e cantar do que de chorar!
o melhor para as rugas ainda é mesmo rir e sorrir!
;) bjkas

Anónimo disse...

grande post! muito bom.
obrigado pelos creditos, mas feitas bem as contas só uma é que é minha :)
e nao te preocupes com as rugas, ja ouviste falar na "velhiçe" do vinho do porto?

Mary Mary disse...

Mesmo que tenhas umas rugazitas, tipo duas ou três vá, com esse sorriso que tens ninguém irá reparar nelas... Acredita!!! Eu já vi e sou testemunha disso... :)

Dia disse...

O visitante nº 30 mil tenha a bondade de me auxiliar e acusar-se. Eu sou esotéria (ouvi esta ontem), acho sempre que estas coisas são sinais de alguma coisa. Agradecida. Agora tenho que ir tomar banho e ir para o Garcia Pereira.

MPR disse...

Para 30 mil ainda faltam 43... já não sou eu... Belissimo post, carregado de memórias e sentimentos...
Agora vai lá ter com o teu stand-up politician e escrever textos com virgulas e pontos e altos e baixos... :)

Carrie disse...

Não vou comentar o texto sob pena de cair na banalidade, na bajulação pura e simples. Só digo que as fotos estão lindas e que rugas nem vê-las.

Anónimo disse...

eu só tenho fotos de mim a rir feito parvo..acho q não tinha coragem de me ver nas outras situações ...e num aparte...eu gosto do garcia pereira.