domingo, janeiro 29, 2006

À espera da Liberdade


A última favela de Lisboa. A primeira também. Enraízada nas costas de Monsanto e aos pés do Aqueduto das Águas Livres. Com vista para o Tejo e para toda Lisboa. Irónica escolha de palavras: um milhar de lisboetas vive em condições idênticas às da Revolução Industrial num bairro chamado Liberdade. Esperam-na há mais de 50 anos.


Um trabalho de Diana Ralha [texto] e Rui Gaudêncio [fotos]


Há coisas que os olhos não estão preparados para ver.


Um milhar de pessoas a viver na companhia de ratos, percevejos, imundice, escombros e entulho. Imagens de Fátima e fotografias de Amália espalhadas pelas paredes, numa espécie de culto, de fé inabalável. Bibelôs, muitos, cisnes, cães, gatos, de vidro ou de porcelana, apinhados em uma, no máximo de duas assoalhadas com pouco mais de cinco metros quadrados.
Habitações que não são mais do que corredores, sem janelas, com as paredes pintadas de cores vivas e salpicadas de bolor. Divisões versáteis e minúsculas, que servem para tudo: para cozinhar, para comer e para dormir.

Sanitas ao lado do micro-ondas, a um canto da sala, aos pés da cama, atrás de um vão de escadas.Por vezes, não existem sequer. A substituí-las, há baldes de plástico no chão, que os seus donos mascaram de sanita, enfeitando-os com tampos de plástico. Depois de cheios despejam-se na rua, nas pias existentes nos pátios. Os lavatórios são um luxo.

Um milhar de pessoas, adormece e acorda todos os dias nestas condições. Liberdade. Vivem num bairro chamado Liberdade. Moram assim desde sempre. A maioria há mais de meio século, mas ainda se encontram anciões que ali criaram raízes há 80 anos, quando o mais antigo e último dos mais precários bairro de Lisboa assentou arraiais e cresceu sem freios nas costas de Monsanto, na freguesia de Campolide. Nasceram, casaram, criaram filhos e os netos na Liberdade. São escravos dela.


Ensombrado pelo Aqueduto das Águas Livres, colado ao pacato e cobiçado Bairro da Serafina, com vista para o Tejo e com Monsanto a enquadrá-lo como uma moldura de vegetação luxuriante, o Bairro da Liberdade é “a última favela de Lisboa”. Quem o qualificou com estas palavras foi António Carmona Rodrigues, na altura candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Não exagerou. Prometeu deitá-lo abaixo. Há coisas que os olhos não estão preparados para ver.


Quando se morre sai-se pela janela num saco

Pátio do Chafariz. Travessa Capela Velha. É apenas uma das ruas de um bairro onde toda a gente se conhece, ajuda e tem sempre as portas abertas, com as chaves na fechadura. Sem medos.
Por fora, lembra uma aldeia, há crianças e velhos nas ruas, cheiros vários, cortinas de renda de nylon e de xadrês colorido. Nada faz adivinhar em que condições vivem os moradores do Bairro da Liberdade.


Carmen Almeida, 40 anos de bairro e de vida, nunca saiu daquele pátio. Mudou da casa do pai para a do marido. Transportou os seus pertences para apenas duas portas ao lado. No seu T1, ao qual se acede por um corredor escuro e umas escadas a pique que teimam em ceder e pregar rasteiras, moram três pessoas. Tem água em casa porque fez as obras à sua conta. A sanita está ao lado do micro-ondas, numa cozinha improvisada em pouco mais de três metros quadrados.
Esta mulher de coração frágil, recém-operado, está inquieta. A sua sogra regressa do hospital amanhã, segunda-feira, com uma perna amputada. Carmen sabe que a idosa não mais irá sair do buraco a que ali se chama casa até ao dia em que fechar os olhos para sempre. Desabafa, enquanto desce um vão de quatro degraus com a largura de não mais de cinquenta centímetros: “Quando se morre aqui, sai-se num saco de plástico pela janela. Não se sai num caixão”.
Voltando aos vivos. Número da porta 71 A. Aníbal Barata, olhos verdes, muito doces, voz de candura infantil imputada à demência. Um quarto. Sem janela. Um cheiro que se entranha na roupa, na pele. A porta abre-se, não abre toda, só o suficiente para entrar um corpo de lado. Não abre o suficiente porque o quarto é exíguo, a porta bate numa cama onde se acumulam pilhas de lixo, tralhas diversas. Percevejos.

Lá dentro, como um animal e rodeado deles, sobretudo de ratos, vive, desde 1965, um ex-combatente da guerra colonial. Serviu em Angola. Está reformado por invalidez. Enlouqueceu. Está entregue à bondade dos vizinhos e da irmã, que mora uma ou duas portas à frente. Aníbal Barata gosta de Amália, há fotografias e cartazes da fadista na orgia de parafernálias várias que colecciona no seu quarto: “Quem não gosta de Amália não é português”, diz. Gosta de Cavaco Silva também – está um exemplar da revista “Homem”, em grande destaque, aos pés da sua cama. Quase não se vê parede. Aníbal pendura espelhos, posters, demasiada informação para a retina. Ao centro, uma imagem do sagrado coração de Jesus diz, em letras garrafais: “É preciso orar”.
Dez passos à frente. Fim de um pátio do bairro da Liberdade, onde crianças brincam com cães de raça (um pittbul, um caniche, um yorkshire terrier e um lulu da Pomerânia) e pardais chilreiam nas gaiolas pregadas às fachadas das casas. É um pátio cheio de flores e de couves, plantadas por Eva Duarte e que, afiança, já renderam duas sopas este ano.






No fim do pequeno pátio, numa habitação prestes a desmoronar-se, sem telhado, sem reboco nas paredes, apenas tijolos unidos com cimento, mora Francisco Sousa. Aos 49 anos está desempregado e sem direito à prestação social do rendimento mínimo garantido. Este homem, de enormes unhas e gengivas pueris, não tem como se proteger do frio e da chuva. Não tem casa de banho ou cozinha. Sobrevive de biscates e da ajuda dos vizinhos.



Grafitti para esconder o bolor

Os moradores abrem, sem vergonha, as portas das suas casas. É assim em todo o bairro. O asseio é a norma. Ana Isabel mora na Liberdade há apenas três anos com o marido. São ambos muito jovens, já têm um filho com três anos, que dorme num colchão encostado à cama dos pais. São os vizinhos da frente de Francisco e recuperaram a braços uma barraca idêntica à sua. Lutam contra a humidade. Escondem-na, no quarto, com cortinas de renda, com cachecóis de clubes de futebol e posters de ídolos musicais. A humidade não se vê, mas sente-se, entranha-se nos ossos. Na sala, com pouco mais de quatro metros quadrados, desistiram, é uma luta inglória, optaram por um tromp l’oeil, camuflaram o bolor das paredes com um grafitti.
O cenário repete-se naquele pátio, em todo o bairro.




Existe uma tentação forte de verificar, à cautela, na agenda em que ano se está. 2006,1906? Oito pessoas a morar numa habitação que tem um quarto esconso enfiado no sótão, uma sala que também é cozinha, e uma divisão sem janelas, com cerca de cinco metros quadrados, onde dormem quatro pessoas de noite. Um filho de 21 anos, e um neto pequeno a dormir ao lado dos pais e avós.
Um quarto e uma sala. Mínimos. Não há cozinha, nem casa de banho. José Cardoso, setenta anos de boa figura, sobretudo de bom corte e boa fazenda, viveu sempre sozinho. Na companhia de imagens de Fátima e bibelôs do Benfica. “É só miséria”, desabafa, mas volta atrás, quase com vergonha do sacrilégio que a sua boca acabou de reproduzir: “Posso-me dar por contente. Há pessoas aqui no Bairro a viverem trinta vezes pior.”

Aqui é tudo boa gente

Todos gostam de viver no Bairro da Liberdade. Garantem que não há desacatos, insegurança, admitindo, porém, existir algum tráfico e consumo de droga no bairro. Não se encontra ninguém, que algum dia, em meio século de vida, tenha sido assaltado no bairro.


A noite cai, a ponte 25 de Abril e o aqueduto iluminados compõem um cenário de beleza invejável e, lá em baixo, no Eixo Norte-Sul e na Avenida de Ceuta, os carros seguem em fila indiana sem supor que, ali tão perto ,há um vórtice temporal que faz recuar tempo até ao início da revolução industrial.
Quase todos querem permanecer encostados a Monsanto e ao Aqueduto das Águas Livres, com vista para toda a cidade. Sonham há décadas viver com um pouco de dignidade, mais como pessoas e menos como animais. Muitos perderam já a esperança e também a conta das vezes em que abriram as portas das suas casas, sem vergonha, ou escondendo-a o melhor que sabem, e escutaram as promessas eleitorais, nunca cumpridas, de uma vida melhor.
Mas ainda há quem acredite. A anciã Hermínia Tasso, octogenária, tantos anos de vida como de bairro, sabe que já não vai ver o dia em que a liberdade vai chegar: “Já não vou ver. Mas fico contente por saber que vão ajudar quem precisa. As pessoas merecem, são todos boa gente, acodem-se uns aos outros”.
Com apenas dez anos, Sara Ramos, muitas sardas no nariz, acalenta este sonho: “Tenho muita gente com quem brincar, tenho tanta gente para conhecer aqui no Bairro. Só precisamos de casas melhores. Moramos em buraquinhos que até dão para viver, mas gostava mesmo era de ter um quarto só para mim”, desabafa, entre suspiros e um sorriso envergonhado, à porta de uma das muitas mercearias do bairro para onde vai brincar depois de chegar da escola.

16 comentários:

NUNO FERREIRA disse...

muito bom, Diana e Rui

Anónimo disse...

Welcome to the world!

Oldmirror

Mary Mary disse...

Infelizmente o mundo é assim... Há sempre alguém que paga pelos outros. Será que um dia estas pessoas vão ter uma janela para deixar entrar a luz do Sol na casa e nas suas vidas? Espero que sim, desejo que sim...

Parabéns pelo texto, está magnifico! Fiquei com o coração apertado e cheia de ódio por ninguém fazer nada...

Anónimo disse...

Lindo.Quando é que sai a próxima?
Quero mais.

[ t ] disse...

.
não é só a matéria chamada construção que muda o mundo. a indignação é absurda também perante a realidade. passeemo-nos por onde devemos passear. ficamos todos sensibilizados por tudo isto mas afinal deixamos só umas quase falsas lágrimas correrem nas nossas caras. continua sempre na mesma. e os nossos filhos (que esperemos que tenham a sorte também do seu lado) daqui a trinta anos voltarão a chorar, mas que não sejam tão cobardes como nós.

dia, desculpa a agressividade, mas já sequei demasiadas lágrimas pelo choque, agora fico assim. já me senti impotente nesta realidade. com a esperança nas minhas mãos. em mim que de grande nada consegui fazer.

um beijo amiga.

SGTZ disse...

Muito, muito bom,...

Anónimo disse...

Optimo. Melhor não podia ser.
Apesar das grandes dificuldades que estas pessoas enfrentam muitas vezes, e parece ironia, há uma grande amizade, entreajuda e tudo de bom que possa existir dentro dos fracos ou nenhuns recursos que tenham.
Parece que estou a inventar, mas não, pois já tive uma tia que viveu quase nestas condições e o que lhe valeu foram os vizinhos.
Não pensem que lhe deram dinheiro, não isso não poderia ser, pois tomara eles terem para si. Mas se estava doente ou com outro problema qualquer, eram os primeiros a chegar e a ajudar.
No meio da miséria há que tirar lições de vida desta gente.
A Câmara em vez de renovar as frotas dos seus carros, que muitas vezes ainda estão em muito bom estado, invista em causas mais nobres, como esta de arranjar casas para esta gente. Há que gritar um bastaaa para estas situações!!!!!
Jokas do Castelo

Anónimo disse...

genial..parabens aos dois

fernando lucas disse...

eu acho que nestes casos não se trata de passar a culpa para outros, ou a culpa é do sistema, com ou sem salazar. por muito que custe, a pobreza existe em todo mundo, uns mais que outros, a miséria a fome, as guerras.
é impossível acabar com tudo isto, não sonhem com um Portugal sem bairro da Liberdade. mexam-se! façam algo que ajude a pessoa do lado. por muito pouco possam fazer, mas façam.
e sonia, eu que vivi muitos anos na Amadora, já muito se fez pelos bairros, e Lisboa também está muito diferente de há 31 anos, e sim, se gastassem o dinheiro dos estádio em ajudar esta gente era bem melhor.

Anónimo disse...

Diana,

São reportagens destas que nos devem orgulhar enquanto jornalistas (porque, se não é para isto que o jornalismo serve, então para que será?) e que envergonham (ou deveriam envergonhar) quem tem o poder para mudar a vida destas (e outras pessoas).

Uma nota adicional: se esta for a tua despedida, será certamente em beleza. E tristes são os que não percebem a poesia que emana da tua escrita.

Parabéns também ao Rui (que não conheço) pelas fotos.

Um beijo

Telescópio disse...

Muito boa, a reportagem, e não precisaste da minha ajuda. Para quê, afinal?
O ritmo tá excelente - história, informação, história, informação -, os ambientes arrepiam - não é fácil -, a pertinência do trabalho é óbvia.
Gosto das descrições dos cenários e das personagens (conseguiste apresentá-las a todas de forma diferente, anulaste repetições desnecessárias, trés bien).
Ah, e aquele pormenor dos cachecóis a taparem a humidade mostra olhar aguçado, de reportagem pura.
Bem-vinda a este lado do jornalismo. Agora hás-de querer fazer mais. Os leitores agradecem.

RR

PS - By the way, isto não sair na revista é crime de lesa-jornalismo. E os meus aplausos estendem-se às fotos.

Massano Cardoso disse...

Esta nota merece todo o destaque. Dói e muito. Os responsáveis pelos diversos blogs, e que têm sensibilidade para assuntos tão relevantes como este, deveriam referenciá-lo e divulgá-lo por toda a blogosfera.
Foi através do Blog Tonibler que cheguei aqui.

Dia disse...

Obrigada a todos, tive que me afastar um pouco, plantar-me no principe real a tarde toda para me recompor.
Benvindos todos os bloggers de referêcia ao meu quintal.

Anónimo disse...

Um dos teus melhoers trabalhos.

AM disse...

excelente, vou linkar

Anónimo disse...

queria eu que nós, brasileiros, tivéssemos uma última favela.

aqui, algo do porte do bairro da liberdade seria classificado como "bairro de classe média-baixa".

vocês estão à frente, em desenvolvimento. e nós vencemos em demagogia.

belo texto.