segunda-feira, janeiro 30, 2006

Esquizofrenia das coisas pequenas (I)

Era um estranho conceito.
Mais um daqueles montado em cima de teses feitas de castelos de cartas de copas, que, por sua vez, estavam plantadas sobre estacas podres de bambu, que, por sua vez, escorregavam por entre terrenos movediços.
E este era um post brincalhão. Primeiro quis jogar à apanhada, ela ia a caminho do Marquês, dentro do Idea cinzento escuro, um carro com uma cor banal, que era boa para esconder a sujidade (em quase dois anos de vida, o Idea tomou banho apenas quatro vezes; tinha um estilo de vida medieval, apenas se banhava no dia do seu aniversário - 19 de Março - e no Natal), mas aquele era, apesar do fato escuro, um monovolume com um toque de rebeldia, emprestada na pincelada laranja dos seus estofos - havia poucos Idea em Lisboa, nem o anúncio com o George Clooney valeu à Fiat e ela ficara triste quando a sua mãe não a deixou encomendar o carro laranja com estofos laranja, detestava o facto de o laranja ser conotado com o PSD, tinha uma parede laranja, um sofá laranja onde escrevia posts esquizofrénicos, a casa-de-banho também era laranja, com mosaicos de piscina de cinco por cinco centímetros, mas não a deixaram ter um carro laranja, mas, não era mal agradecida e a cavalo dado não se olha o dente, não se queixou, como se podia queixar?, e a mãe deixou-a ficar com os estofos dessa cor que é feita da mistura do encarnado com o amarelo.
Ia no Saldanha já, o post todo a chegar por telex, daqueles antigos, com fitas perfuradas, vinha a chegar à velocidade da luz e neste preciso momento, o volume do auto-rádio estava a 37 (sempre números ímpares, sempre números ímpares, já sabem como é), ia a cantar, com a pequena loira lá atrás num coro desafinado: "e tu Maria, diz-me onde andas tu? Qual de nós dois faltou hoje ao rendez vous? Qual de nós viu a noite até ser já quase de dia? É tarde, Maria... Toda a gente passou horas em que andou desencontrado" e olha para o lado, tem este vício terrível, está sempre à cata da realidade, não pode andar de transportes públicos porque fica vidrada na cara das pessoas e depois elas perguntam se há algum problema, se têm macacos no nariz ou pedaços de caldo-verde enfiados entre os dentes, era um perigo para si própria, devia saber olhar para os pés, ou ler o Metro, ou um livro de bolso, dormitar, fixar o olhar no infinito, como todos faziam, sem excepção, mas não. Divertia-se a imaginar as vidas maravilhosas dos utentes dos transportes colectivos de Lisboa e um dia queria ir dar uma volta na Vimeca, ou outra qualquer transportadora suburnana com frotas de autocarros com idade para serem suas irmãs mais velhas, queria ver mais gente triste, mais povo, porque o povo da linha amarela não era povo, e das poucas vezes que tinha andado de autocarro também só fazia trajectos pseudo-finos: Marquês-Avenida de Roma.
Olha para o lado e vê uma cara conhecida. Não interessa quem. Mas como é uma desbocada - agora tem que ser menos desbocada; apareceram bloggers de referência no seu quintal que, hoje, só porque sim, tem plantadas hortenses verdes e azuis -, solta que foi um tipo com quem a quiseram amantizar numa passagem de ano, sem pudores, com a cara de cú da namorada a dormir, enjoada, no andar de cima, mas ela trocou o caldo por várias horas ao telefone com o seu primeiro amor virtual, um doutor de Oxford, que estuda as mutações genéticas em drosophilas e outras coisas que tal, coisas que envolvem sinapses, lembra-se ela assim de cor, é muito interessada, e este é um amigo de longa data. Que nunca viu, que nunca vai ver na vida, já o aceitou, mas ao qual ainda não perdoou a ausência telefónica deste Natal.
Mas sorri quando vê o vizinho do carro ao lado, ele não a vê, e é, neste momento, praticamente sufocada pela chofagem do Idea - sempre sonhara escrever esta palavra, nem sabia muito bem como é que se dizia, teve que perguntar ao SGTZ, um dos seus vizinho virtuais, um que, apesar do frio de rachar, tem a janela aberta, escancarada, até às tantas da madrugada. E ainda bem que o fez, porque não sabia se era cofragem ou chofagem, ia optar pela primeira e ia fazer asneira, cofragem é dos edifícios, não é dona arquitecta dos abraços de esmigalhar mamas? E falando em arquitectos, lembrava-se dessa palavra, a "chofagem" dita pela boca do seu primeiro namorado, o "tontinho", era assim que o chamava - nesses momentos, em que ela era má, pensava mesmo que era daquela laia que tão bem descreveu três posts abaixo -, e chamar-lhe "tontinho" era até simpático da sua parte. O moço era muito básico e tinha um incisivo lateral cor-de-rosa, pigmentado dessa estranha cor por causa de uma desvitalização feita por um dentista a martelo, um dentista que tinha consultório na Almirante Reis, em frente ao Independente e ao sítio onde fez a sua tatuagem, um dentista que era amigo do pai do "tontinho", que, por sua vez, era talhante - o pai, não o dentista -, mas toda a gente naquela família tinha dentes cor-de-rosa se calhar o que homem que pigmentava os dentes desvitalizados dessa cor também cortava quartos dianteiros de vacas nas horas livres, lembrava-se bem do aspecto sinistro do consultório, o médico não usava luvas, não mudava as brocas e isto fazia-lhe muita impressão, mesmo muita, mas o tontinho dizia "chofage" e dizia também "lember". Sim. "Lember" - havia uma anedota qualquer, muito porca, que acabava com "lambe-me o caralho", ah, não era uma anedota, era uma história qualquer do Nuno Rogeiro a fazer uma oral na Lusíada, e ele dizia sempre "lembe-me o caralho". Arrepios. Pele de galinha. Era "tontinho" sim, dizia "chofage" e "lember", mas, graças a ele, ela tinha um curso incompleto de arquitectura; fez-lhe as cadeiras teóricas todas - ele mal sabia escrever - e isto era quando ela tinha 16 anos, a sua carreira de depósito de conhecimentos inúteis começara com a arquitectura. Por isso, devia até saber que era chofagem e não cofragem. Estava a perder qualidades. Mas lembrava-se de tanto pormenorzinho escondido que tinha, necessariamente, que deixar cair algumas coisas. Era o caso da cofragem.
Tinha ficado no semáforo, no Saldanha. O post começou a chegar por fax, ao mesmo tempo que por telex. E ela sem poder escrever as frases que se atropelavam umas às outras à frente dos seus olhos, quando os olhos também tinham que estar atentos à mudança de faixa para cortar para o Imaviz.
Era brincalhão, este post. E quando se sentou no sofá laranja para o escrever, com dois cinzeiros de vidro amarelo, que noutra vida foram castiçais, continuou no mesmo registo infantil, quis jogar à cabra cega e depois às escondidas. Passadas algumas horas e muitos John Player Special depois, ela encontrou-o na terceira minhoca do cérebro a contar da direita.

Mas estava cansada. E o texto ia longe da parte que era realmente bonita, da que piscara diante dos seus olhos, no percurso de carro que era igual todas as noites, e que ela tinha enxotado com força com as escovas do pára-brisas.

Doía-lhe a mão e a tendinite de esforço, que lhe tinha sido diagnosticada há uns meses, estava assanhada. Pela primeira vez, ia cortar um post ao meio, fazê-lo em capítulos, reivindicação de muitos leitores preguiçosos, que desistem aos cinco mil caracteres. Não estava contente com essa decisão. Não fora reflectida, fora imposta pela mão. E, como tinha falhado, prometera a si própria nunca mais ficar 24 horas sem escrever. O Ibook tinha uma bolsinha janota em neoprene, tipo boxeurs de lycra, tinha uma bateria com horas e horas de autonomia, da próxima vez, levava-o para o Princípe Real consigo.

Era a excepção. Hoje. E o melhor da posta ainda estava para vir, garantia.

E continuava a escrever na terceira pessoa do singular. Não o lamentava. Apenas registava a ocorrência, tão maquinalmente como um agente barrigudo da Divisão de Trânsito da PSP preenchia uma multa de estacionamento.

4 comentários:

Mary Mary disse...

Eu não me canso de ler nunca... Aliás já tenho a minha rotina de todos os dias. Chego a casa e sejam que horas forem, vou à cozinha fazer duas tostas de queijo, visto o pijama, enfio-me na cama e abro esta Tralha... Já é um ritual que adoro fazer todos os dias... E quando as postas são pequenas e acabo de ler antes de comer as tostas fico triste... :)

Anónimo disse...

Pois a mim das-me cabo dos olhos;)

Lcego disse...

Será que é mesmo a esta velocidade que tudo te sai da língua dos dedos?
Uffff...

Anónimo disse...

Podes continuar com a esquizofrenia que eu não me canso...

Eheheheh