quinta-feira, setembro 27, 2007

segunda-feira, setembro 24, 2007

Antigamente

Antigamente, eu não sabia o que era um vereador, não sabia o que era um editor, muito menos me preocupava com as funções de um redactor principal ou com a adequada tradução para a língua inglesa de tão distinta categoria profissional da carreira jornalística, e estava longe de imaginar que existem mais freguesias do que as semanas que completam um ano da minha vida, e nunca tinha pensado que um jornal se "fecha" todos os dias (à chave?), que Benfica ainda é Lisboa, que Carnide também ainda é Lisboa, antigamente eu tinha uma cábula muito bem feita num dicionário de Latim, na página 500 e na página 1000, que me garantiu um notável oito no exame nacional.

Antigamente, eu tinha telemóveis caros de última geração que apareciam nas mãos das vedetas dos filmes de Hollywood e, hoje em dia, tenho telemóveis de quinta categoria, só que, antigamente, eu tinha contactos de amigos pelintras em telemóveis caros, e hoje guardo o contacto do Joe Berardo num telemóvel reles.

Antigamente, eu não sentia as minhas entranhas a estalar, havia só registo de uma ou outra fissura microscópica, e, então, eu conhecia os limites do meu corpo e ainda conseguia sentir dor e frio nas extremidades, e tudo se resumia ao que vestir com as calças de sarja azuis bebé, com bolinhas brancas microscópicas, compradas no primeiro dia de saldos da Zara.

Antigamente, quando as férias de verão se estendiam por três folhas do calendário dos gatinhos amorosos em pose, dentro de cestinhas de verga, eu bebia sumos de laranja com uma pinguinha verde de Pinsang Ambom, no relvado, junto ao poço e ao jardim de cactos, e assistia ao transe conjunto das flores, das palmeiras, dos choupos e dos eucaliptos que mudavam de cor e mudavam de pio ao som hipnótico que vinha lá de cima, muitos decibeis acima do permitido, escorregando directamente do génio do Philip Glass (antigamente ninguém sabia quem era o Glass), e às vezes adormecia e sonhava com as lanternas de pirilampos que ia fazer quando o sol se pusesse na Mata de todos os Medos.

Antigamente, eu sincronizava a minha respiração com a da minha avó quando procurava consolo no seu colo fofo, eu encostava o meu ouvido direito à lã grosseira da camisola de gola alta, e ainda não tinha alergias nenhumas, nem às fibras, nem ao pó, nem aos pelos de gato e dos cães, e também ainda não era alérgica à estupidez e à incompetência, eu ouvia o tum tum do coração da minha avó e sincronizava a minha respiração com a dela, e mandava o meu coração bater no mesmíssimo compasso, e sabia que havia de levar aquele momento comigo para todo o sempre (e sabia que o haveria de recordar ao espreitar a rotunda do Marquês por cima de um biombo de secretárias).

O anel que eu trago no anelar da mão direita, antigamente morava na Praça Pasteur, dentro da caixa de plástico castanha, junto ao cabide das gravatas do meu avô, e eu arranjava forças sobrenaturais quando alguém tentava apedrejar um pardal (hoje, já mato formigas sem remorsos).

Antigamente, a minha mãe recebia no Natal um envelope com cem contos, e cem contos era uma pequena fortuna, juntávamo-nos os três em rodinha, a carpete cinza rato por debaixo dos nossos pés e os olhos brilhavam a contar as notas de cinco contos de reis, e tirávamos uma nota, vestíamos os casacos e as galochas, e fazíamos a Rio de janeiro a pé, depois descíamos a Avenida da Igreja e então aí, onde se vendem trens de tachos da Silampos e carrinhos de compras para as velhinhas, comprávamos um brinquedo e uma embalagem de 25 canetas de feltro da Carioca.

Antigamente, eu zangava-me com o meu avô porque ele não deixava que os meus dedinhos dançassem na máquina bonita de escrever, e, magoada, saía de casa disparada com uma lista telefónica das Páginas Amarelas e uma caixa de madeira cheia de avelãs, eu acreditava que alguém me haveria de comprar cartuchos de frutos secos por uma moeda de 25 escudos, talvez se me esforçasse muito, eu conseguisse um envelope com cem contos de reis, talvez eu conseguisse ter a minha própria máquina de escrever.

Antigamente, os mistérios da vida não eram mais do que três: quem inventou o homem (alguém que gostava de fazer puzzles como eu, pensava eu), com que artes mágicas ou com que cola (heraldite, uhu, patex ou aquela que colava cientistas ao tecto)é que a lua estava colada no céu, e porque é que os carros ficavam tão pequeninos lá em Alcântara (antigamente, saberia eu que Alcântara era Lisboa também?), quando o Ford Cortina do meu avô Ralha me embalava ao passar o Tejo sobre o Tabuleiro Metálico.

Fazíamos a Almirante Reis a pé, do Martim Moniz ao Arreiro, antigamente rezávamos na capelinha que ficou emparedada pelo centro comercial da Mouraria, comíamos chamuças vegetarianas e comprávamos sáris, pechisbeques e bonecas de porcelana nas lojas de revenda que cheiravam a caril.

Antigamente, eu não sabia o que era um consultor de comunicação, eu não sabia o que era o sub-prime e o mercado de derivados, muito menos estava interessada em análises swot, eu não sabia que a vida me havia de levar tão longe, eu só sabia que um dia havia de morar na Almirante Reis.

quinta-feira, setembro 06, 2007

A Herança

Tenho a casa cheia de fantasmas e a absoluta certeza que descendo em linha directa do santo que desfilou de sandálias de couro pelas ruas de Goa.
São fantasmas da outra margem do Tejo, são fantasmas do outro lado do mundo, fantasmas que eu trazia nas veias e na textura da minha pele sem reparar.

(são fantasmas ultraleves)

Tenho fantasmas e mais fantasmas, e latas de Toddy mais velhas do que eu em cima da mesa de jantar, certidões de óbito, e declarações do modelo 1 do IMI (com o respectivo anexo preenchido em duplicado) junto ao sofá que quando crescer quer ser cama.
Tenho plantas de localização à escala 1/100 de imóveis onde os descendentes do santo com quem partilho um apelido se juntavam numa quinta que se estendia até ao mar, uma quinta onde trepavam canas e roseirais, e onde decerto a minha avó Isaura feriu o seu olho direito numa ferida que nunca mais sarou.
E tenho também registos prediais de pequenas ruínas de uma vila fabril, tenho visões de uma praia de areias finas onde hoje o mar bate sem espuma aos pés de chaminés industriais, mas também tenho um busto de barro do Sá Carneiro que comprei no Barreiro.
Tenho uma queixa à Ordem contra um advogado e que tem que ser redigida o quanto antes, tenho uma convocatória de assembleia de condóminos para tratar, tenho uma bicha xenófoba que ficou com o quintal que devia ser meu e que não gosta dos meus vizinhos uzebeques, sem falar que tenho o grunhido do meu avô Ralha na sala onde o meu pai morreu com ar de espanto.
Mas há pior - tenho o carcinoma do colo do útero da minha avó Isaura guardado num arquivo morto de Chelas, e a tristeza de me ter esquecido que ela também se chamava Faria antes do Xavier e do Ralha. Tenho o Manuel dos Anjos Xavier e a Maria Manuela Faria enterrados nos arquivos poeirentos da Conservatória do Registo Predial do Seixal.
Tenho um presépio minhoto que encontrei na mesma loja do achado extraordinário do busto de Sá Carneiro - e sim, acredito que lhe partissem a montra se o pusesse à vista de todos, e ainda bem que vejo sempre mais além, que nunca presto atenção ao que está à frente mas ao que foi escondido atrás do óbvio, senão não tinha um busto de barro do Sá Carneiro comprado no Barreiro -, e já tenho algum carinho pelo Barreiro, 500 quilómetros depois aprendi a gostar da terra de onde vêm as minhas feições, e enterneço-me pelo facto de a cabeça do menino Jesus do Presépio ser maior do que a da virgem Maria, e de as ovelhas terem um sorriso maroto.
Tenho o presépio montado no janelo da cozinha de Santa Marta porque preciso da fé, da esperança e da luz que inunda toda a gente no Natal (e tenho outra vez uma invasão de formigas, que respeitosamente contorna as palhinhas onde o menino está deitado).
Tenho novas ruas na cabeça, tenho outra vez quilos a mais e cabelos arrancados por um tique nervoso compulsivo.

Esta é a minha herança.