sexta-feira, junho 30, 2006

Stress pós-traumático

Na próxima terça-feira, meu irmão, como já não tens problemas e traumas que te valham, depois de mais de cinco anos semanais de terapia com o doutor Morais, leva-lhe este, eu não tenho dinheiro para sentar o rabo grande no divã, mas acho que podemos fazer a coisa à distância, por correspondência e, como já é hábito levares, às terças, o granel da nossa família, acho que ele não se importa de me diagnosticar à distância, e já agora de me tratar, também, sem eu meter lá os coutos. É que eu acho que estou mesmo doente, e não consegui ver grande coisa sobre este distúrbio da personalidade no Google, falta-me o Larousse Medical do avô Oliveira, onde todas as semanas podíamos escolher uma doença nova, mas estou em crer que sofro de stress pós-traumático agudo.
Não estive na guerra – quando tenho estas crises, dou graças a Deus não ter a Beretta com mira de infravermelhos escondida na gaveta das cuecas, da cómoda barata do Ikea que se está a desfazer aos poucos –, não fui violada, sequestrada, torturada com penas de ganso, ou impedida de dormir durante dias a fio para confessar um crime que não cometi. Por acaso, tive um acidente de carro que só tu e muito poucas pessoas sabem, mas o problema não está aí, não está, não está, como diz o Noddy, repetindo três vezes para frisar bem a coisa: passo há onze anos na Rotunda do Relógio, vinda de Chelas (ainda ontem passei), e quase nunca me recordo de um Rover desportivo (ontem lembrei-me), meio bimbo, encarnado, do talhante da avenida de Roma (eu namorei com o filho do talhante e fiz-lhe grande parte do seu curso superior de arquitectura), estofos de pele clarinha e interiores de nogueira, o Rover a diminuir drasticamente de tamanho, como uma lata de refresco vazia, a cada embate, 2500 centímetros cúbicos de cilindrada aos tombos pelas três faixas de rodagem, já me esqueci dos dois embates contra o separador central de betão, isto tudo à roda, como num carrossel, lembro-me vagamente da mão dos anjos a desviarem o dito carro desportivo do outros carros e, se me esforçar um pouco, consigo ainda ver o filme da minha vida toda a passar-me à frente dos olhos (não era muita, a vida, eu tinha apenas 16 anos e ainda achava que ia ser cantora), e à frente dos olhos a passaram, também, à velocidade da luz, estilhaços de vários vidros, o da frente, o do lado, os airbags a dispararem, o namorado da altura a querer voar, mas a ser retido pelo cinto de segurança, e dez segundos depois, finalmente, o poste de iluminação pública a substituir o ABS que não disparou, e um pára-choques perdido na estrada. Consigo até reviver o alívio com o misto de estupefacção de estar viva e sem um arranhão – apenas com um vestido feito de vidros entre as pernas.
Estaciono o carro no Parque da Praça do Município e quando o motor pára, estafado, começam os suores frios (e eu não suo nunca, nem que corresse a maratona), e as pernas a tremerem como gelatina Royal, a negarem-se a seguir as ordens da espinal-medula para se porem a caminho: direita, esquerda, direita, esquerda, pareço um bebé que dá os seus primeiros passos a medo, e eu praticamente incapaz de subir as escadas, sem vontade, sem coragem de subir as escadas, com tonturas, e pontinhos amarelos à frente dos olhos, e um zumbido infernal que é o alarme de que estou prestes a desmaiar. E se subo, quando subo, às vezes tenho que subir mesmo, porque tenho que ir ouvir o senhor presidente da câmara de Lisboa amiúde - mas já houve dias em que não fui capaz, por isso é que eu digo que estou doente -, tenho um truque, como os burros: ponho entrolhos do lado direito, pode ser um jornal, ou a mala, tanto faz, eu é que não consigo olhar para a porta do Tribunal da Relação de Lisboa, e mais uma vez agradeço não ter a Beretta quando alguém, muito poderoso, me mandou ter filhos por inseminação artificial a Espanha.
Sempre que o telefone toca e é a advogada, a competente, não a outra que só me ficou com uns belos milhares de euros sem ter feito nenhum, e me lê um qualquer documento, um recurso, alegações, acórdãos, qualquer coisa que me faça reviver um milésimo do que aconteceu na Relação, volta a acontecer: não me aguento nas pernas, atrapalha-se-me a fala, tenho que me sentar, o coração pula, chega até ao nível da taquicardia cavalgante, qualquer dia tenho um treco, não consigo respirar, mesmo quando são boas notícias, e depois não durmo nos dois dias seguintes, estrago o meu aniversário de dois meses de namoro a recordar os piores dias da minha vida, em que emagrecia dois quilos a cada 24 horas, em que não me conseguia arrastar para fora de casa, dias em que senti uma angústia nunca antes sentida, beco sem saída, e Berettas, sempre Berettas na cabeça, e que bonita que eu ficava com a gabardine de pele preta, cabelo apanhado, e uma Beretta em punho, e ele já me acompanhava do outro lado do monitor, e dava-me o seu apoio, contrariando o acórdão que me chama de “caprichosa” e “egoísta”, e agora até diz que adopta o meu nome quando nos casarmos, e que todos os nossos filhos podem ser Ralha. E as duas esquizo, lembro-me sempre delas quando o oxigénio tarda em chegar ao cérebro, e não consigo coordenar movimentos: da que também treme das mãos a torto e a direito, a que me salvou naquele final de manhã, que me ligou e me obrigou a almoçar nas freirinhas do Chiado que têm a melhor vista de Lisboa (o Carvalho da Silva deve ter a segunda melhor vista, do seu gabinete), que me trouxe à realidade, eu não chorei durante o almoço, só na Basílica dos Mártires, a fazer uma promessa louca aos pés do Santo Expedito e, nos dias seguintes, a madrinha, a dizer-me para não desistir, que acreditava em mim e na minha causa doida, que eu não era louca, que peço apenas o que está escrito na lei, e como eu me consumi, estiquei a reserva do depósito de combustível, e o meu motor é a diesel e gripou, ela deu-me um bocadinho da sua força sobrenatural (força de fada, de fada madrinha) e eu sobrevivi, consegui sobreviver nos dias seguintes, mesmo que sem dormir. E uma semana depois, as senhoras da Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher e um magistrado do Ministério Público a contactarem-me, caídos dos céus, e então, não me senti tão sozinha e má mãe como me acusou o desembargador, e depois, dois homens, dois inomináveis, que não me fizeram lá muito bem, que me fizeram chorar entre imperiais e cigarros espetados num cinzeiro malcheiroso, mesmo aqui ao lado, no Lacinho.
E eu só sei que não fui à guerra, não fui assaltada, sequestrada ou torturada. Mas algo terrível aconteceu naquele Tribunal, algo que eu não consigo ultrapassar ou racionalizar, que me impede de estacionar o carro na Praça do Município. E, se calhar, tenho que viver com isto para sempre, como uma doença crónica que não mata mas mói, para lá da sentença que há-de sair, daqui a muitos anos, do Tribunal Constitucional, e que me há-de sossegar, e que eu espero que seja histórica, para me dar um pouco de paz, porque, pelo menos, entre mortos e feridos, e feridas que não fecham nunca e pioram em dias de humidade, fui até ao fim.

quinta-feira, junho 29, 2006

A santa lá de casa


Bonita, tão bonita, e as mãos que seguram a posta de salmão, foram as mesmas com que a Marta matou um dragão, algures em França. Não podia ter aranjado melhor santa lá para casa.

(é a santa que também olha por ti.)

quarta-feira, junho 28, 2006

Publicidade ao meu amigo (é o mínimo que posso fazer depois de me ter esquecido do aniversário dele)

"A maldição sente-se por toda a região do Barroso, no lado transmontano do Gerês. É, afinal, uma terra de esquecidos, onde o lobo ainda consegue resistir. Aqui, aprende-se desde a infância que o «bitcho bravo» tem poderes sobrenaturais e é amigo do diabo. Faz-se-lhe caça. Lobo peludo não pode por isso confiar em lobo calvo, o animal que se levanta em duas patas e mata tudo o que encontra pela frente. Mas todas as guerras têm os seus dissidentes e, neste caso, ele chama-se Chico dos Lobos. Esse que passa noites na serra a falar com as alcateias."

Lançamento do Livro, BITCHO BRAVO de Ricardo Rodrigues, hoje, às 19H00, no Bar A Barraca.

terça-feira, junho 27, 2006

Estou em crer...

... que eu e o senhor 50.000, que estava mesmo aqui ao lado, e se levantou, a ele e à loiça do almoço congelado acabado de ingerir, para me dar privacidade para eu escrever estas três linhas, estou em crer que somos as únicas duas almas deste país e da diáspora emigrante que não sabe por quanto ganhou Portugal à Holanda (nós temos o Maniche e eles têm o haxixe, li eu num nick name que muito me divertiu, mas eu cá preferia o haxixe, porque do senhor, só sei, por algum blogue de referência, que é feio para burro e não tem lábio superior), nem quando a selecção nacional se defronta com a Inglaterra (mas, já sabemos que é com a Inglaterra, aliás, sabia o senhor meu noivo, que eu não sei coisa nenhuma, e fiquei maravilhada quando ele me revelou que isso já estava decido). Contra os bretões, marchar, marchar? Nada disso. Eu que vivo no Marquês de Pombal, já estou farta de buzinadelas e gritos no pós-climax de cada vitória da equipa das Quinas (já não encontro fósforos - amorfos, preferia amorfos - Quinas; só do Lidl ou marca Feira Nova).

segunda-feira, junho 26, 2006

Qui Qui!!!!!!!


Tenho saudades tuasssss...

(Foto da supracitada, debaixo de um candeeiro em frente a Notre Damme)

domingo, junho 25, 2006

Que a poesia (não) morreu

Que a poesia morreu.
Colada ao vidro da porta de alumínio branco do prédio gigante da Estados Unidos que um dia vai ser meu – e quando for meu, este e os outros, as coisas piam diferente, mas eu só quero que sejam meus daqui a muitos anos, quero que a Magui morra de velha, muito velha, resmungona, insuportável mesmo, baixinha da escoliose que lhe verga as costas e rouba centímetros aos 1,65 metros mentirosos do bilhete de identidade, documento com a foto manhosa, tirada à pressa no metro, que lhe teima em lembrar que já tem menos onze centímetros do que quando se casou e alterou o “SOL” por “CAS”, quero que a minha mãe feche os olhos azuis acinzentados com o rosto rosado bordado de rugas fundas; mas quando for meu, meu e do meu irmão, largo a feitura das notícias (largarei antes?) e vou aprender a tocar piano; imagina só (será que os dedos ainda vão a tempo de aprender?), palavras e notas à roda na cabeça, prestes a explodir como uma pipoca em óleo fervente… eu nem posso pensar nessa eventualidade, porque é difícil de me conter –, oiço-te a dizer que não há poesia. Não há mais poesia. Nem nas coisas pequenas.
E estou tão perto do vidro que o embacio com a respiração acelerada, da boca não sai mais nada senão o bafo da respiração, e ainda bem que não saem palavras, que não sei o que dizer, que não sai mais nada, porque tenho o coração na boca, e ele ainda me fugia para as mãos, e eu não tenho mais mãos para o agarrar, porque a mão esquerda agarra com força o telefone barato finlandês, de onde me chega a tua voz triste, e, a custo, porque a poesia não pode ter morrido, a mão direita, que também agarra a chave do carro, para que, a qualquer instante, eu quebre o quase beijo que dou ao vidro da porta, e saia lançada assim que me dês as tuas coordenadas, a mão segura a chave do Fiat e quer voltar depressa para a ignição do carro que está estacionado em cima do passeio, para eu te tirar dessa casa de águas frias onde vives, mas a poesia não morreu, não aceito isso, e com a mão direita, a que também quer puxar as mudanças do carro a altas rotações para te ir buscar, essa mesma mão desenha, no embaciado do vidro da porta de alumínio branca da Estados Unidos, um coração.
Que a poesia morreu.
Que nem os verdilhões, que já comem a papa que preparas com amor, com um fiozinho de água que cai da torneira da cozinha, já a comem directamente da colher de café, e não da seringa, de onde a enfiavas goela abaixo, quando os recolheste da rua e de uma morte certa, e zelaste hora a hora, como uma mãe galinha, nem eles têm uma pinga de beleza para amostra.
Que te orientas, que acabas sempre por te orientar. Nem que seja à custa de o repetires em voz alta tantas vezes.
A poesia não morreu.

sexta-feira, junho 23, 2006

Novidade

A imagem não é de hoje, mas a novidade é fresquinha, acaba de ser pescada das águas fundas do mar - ainda esbraceja ofegante, com pressa de voltar ao sítio de onde a fui arrancar com um anzol improvisado com isco feito com uma pipoca de caramelo, mas eu sou a menina que tem pena dos peixes que os homens do mar deixam para trás, na areia molhada, porque não têm valor comercial na lota, sou a que os atira de volta para o mar, a que chora quando eles regressam a beira-mar porque já não têm forças para voltar para casa, a novidade é fresquinha mas eu escrevo-a aqui, bem depressa, para não a aleijar, para ela regressar em paz à sua pacata vidinha no cardume de novidades felizes.
E se, para as bandas de Santa Marta, um menino loirinho, agora com uma tez muito mais saudável do sol de São Miguel, trabalha para a engorda e, não tarda, até já pode ser dador de sangue, uma menina moreninha, que nem se atreve a enfrentar o dito aparelhómetro de tortura, com medo de ter atingido um patamar que apenas contemplou nos seus piores pesadelos, repara ao espelho – ao espelho que, antigamente, era a única companhia que tinha nas noites sem fim –, que as olheiras não desapareceram ainda, nem vão desaparecer nunca, mas repara, ao escovar os cabelos tingidos de castanho-escuro, com as brancas disfarçadas por um pincel grosseiro, mas que não teve que aleijar nenhuma marta para ser feito, que hoje não finge ser mais bonita do que é, debaixo de bases e correctores de olheiras, e de blushes que, antigamente, lhe davam alguma cor, cor de mais ou menos viva, tudo a fingir claro, estava viva pela sua metade loira, e a camuflagem, a pintura de guerra, era apenas para os que não sabem enxergar para lá do que se lhes apresenta à frente dos olhos, pensarem que estava tudo bem e que a vida corria às mil maravilhas (não desconfiaram nunca, sequer, que as pestanas empapadas em rímel preto era um truque para não chorar).
Agora, a menina não precisa de pintar os olhos de tons pastel, ou riscar uma linha preta por cima da terra que ainda está muito húmida e empapada, de onde nascem campos de pestanas. E também não se sente obrigada a fingir que tem um metro e setenta para se sentir importante, para a verem no meio da maralha já não precisa de praticar equilibrismos complexos em cima de saltos finos por tapetes de cubos de vidraço das calçadas, um metro e sessenta (no bilhete de identidade diz 1,63, mas foi ela que convenceu o funcionário a dar-lhe mais uns centímetros, quando foi renovar o BI aos 16 anos, e nesse dia tinha uns brincos muito bonitos, ainda sobrevive um num cofre que veio de avião para si das bandas de Macau) é vulgar e banal, mas ela sempre foi especial, ela vai ser sempre especial apesar do metro e sessenta e do emprego sem perspectivas de de glória, mas vai ser sempre a menina das ideias estrambólicas que nunca tem coragem de pôr em prática, vai estar sempre a criar imagens feéricas que lhe saem da ponta dos dedos.
Anda de sandálias rasas agora, todos os dias, baratas, compradas num hipermercado do calçado, as mesmas que, há quase duas semanas, galgaram a Lagoa do Fogo numa empreitada que nunca pensou ser capaz de levar a bom porto com os joelhos deficientes que lhe calharam nesta vida. Anda de sandálias e vai segura, tão segura como nunca esteve na vida.

quarta-feira, junho 21, 2006

Coisas extraordinárias na ilha do arcanjo

E na ilha do arcanjo aconteceram coisas extraordinárias, coisas extraordinárias que não incluem fenómenos sísmicos e lavas de vulcões hibernados, que às vezes ressonam um pouco mais alto e fazem activar os planos mais ou menos toscos de evacuação da ilha (eu tenho sempre medo de levar na mala essa propensão genética, que me corre nas veias, de atrair chuvas de sapos e pragas de borboletas nocturnas).
A lagoa do Congro (o Congro é um peixe, um peixe grandalhão, da parente dos atuns, e eu comi um na Ribeira Grande, e lembrei-me da minha avó a dançar comigo o “ponha aqui o seu pezinho, devagar, devagarinho, se for à Ribeira Grande”) lá ficou quietinha, escondida pelas voltas e voltas de um caminho privado que não está assinalado no mapa, ou na estrada de terra batida para onde aponta uma placa castanha enorme, e esta semana que passou, tenho a certeza que ninguém lá foi, nem os meninos que têm que ir fazer o controle sísmico da lagoa. Aliás, nem nós ousamos descer, era tarde, eram duas horas para descer e subir, e as pernas já traziam a escalada à lagoa do Fogo, vimo-la apenas de cima, foi pena, foi sim, mas o João é da terra, e tem faro e um sentido de orientação notável, descobriu um prado ocupado por três vacas leiteiras muito jovens, que mal se tinham nas patas, e eu, na próxima vida, nem me importava de ser aquelas três vacas que espreitam a lagoa do Congro todos os dias, do cimo de um prado verde sem fim, e as águas da pequena lagoa não se tornaram sulfúricas, não cheirou a enxofre, excepto nas Furnas, e o idiota do turista que meteu a mão na água borbulhante da caldeira não ficou com queimaduras de terceiro grau, e nem a imponente e mágica Lago do Fogo se zangou por termos tido a audácia de descer a pique até lá abaixo, num dia de nevoeiro denso. Sim, fiz coisas que o eriçariam os cabelos do meu ortopedista saído de um casting do ER com os seus olhos azuis e barba de três dias, pulei de pedra vulcânica em pedra vulcânica na Ferraria, sonhei reabilitar as suas termas emparedadas, e fazer a subida íngreme e com curvas de cotovelo todos os dias, ou exportar hortênsias e agapantos para todo o mundo a partir da Achadinha. Aconteceram coisas notáveis, ai se aconteceram, o João regressou a São Miguel dez anos depois de lá ter saído, o João engordou quatro quilos e já tem quase peso de gente, o João comprou dois pares de calças e quatro ou cinco tee-shirts.

segunda-feira, junho 19, 2006

Enquanto as palavras borbulham numa caldeira das Furnas

Fica um postal da lagoa das sete cidades. Uma é verde outra é azul. Uma foi chorada por uma princesa que foi apartada do seu amor e que tinha olhos azuis (eu não sei se a lenda é assim, mas assumo que seja, porque as mulheres choram sempre mais e a lagoa azul é maior que a verde), a outra, por um camponês de olhos verdes.
Incrivel e subitamente, este blogue passou a acreditar que há bonitas histórias de amor que não têm que acabar mal.

A pedido de muitos leitores, a música calou-se.

domingo, junho 18, 2006

Quando eu morrer


Enterrem-me numa cama de flores, de plástico, feéricas, misturadas com hortênsias e malmequeres, no fim do mundo, onde Judas perdeu as botas e o cú: no cemitério do Faial da Terra.

Amanhã dou-vos conta da lista extensa, enorme, interminável, das minhas próximas reencarnações, são todas na ilha do arcanjo, onde Deus passa férias, levando consigo um batalhão de súbditos alados que fizeram sempre os trabalhos de casa e foram dormir a horas e comeram tudo ao jantar sem refilar (Deus leva também consigo os querubins, e só assim se explicam os jardins a cada centímetro quadrado). Submeti o requerimento, preenchendo todos os formulários em duplicado, foi tudo certinho em correio azul, em papel de 25 linhas, dactilografado, estampado com selo branco no fim, e agora estou em lista de espera, mas nesta vida, é tentador, é tentador demais, e até eu ficava por lá a plantar batatas, ou a tratar de um jardim com vista para o Atlântico ou para uma das lagoas que há aos pontapés, ou, pior, a escrever notícias sem interesse e cheias de gralhas no Açoriano Oriental, com cigarros Além Mar extintos no cinzeiro, uns atrás dos outros.

domingo, junho 11, 2006

Voltamos após um breve interlúdio musical


Este blogue foi de férias para São Miguel. Regressa daqui a oito dias, talvez antes, o mac branquinho vai andar de avião pela segunda vez na sua vida, quem sabe se não haverá post micaelense?
Até ao meu regresso, encham as caixas de comentários, porque, já sabem como é, se não sabem eu volto a contar este segredo: eu fico triste sempre que acordo e não tenho nem uma mensagem no Gmail (foi o caso deste terrível sábado).

Foto: Ponta da Madrugada, Jan Erik Johnsen (roubada do Pbase)

sexta-feira, junho 09, 2006

O mistério das orquídeas amputadas

E, da mesma maneira que escrevo posts em sonhos, a botânica também me vem visitar ao vale dos lençóis.
Preocupada com o mistério da floração amputada da orquídea branca que está à janela (Phalaenopsis de sua graça), cujos quatro botões abriram sem o labelo, sento-me na tábua do chão que está meia podre mas disfarçada por duas camadas de verniz semi-brilhante, e fico parva e em silêncio a olhar para as flores. Três botões abertos. Três pétalas muito brancas em cada um. Nada do meio. Este meio aqui da foto. Devia ter no chão do quarto, junto à janela, um cacho de flores idêntico a este. Igualzinho a este.
Dou festas às folhas e aos botões minúsculos, do tamanho de um feijão-frade, da orquídea rosa que está no vaso ao lado das estranhas flores brancas – esta é a planta que, em tempos me salvou, e que, entretanto, decidiu amuar e ficar dois anos sem uma flor cor-de-rosa para amostra – e, desconfio, irá abrir o primeiro botão quando eu estiver em São Miguel. Só para me chatear.
As orquídeas, descubro agora, no Google, seis anos após ter começado a coleccioná-las, são flores hermafroditas, portanto, não tenho uma orquídea gay (menos mal), estão apenas incompletas, tipo fenómeno do Entroncamento, suponho que as orquídeas de Chernobyl também hão-de ser estranhas e amputadas, às minhas falta-lhes a parte mais bonita, mas ainda assim, agradeço, como sempre, a sua vinda, ainda que com três meses de atraso face ao calendário que me habituaram a fazer a sua visita anual.
Foi em sonhos que me veio o problema. Quem me trata das plantas que estão à janela durante a estada nos Açores? As plantas são como os leitores do blogue. Como filhos. Ainda bem que este cérebro não pára (depois, é claro, com tanta coisa na cabeça, esqueço-me dos almoços combinados com os amigos, e de tomar os medicamentos, e de marcar os exames à tiróide e, também, a fisioterapia que sei que não vai valer de nada, que é o meu destino ficar com duas costurinhas de vinte centímetros em cada joelho). E ainda bem que o ex-marido é um santo que, para além de ser babysitter ainda arranjará tempo para tratar da estufa de Santa Marta durante a minha ausência.
Para além de batatas, quero trazer flores dos Açores, ocorre-me também agora.

Este post não tem muito nexo. O jornal, assim como o país, parou por causa do Mundial, ainda há pouco falava ao telefone com uma fonte, uma historieta de barracas e esquerdalhos, e direito constitucional à habitação (será que poderei invocar o artigo 65º da CRP ao Barclays, quando chego ao dia 22 sem um cêntimo?), e a meio da conversa tive que levar com um GOOOOLOOOOOO!!!!! cantado em coro pela redacção que se concentrou em frente a dois televisores (um dos quais, aqui mesmo ao meu lado).

Ah, a quem possa interessar, sim, o encontro com a sogra correu lindamente. Uma pequeníssima urticária apoderou-se de mim, na mão direita, ao estacionar o carro, mas diluiu-se na epiderme quando entrava no número 56. Juro que não diluí três Valdisperts no biberão da minha filha, mas ela quis subir sozinha os 130 degraus, e só disse dois ou três nãos, beijou duas vezes o pelo lustroso do gato laranja (o único que teve direito a essa honra), andou a correr civilizadamente pelo corredor de treze metros de comprimento, comeu o jantarinho todo, tirou braços e cabeças a bonequinhos da Lego em conluio com a senhora sogrinha, deitou-se no sofá com o meu cunhadinho pré-adolescente e, para terminar em grande, ainda deu um concerto privado de piano. O seu primeiro. Em casa da Cecília. Muito apropriado.

Para a visitante que anda sempre a coscuvilhar os arquivos de Abril


[Eu ainda vejo tudo]

quinta-feira, junho 08, 2006

Em contagem decrescente para o post "bestial" e para o jantar com a sogra

Podia ter sido pior, penso eu, neste preciso momento, ao abrir o dashboard e preparar os três mil e picos caracteres que passei a escrever de três em três dias: a visita 66.665+1 poderia ter ocorrido no dia 6/6/06, no post 665+1.

Mas ainda faltam dezassete textos para esse evento e à cadência de caracol que agora regurgito textos, lá para o mês que vem há-de chegar o post "bestial" (agora, como ando entretida, já não escrevo posts na cabeça a conduzir ou a andar pelas pedras na calçada. Curiosamente, inaugurei uma nova modalidade de escrita mental: em sonhos. Há duas noites escrevi posts belíssimos em sonhos e eram todos sobre os Açores. Eu ainda não vou contei, mas no Domingo parto para São Miguel, para a primeira lua-de-mel). Entretanto e até lá, apenas um desejo: que com ele não venha nenhuma gastroenterite, e hoje, que vou jantar a casa da senhora dona sogra, o meu maior receio é, de facto, vomitar o jantar ou ficar verde de enjoo.

Mas nem dei pela contagem decrescente do post da besta. Ando alheada e, ultimamente, e porque estou amantizada com o senhor revisor, não venho sequer fazer uma visita de médico ao agonizante dashboard: escrevo e publico os textos a partir do Word, porque o dicionário da aplicaçãozita do senhor Gates assinala às ondinhas encarnadas as gralhas e os tropeções que dou na língua do Camões e, assim, com menos correcções dele a caneta encarnada, dá-me para picotar, menos vezes por semana, os pulsos e a auto estima fica menos abalada (e quase me convenço que não sou analfabeta de todo).
Coisas do arco-da-velha continuam a acontecer.
A Magui continua a não reconhecer o senhor 50.000, passa por ele como se fosse transparente e eu fico piursa com a má educação da senhora mãezinha. "Não conheço e não quero conhecer, és uma pinga-amor, tal e qual como o teu pai. Apaixonas-te e desapaixonas-te a velocidade da luz e depois eu é que sofro, porque perco filhos. Foi assim com o Carlos e assim com o Pedro", diz ela, de uma boca sem nenhum dente e, invariavelmente, eu desato aos gritos e chamo-lhe mal-educada e lembro-lhe que namorei particamente cinco anos com esses filhos que ela perdeu, e que na realidade não perdeu, porque o Pedro é o meu melhor amigo e continua a lá ir a casa, a telefonar-lhe para saber como é que se faz favas cozidas, e a chamar-lhe mãezinha (apesar de ela não merecer, porque, às vezes, é tão mal educada com ele, como é com o senhor meu noivo). Estranhamente, o senhor meu "husband to be" já conheceu o Zé Ralha e todo o braço paterno da família siciliana. O Zé portou-se bem, não fez nenhum filme, não houve nenhum drama, até me ajudou brilhantemente numa gaffe que cometi em frente à sua ... não sei o que ela é... companheira, talvez, mas a mim vem-me sempre a outra história à memória, uma sobre a sua performance sexual, que está algures nos arquivos e que não irei reproduzir sob pena de vir a ser processada até ao tutano, eu disse à carolina para ela riscar à vontade a revista Xis, que ninguém lia aquela merda, e a pobre senhora, que até se esforça por ser simpática, diz, a medo: "Eu gosto". E eu não tive um ataque de riso histérico, porque paizinho veio em meu auxílio e retorquiu: "Eu achava que só a .... lia a Xis, que o PÚBLICO não acabava com a revista por causa da ..., mas afinal há duas pessoas que a lêem. Uma amiga da ... também lê".

Mas tirando este pequenito fait divers, tenho quase a certeza que o senhor 50.000 deve achar que todas as histórias que eu escrevi neste blogue sobre o progenitor são fruto de uma imaginação retorcida, ou ditadas ao ouvido esquerdo pelas vozes que não se calam dentro da minha cabeça.
Deixei o Zé Ralha brincar aos avozinhos com a Carolina e, num acesso de quase loucura, até o deixei passear com ela, sozinhos, sem supervisão de pessoas adultas, mesmo sabendo que teriam que atravessar a ponte de um pequeno lago da quintarola do avó Ralha. Tenho a certeza que nessa meia hora, ele a baptizou e armou cavaleira com água porca do charco lá de cima, que tem peixes laranja enormes, mas que eu não consegui descobrir no meio de bolas de vidro coloridas plantadas no chão, e ainda bem que a criança tem dois anos e meio e não se lembrará de nada (a mim, ensinou-me que as princesas nunca se ajoelham com os dois joelhos por terra, apenas com um, e depois desembainhou a réplica da Excalibur e armou-me cavaleira; aos manos, garantem-me eles, que ele ainda lhes deu uma carolada, uma espécie de baptismo de cavaleiros, que doeu à brava, o que só vem confirmar a teoria que nós, os filhos do casamento, sempre fomos mais bem tratados naquela casa).
O senhor 50.000 lá esteve caladinho, e o Leonardo que não sabia dessa sua faceta reservada, e devia achar impossível eu namorar com alguém parco em palavras, ainda me chamou à parte e perguntou: "É preciso chamar o João à conversa?". "Não, ele é mesmo assim, calado. Não te preocupes", respondi eu, com uma travessa de despojos mortais de sardinhas assadas na mão. Felizmente, nem avó, nem progenitor, nem madrasta arraçada de ogre, nem governanta, deu para perguntar onde nos conhecemos, eles não fazem ideia que eu tenho um blogue, mas há Internet no Robalo, logo iriam lá espreitar e creio que abriria as hostilidades novamente se lessem alguns dos nacos de prosa que para aí estão nos arquivos.
E para parentes googalizadores, basta-me a senhora sogrinha, que deu para pesquisar o meu nome e, depois, perguntou se eu era jornalista ou engenheira do ambiente (era isto?). Estranho não ter vindo cá parar (acabo de fazer uma googalização sem aspas e a primeira ocorrência é o (T)ralha), se calhar veio e faz parte da imensa massa silenciosa de leitores (depois de acabar este texto, que não faço ideia onde vai parar - seguramente já tem mais de três mil caracteres). Mas, amor com amor se paga. No dia em que descobri, com a madrinha T, que o senhor 50.000 vivia no número 56 de uma rua onde passa o eléctrico, conquista que soube a scones com manteiga e doce de morango (não soube a ginjas porque eu não acho grande piada às ginjas), porque apenas sabíamos que ele morava algures com vista para a Estrela e para o Castelo de São Jorge, num sexto andar sem elevador, contando 130 degraus até lá chegar (ai, que hoje vou ter que passar por essa provação), nessa altura eu ainda tratava cordialmente o senhor meu noivo por você, e estava crente que, por ser revisor tipográfico, teria que ter no mínimo 120 anos, eu também liguei para o 118, para confirmar se ali viveria de facto o senhor que me acompanhava à janela em noites terríveis de insónias que nunca mais acabavam. E foi então, na esplanada poluída e barulhenta de um café chamado 1500, a partilhar uma torrada e meia de leite com a miss T, que eu ouvi pela primeira o nome da senhora sogrinha: Cecília. Santa padroeira da música. Vai correr tudo bem esta noite. Não vou vomitar. Não vou ficar enjoada. O pequeno diabrete loiro não vai partir nada. Não vai fazer birras de meia noite ou puxar o rabo ao gato Post it. Sim?

[seis mil caracteres! UAU! Back on track]

quarta-feira, junho 07, 2006

Durmo com a besta

Não teve coragem de o confessar logo pela manhã.
Inadvertidamente, o "rato" do portátil que me acompanhou em grandes aventuras e desventuras, o mesmo computador branquinho onde o "conheci" mês e picos antes do encontro debaixo da roseira do jardim da Estrela, fez três pageloads no Tralha. E ele foi a visita 66665+1.
Não teve coragem de mo dizer. Sabe como eu ligo aos números e como vejo sinais e augúrios em tudo o que se mexe.
Não estava, também, à espera que eu escrevesse sobre o assunto. Quando viu o anterior post desembestado publicado, apressou-se a confessar que era a besta. Suei. Arrepiei-me.
Durmo com a besta.
A confirmar que, de facto, andava o Diabo à espreita neste blogue, poucas horas depois de o contador ter registado essa visita temida, estava eu a vomitar no primeiro piso de um jornal de referência. 4500 caracteres escritos entre quatro visitas à casa-de-banho. Não sei se a indisposição foi obra da besta, ou mérito de discurso sem qualificação possível do Fernando Seara, a propósito do dia do Ambiente. Ou se calhar, foi do Cacém. Esse paraíso de marquises onde tive que me deslocar num táxi com ar condicionado para ouvir o senhor presidente. De qualquer forma, consegui nem citar o senhor na peça, e se telefonemas de protesto tivessem chovido da câmara de Sintra, o chefe poderia sempre dizer: "bem, meus senhores, ela literalmente vomitou o texto". É verdade. E não me pagam o suficiente para escrever textos com 38 graus de febre e a vomitar as tripas. Tenho que aprender. Depois, ao fim do ano, vem a avaliação de 90 por cento e, aí, apercebo-me que de nada valeu a pena.
Durmo com a besta. Mas a besta tratou da minha filha enquanto eu delirava com um febrão que estalou o termómetro até aos 39 graus. Mas a besta deu-lhe o jantar, mudou-lhe a fralda, sentou-se a seu lado a ver os muito batidos e gastos DVD's do Noddy.
É um duro golpe. O senhor 50.000 e 66.000 ser, também o 66665+1. Mas penso que alguém veio cá a casa e fez um exorcismo.

segunda-feira, junho 05, 2006

A besta adiantou-se

Este blogue deixou-se estar quietinho, encolhido sobre si mesmo, no fim-de-semana, para ver se isto passava depressa sem deixar marcas de destruição atrás de si. É que a perspectiva de a visita 66.666 ocorrer no dia 6/6/06 iriçava-me os pelos e, apesar de não começar a cacarejar no meio da rua, a pele dos meus braços ficava idêntica à das galinhas, sempre que esse pensamento fazia cócegas na parte de trás do cucuruto desta perturbada mente. Aliás, há um post, algures, neste extenso mar negro de caracteres sobre a superstição do número 665+1 (procurem se quiserem, este blogue está há 34 noites a cumprir serviços mínimos).
Há gente muito má na blogoesfera. Tenho a certeza que por aqui passam uma bela mão cheia de anónimos que visitam esta tralha com alta fidelidade e que só pisam os canteiros deste quintal por maldade, para estragar (e não, "eu", não falo de ti; a ti acho-te piada). Não vêm à procura de beleza - a beleza dentro da neurose não deixa de ser beleza -, vêm e vêem tudo, de uma ponta à outra, apenas para poderem falar mal, para me foderem a já de si fodida carreira profissional (não preciso de ajuda, caros) e, se calhar, para utilizarem material aqui escrito em Tribunal (há um paquiderme que utilizou um email inofensivo que continha uma ecografia das 11 semanas da minha filha no Tribunal da Relação de Lisboa, eu já vi tudo, eu já acredito em tudo.)
A besta adiantou-se e eu nem vou abrir o Statcounter. O senhor 50.000, que ontem esteve a uma visita de ser o 66.000, alertou-me às onze e poucos da manhã que já faltava pouco para a besta varrer o meu quintal. Menos mal. A besta não veio no dia da besta.
Vá de retro, Satanás!

sábado, junho 03, 2006

Limpezas nos domínios da Google

Apaguei, da conta do Gmail, do supermail que me comanda a vida, duas histórias de amor que deram para o torto e que, por isso, fizeram correr rios de caracteres neste blogue. À uma da manhã, do Marquês de Pombal ouve-se o irritante Rock in Rio, tão camuflado de boas intenções e de blá, blá, blá por um mundo melhor, e eu fico com pena da minha mãe, que mora muito perto do prolongamento da Estados Unidos para Chelas e que já dorme pouco todas as noites, com uma coluna vertebral que a castiga implacavelmente.
E como estou cheia de coragem, e como acabei agora mesmo de escrever um destaque de duas páginas que irá sair na edição de Domingo do diário de referência, estou mesmo cheia de genica, e perdido por cem, perdido por mil e apaguei, também, os chats esquizofrénicos de há dois anos atrás, quando o Gmail não tinha Talk mas nós já o usávamos com esse propósito, a uma cadência alucinante, e em horário de expediente.
Apaguei muita coisa. Já não me faz falta e mail dos mail não estica, e está gordo que nem um texugo, cheinho, a rebentar as costuras (e se a Google num golpe de filha putice decidisse cobrar o serviço eu pagaria sem hesitar; não sei viver sem o raio do webmail) . Apaguei fragmentos de uma amizade que ainda me faz acelerar a pulsação (um dos textos do tal destaque escrito em frente à parede laranja de Santa Marta é para ele), mas que sei, porque já me conformei, que não retorna nunca mais.
Feitas as contas, é mesmo assim, não há que ter medo de admitir a ninharia, estas histórias, estas pessoas, por quem eu sofri tanto, a quem eu amei tanto, só representam dois por cento dos quase dois gigas da vida que guardo no servidor da Google.

quinta-feira, junho 01, 2006

Post a três tempos mais um - a filha da Corina

O post vai passar a ser a quatro tempos, e a minha produtividade neste blogue não aumentou por eu ter feito o que não devia, mesmo com os avanços na medicina blogoesférica: partir as narrativas que nascem na minha cabeça agarradas umas às outras, como gémeas siamesas, impossíveis de separar sem pôr em causa a vida de pelo menos uma.
A filha da Corina não era para aqui chamada, francamente, eu nem sei como ela me chegou, penso que por andar a pensar muito em casamentos, no meu casamento no jardim da Estrela, mas, segundo o planeado há dois dias, eu devia estar a escrever sobre iscas, e sobre a pedra que a minha mãe às vezes parece que traz no lugar do coração (a Magui devia ser operada à coluna vertebral, disse-lhe um cirurgião que tem um apelido muito doce - "Passarinho" -; ela vive num mundo em que todos os dias são um martírio de dor por causa daquele pilar frágil que a sustenta, mas optou por deixar o cartaz a dizer "frágil" e não mexer em nada, ela tem é medo, são 14 horas adormecida, pulmões para um lado, placas de titânio para o outro, mas nunca o admitirá: para nós, para os que se faz passar por mulher com poderes sobrenaturais, a Magui diz que se recusa ir à faca porque iria ficar com duas enormes cicatrizes, nas costas e no abdómen, num corpo muito branco e imaculado de pontos cirúrgicos. Não sei como ela fez a substituição do órgão vital por uma pedra de granito, eu realmente não vejo costuras, mas às vezes sim, sou capaz de jurar que o coração que já ameaçou parar não sei quantas vezes ficou algures pelo caminho de uma vida que não foi o que devia ter sido).

É incrível como passam tantas pessoas pela nossa vida que apagamos com os anos. Como a filha da Corina. Como a própria Corina, senhora roliça e cheia de couperose nas bochechas, de quem me lembro apenas por ter um nome impensável (nunca me esquecerei, também, da minha vizinha Anália).
Não foi assim há tanto tempo. Há menos de dez anos e digo isto com certeza, porque sei o que trazia vestido, tenho saudades desse vestido que comprei no meu 18º aniversário. E nessa manhã, o São João da Pesqueira livrou-me de uma morte estúpida dentro de uma banheira demasiado nova e escorregadia.
O pai da dona Cândida, que em tempos foi minha sogra, ou projecto de sogra, e que é a irmã mais velha da Corina, tinha ordens, há cinquenta e muitos anos atrás, para ir registar, a São João da Pesqueira, a mais nova das suas filhas com a graça de Maria Albertina. Como na canção. Sem desvios e sem estadas prolongadas na taberna, disse-lhe a mulher que sempre vestiu as calças naquela casa e lá está, cujo nome não me recordo, apesar de ter passado consigo tardes imensas de um Verão no corredor da morte de Oncologia do Santa Maria (era uma boa mulher, gostava muito dela, e estou mesmo triste de não me lembrar o seu nome e apenas os seus bigodes cinzentos).
O caminho entre Mogadouro (seria Mogadouro?) e a Pesqueira era longo, não havia carros e a carroça era para os ricos. O rechonchudo senhor contava sempre esta história. Que no caminho passou por uma procissão que levava a braços uma imagem de Santa Corina (vou googalizar a ver se existe; não encontrei). Lá em casa, uma casa de xisto muito bonita, com camas de ferro com florões pintados à mão, a Maria Albertina dormia sossegada no berço, sem saber que poucas horas depois se chamaria Corina.
A mulher nunca perdoou ao marido a desfeita e o bafo a bagaço barato com que chegou a casa. A filha também não.
Lembro-me pouco da filha da Corina. Tinha um cabelo enorme entrançado e um peito copa C acima do tamanho 40. Não tinha as bochechas cor-de-rosa como a mãe, mas não era fininha como o pai, o pai cujo sonho era comprar uma carrinha Bedford e cuja a aparência física o transportava para o século XIX, em plena revolução Industrial.
A filha da Corina quis casar um dia. Na aldeia não havia muito mais que fazer a não ser casar. A Corina comprou-lhe um trem da Ideia Casa por 80 contos. Na manhã da boda, eu maquilhei a filha da Corina. Ela nunca tinha posto base na sua pele, muito menos uma sombra. Eram coisas da cidade grande. Fiz um bom trabalho, numa paleta de rosada: a noiva ia linda, com o buço depilado e com pequenas pérolas espetadas no cabelo bonito.
Eu dancei música pimba num barracão de tijolo colado com cimento, no copo de água do casamento da filha da Corina, que durou pouco mais de seis meses. A filha da Corina batia no marido. Ele saiu de casa.
É isto que guardo da filha da Corina, que me assaltou o espírito esta manhã, deixando-me imensas dúvidas onde farei eu o meu copo de água e quem me maquilhará...