terça-feira, janeiro 29, 2008

O portageiro feliz

A Teresa diz que não conhece mais ninguém assim, que se dê ao trabalho, para quê, que bem há-de vir ao mundo, nenhum, nenhum mesmo, muitas vezes é assim é tão raro, só que há mais gente como eu, a Magui vê trevos de quadro folhas do parapeito da janela do seu segundo andar, e eu vejo histórias que me atropelam porque precisam de ser contadas, cada um com o seu fardo, cada qual com a sua sina.

Mas se nada se ganha, também não se perde coisa alguma, não custa muito, um minuto basta para que o mundo dê um soluço (e geralmente alguém tropeça nesse instante). E eu aprendi, eu sei lá bem com quem é que aprendi isto, que devo parar, para recuperar o fôlego, para esticar as pernas e imediatamente a seguir ouvir o estalido do meu joelho doente, devo impor-me uma pausa e pedir ao coração que não me saia da boca para fora, eu devo parar. E às vezes, sou travada, não sou eu que decido parar – às vezes paro para memorizar as janelas do 120 da Duque de Loulé e sou abalroada por gente com pressa de apanhar o 22 –, mas consigo congelar o curso natural das coisas, nesse instante não se ouve senão o ruído fininho do silêncio, apesar de os escapes, esses, continuam a emitir mais CO2 do que o estilete de papel que levo à boca, e que me queima os lábios, e nisto vem um ganido do violino desafinado à saída do túnel da República, e o mais incrível de tudo é o sorriso dourado, doce, eu revejo-me naquele sorriso, do homem que pede esmola à chuva por entre a fila de para-choques sujos.

O melhor dos meus dias não tem a ver com os sapatos caros que compro quando estou triste, esvaziada, e que depois me torturam o calcanhar, mas que me fazem a coxa e a barriga da perna perfeitas, deliciosas, por vezes, não é mais do que isto, por acaso, às vezes estou atenta no instante em que coisas raras acontecem (e a minha mãe coloca mais um trevo de quatro dentro da página de algum livro da biblioteca, ao lado dos olhos atentos de vidro das bonecas com pele de porcelana), e raios me partam, às vezes até me passa pela cabeça tirar o estilete de papel, e ter lábios perfeitos, sem quimaduras.

A Teresa diz que não conhece mais ninguém assim. Que fale com os portageiros. Mas quem é que se vai dar ao trabalho (e eu sempre com esta – é a pior profissão do mundo), até o motor do vidro eléctrico resmunga a cada área concessionada, desce a contragosto, e o Multijet ronrona lá à frente, dou-lhe uns segundos de descanso, e é por estas e por outras, que, por mais jeito que dê, que mais jeito que viesse a dar, eu nunca vou ter colada uma caixa da Via Verde atrás do espelho retrovisor, eu estico o braço e sai pela borda fora o cartão da águia azul, entre o polegar e o indicador, isto é maquinal, não dura mais que uns segundos, mas o que é que custa – às vezes custa, quando a alma dói –, um sorriso, olá boa tarde, passou bem? (e por vezes sinto-me um operador de call center, mas nunca me sai forçado, e sorrio à espera do que está para vir).

Há dias, raros, rarefeitos, incríveis, em que o portageiro sorri também. E diz mais do que um murmúrio inaudível que deveria soar qualquer coisa como boa viagem. E quando isto acontece, continuamos a viagem, e ela é mesmo mais prazeirosa, e pisamos o tabuleiro metálico da ponte sem que nos importe o zumbido do vento que vem dos segredos do Tejo; quando assim é, seguimos um pouco mais felizes porque o portageiro também o é.

No tabuleiro da Ponte sobre o Tejo, na cabine 14, tem que se pisar o Bus, seguir sempre pelo Bus, o portageiro feliz ganha a sua vida, fechado num aquário de um metro quadrado, e é mais feliz do que os escravos que me abalroam quando algo me obriga a parar, é mais feliz porque sim, sem dinheiro amealhado em horas e pestanas incineradas em frente a um monitor, sem casas espaçosas, postos de trabalho ergonómicos, sem qualquer motor de alta cilindrada estacionado na rua onde de certeza brotam trevos de quatro folhas.

Olá, boa noite, como está? (os olhos ainda marejados pelas árvores arrancadas ao solo para passar o metro da margem sul do Tejo, se calhar um suspiro por ele ser a primeira visão depois da lenha cortada para cima dos carris).

Há tanto tempo que não passava por aqui, está tudo bem consigo? (espreita para o banco de trás, a Carolina dorme). A menina está tão crescida. É linda…

Ele não sabe que eu me encostei à faixa da direita de propósito, que arrisquei, um tiro no escuro (a minha mãe encontrou mais um trevo, à noite), pisei a palavra Bus durante mil metros, porque a história do portageiro feliz tinha que ser contada.

Ele não sabe que eu acredito que ele saiba perfeitamente quem sou eu, apesar de só lhe ter esticado o cartão da águia azul três vezes na cabine 14 da Ponte sobre o Tejo.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Deusdado


Si Deus Nobiscum quis contra nos, se Deus está comigo quem está contra mim,

[Tenho quase a certeza, descambou, até pode ser que não, mas tenho quase a certeza, descambou]

debaixo da Ginkgo, porquê debaixo Ginkgo, logo a Ginkgo, na cama, depois do fim, sem perceber porque é que Deus nos abandonou, porque é que perdi o nosso filho debaixo da Ginkgo, porquê debaixo da Ginkgo, aquela do nosso jardim, justamente quando ela dourava o chão de Lisboa, e eu à cata da folha mais pequena sem sequer perceber que o estava a perder debaixo da copa da árvore sagrada que fazia sombra aos dinossauros à milhões de anos atrás, à procura da folha da sorte para ganharmos o Euromilhões e podermos ter a sala grande com três janelas duplas do projecto da Teresa, se ganhássemos o Euromilhões eu continuava a querer viver na Almirante Reis, com vista para o Castelo e para o Intendente,

[Depois de levantar os olhos do relatório da urgência, viu-me de olhos raiados, narinas muito abertas, jugular a querer rebentar no pescoço, quero deixar de respirar também, se eu pudesse ter dito alguma era quero deixar de respirar, faz barulho demais se eu respirar, 30 segundos sem respirar, deixar ribombar que já descambou e enquanto isso não respiro, maxilares cerrados, pescoço esticado, nariz empinado, pose de Estado, punho cerrado e unhas cravadas na carne dentro do bolso do casaco que tem o forro descosido, depois de me ver assim, voltou ao relatório, não para escrever que tinha descambado, só para ler, e pela primeira soube que o meu nome era Diana, Diana, repetiu Diana vezes de mais, só se lembrou que era importante saber que o meu nome era Diana antes de me dizer que o meu filho tinha descambado]

eu que gosto tanto das Ginkgos, e agora como vai ser a vida sem as Ginkgos douradas no Inverno, na Almirante Reis não há Ginkgos, só tílias, e lódãos, melhor assim, antes disto, um silêncio absoluto, horas, instantes, preces, todas as promessas foram feitas, a todos os Santos, foram invocados todos os Orixás, se Deus está comigo não me vai fazer isto, porque é que ele nos havia de abandonar,

[ela está muito nervosa, pelo amor de Deus tenha cuidado a tirar-lhe o sangue, porque ela está muito nervosa, e eu muda, sem respirar, de cabeça encostada à anca da enfermeira que chorou pelo meu silêncio, pelos meus olhos raiados, pelo meu pescoço esticado, a enfermeira que prendeu no quadro de cortiça da urgência, com pionaises dourados, o desenho que a Carolina fez na sala de espera da urgência]

só um ganido de dor por nunca mais poder contar com as Ginkgos para nada, nunca mais vou poder gostar das Ginkgos, lamento, não é possível, e se Deus está connosco quem é que tem a ousadia de estar contra nós, fico-me pelos eucaliptos, eu sempre gostei mais de eucaliptos, e de pombos, eu estava a perder o nosso filho debaixo da Ginkgo e as pombas do nosso jardim não me vieram à mão, Deus está comigo, deu-me todos os sinais, não, sinais não, são prenúncios, quando é um aviso de perigo é prenúncio, as pombas que não vieram ter comigo, e o nevoeiro gelado que caiu sobre nós, e logo a seguir a febre da Carolina, e lá em casa, sem eu saber ainda, a rosa de Inverno que perdeu todas as pétalas sem qualquer explicação,

[mas o título do post era Esperança, e Deus está sempre comigo de mãos dadas, não há plafond de milagres por ano, pois não, há milagres sempre que é preciso, eu troco o meu cabelo por este filho, ela está muito nervosa, tirem o sangue com cuidado, não a magoem, e se ele ainda cá estiver eu troco o meu cabelo por este filho, chamo-lhe Deusdado ou Teófilo, a seringa espetada no meu braço, o torniquete de borracha e o meu braço a parecer uma perna gorda de recém-nascido, cabeça encostada à anca da enfermeira que chorava baixinho, e de repente, a Deodata, e aí sim era um sinal – estás aí, Deus? –, um sinal e não um prenúncio, a Deodata, de cabelos vermelhos até ao rabo, vermelhos sangue e a raiz do cabelo muito branca, a Deodata que fez nascer a minha primeira filha, que quando ela sufocava enredada no cordão umbilical e fazia disparar todos os alarmes da maquinaria a que eu estava ligada, colocou aqueles cabelos vermelhos ao lado da minha almofada, enquanto corria para o elevador, e cantava para mim, a Deodata a garantir-me que estava tudo bem, ia ficar tudo bem – estás aí, Deus, consegues ouvir-me?]

na pala do sol do Idea, onde todos os dias confirmo se trago remelas coladas às pestanas, se o rímel não borrou a pálpebra, e a folha da sorte, amarela fluorescente, minúscula, em forma de borboleta, de leque, não sei, espalmada, não sei porque a trouxe, porque andava à procura dela sem perceber que estava a perder o meu filho, as Ginkgos este ano ficaram douradas fora da hora, tarde demais, tanto melhor, e no Outono os Jacarandás voltaram a florir só para mim, Deus não me abandonou, em Novembro os Jacarandás floriam de novo e eu certa que só o faziam para mim, eu a ver sinais de Deus no lilás da cinzenta 5 de Outubro, os Jacarandás a dizerem-me que só por mim me davam a esperança de um novo começo, de um recomeço.

[todos os sinais, todos os prenúncios, todas as promessas, todos os santos com cera derretida ao seus pés, eu a falar com o meu pai na casa-de-banho do Hospital, eu a sangrar e a pedir-lhe para não me deixar mal, que ele sempre foi bruxo, a pedir-lhe para me deixar ficar com este filho dentro de mim, o Santo António da mãe do Stucky preso dentro da minha mão em jeito de protecção, o mundo soluçou naquela tarde, o abraço da Teresa depois do fim, os cigarros da Hermínia à porta da Maternidade, os bebés do ano a nascerem, a adolescente a chorar de dor na sala de espera, contracções de seis em seis minutos, o Leonardo ao telefone a garantir-me que a culpa não era minha, e uma lágrima a cair no linóleo, depois as lentilhas do Stucky antes das doze badaladas, a Ginkgo não podia ter feito nada, debaixo da Ginkgo, daquela, não podia ter sido debaixo daquela, se Deus está comigo, não há quem tenha a coragem de estar contra mim, porque é que ele me abandonou, deu-me todos os sinais, mas descambou.]