quinta-feira, dezembro 27, 2007

Esperança

Na casa de banho houve sempre, desde sempre, concílios familiares, epifanias, lágrimas e gargalhadas, brushings e borbulhas rebentadas no meio de conversas sérias, decisões para a vida, entre dúvidas metafísicas e mensagens codificadas nos desenhos a bolor do tecto por cima da banheira, nem sempre houve um espelho, mas nunca faltavam fitas de cetim guardadas no armário para as minhas tranças, outrora os azulejos eram brancos, depois começaram a cair e a Magui colou papel autocolante foleiro com gaivotas, a nossa vida, a nossa família, eu, o Leonardo, a Magui, e dúzias de gatos, encontrávamo-nos ali, pela manhã, parecíamos muitos nas manhãs de domingo – um na sanita, um na banheira, a outra a pentear as melenas ou a desenhar um risco de eyeliner por cima das pestanas, foi lá que o meu irmão Leonardo me queimou a bochecha esquerda com o secador de cabelo sem que nunca tenha sido castigado pelo acto vil, também foi ali que me trancaram com a gata Melissa quando a casa estava assombrada e os gatos bufavam ferozmente a seres que nenhum de nós conseguia ver, foi por cima do balde da roupa suja que eu chorei a maior parte das lágrimas da adolescência, era lá, até há muito pouco tempo que a minha mãe me secava o cabelo, cotovelo esquerdo apoiado no lavatório, rabo em cima do banco amarelo de plástico que o senhor Victor nos vendeu a preço de ruptura de stock quando fechou definitivamente as portas da sua loja de acessórios de casa de banho na João XXI, foi lá que, num Natal distante, linóleo cor-de-laranja com pequeno padrão de colmeia por debaixo dos nossos pés, olhos pregados ao janelo de vidro fosco junto à sanita, eu e o Leonardo jurámos ter visto a sombra do Pai Natal a colocar presentes por debaixo do pinheiro feito de escovilhões de plástico verde-garrafa.


Já não dá para ler o futuro no bolor do tecto por cima da banheira, até porque já não há banheira, não há linóleo com colmeias por baixo dos nossos pés, algures no subúrbio, a Magui tão cansada de escolher pavimentos, sanitários, sancas, fornos e placas, mármores e granitos, olhou para aquela e disse – quero uma igual –, e eu nem ousei dizer-lhe que tinha escolhido uma casa de banho amarela, por acaso é bem gira, apesar de amarela, lavatório à moda antiga, como em Viseu, sem papel autocolante com gaivotas a segurar os azulejos, não me espanta mesmo nada que a magia tenha acontecido ali, junto à sanita, junto ao janelo de vidro fosco onde outrora eu e o Leonardo vimos a sombra do Pai Natal a deixar presentes debaixo da árvore de Natal feita de escovilhões de plástico verde-garrafa.

Não tenho um presente para ti, João.

Não faz mal. Não tenho um presente para ti, Diana. Desculpa.

Se o Pai Natal existisse mesmo, João, agora descíamos no elevador, aproveitávamos que a Farmácia está aberta a noite toda, arriscávamos, se calhar o Pai Natal, com sorte, até nos portámos bem, João, o Pai Natal ainda nos traz um bebé.

Não descemos à Farmácia. Com medo de mais um teste negativo em cima da mesa, da minha cara de sofrimento contido, mandíbula superior a morder o lábio e a desvendar a covinha da bochecha direita, não descemos à Farmácia, sobretudo, por vergonha, por termos uma venda suspensa há mais de quinze dias.

Com um dia de atraso, o Pai Natal chegou.

Este blogue está grávido de seis semanas.


(Naquele dia, tinha que ser naquele dia, em que toda a gente tem esperança, começou a bater em mim mais um coração)

quarta-feira, dezembro 19, 2007

Passaporte

A Carolina começou a escrever.

Timidamente, mesmo antes do seu quarto aniversário, começou por juntar as letras magnéticas que decoram o fiel frigorífico de marca branca em segunda-mão que resgatei por dez contos de réis de um apartamento da Lapa há sei lá quantos anos – e eu a ter que dar a mão à palmatória e a entender a tonta da minha mãe quando chorou pelo pobre caixote do lixo azul e branco que levou com tudo o que não era suficientemente bom para ser ingerido ou guardado nos armários, e que depois de trinta anos de serventia abnegada, por minha causa, por meu capricho, porque estava velho, sujo, a apodrecer, foi parar ao lixo; minimizei a coisa, até fiz um esforço para compreender o ataque de choro, repara, mamã, o céu dos caixotes do lixo, a sua grande viagem, o momento que eles esperam durante toda a sua vida, e que vida longa teve este caixote, é ir para o paraíso, para a lixeira; quantos gagues de almoço domingueiro já fiz eu com o pobre caixote do lixo, e a minha mãe ainda triste por nos termos livrado dele, e agora a perspectiva de abandonar o fiel frigorífico à mercê do seu destino, na rua estreitinha da Santa, começa a aterrorizar-me, apesar do gelo que se acumula no pequeno electrodoméstico onde cabe pouco mais do que um quilo de bifes e um pacote de verduras congeladas.

A primeira palavra que disse foi mamã, a primeira que escreveu foi Noddy, nada contra, não sou ciumenta, e o som da letra ípsilon ficou-lhe na cabeça a martelar, sei como é, sei tão bem como é; um mês depois, começou a desenhar letras no papel, agora procura de vez em quando o teclado do computador, gosta do til em cima do a – leia-se o chapéu em cima do triângulo –, não fomentamos o seu interesse pela escrita, a Magui outro dia ensinou-lhe o conceito de infinito, mas não fomentamos, começou a escrever sozinha – Disney é parecido com Diana, mas tem um ípsilon em vez da letra que é parecida com o um, disse ela ainda ontem enquanto brincávamos às artristas das tintas no chão, em frente ao sofá laranja –, 2-2 são zero, o infinito é um oito a dormir, e assim vemos a nossa vida em fast forward à frente dos nossos olhos, e tememos que ela se torne infeliz por ter descoberto cedo de mais o elixir da vida eterna.

Só precisamos de escrever, é tão simples quanto isto, o passaporte para a eternidade sai-nos das mãos, a Carolina já percebeu que sim, eu demorei tanto tempo a perceber porque escrevo, porque escrevo mesmo quando me dói o pulso doente da doença profissional que ganhei por levar esta vida a escrever.

A Magui diz “Antes de morrer vou escrever apenas esta frase – Eu passei por aqui”, mas não basta, só voltamos a viver de novo, estejamos desfeitos em pó ou ainda em ossadas que teimam em não se desintegrar porque esta terra está cansada de mais de tudo o que se passa por cima de si, se deixarmos tudo escrito, em Viseu a casa está intacta, inviolada desde há cinquenta anos, abrimos as gavetas, abraçamo-nos às latas de Toddy que nos adocicaram a boca na infância, e encontramos a Magui, uma Magui que eu nunca conheci, a Magui antes de ser a minha mãe, a menina que era galanteada por pretendentes mais velhos que estudavam medicina em Coimbra, que serão hoje já avós, que poderiam ter sido os meus pais, ou os pais da criança que havia de vir no meu lugar, a Magui que vivia enclausurada em conventos povoados de freiras maldosas, que lhe cortavam os cabelos loiros por serem tentação demoníaca, que a largavam à noite pelos corredores, a Magui que até fazia tenção de responder aos galanteios, que escrevia as respostas às assolapadas declarações de amor e pedidos para passear de mãos dadas no Parque de Viseu, mas depois nunca chegava a entregá-las nos correios.

Se não estivesse escrito, escondido em caixas e caixinhas, perdido em Viseu, tudo já se haveria perdido no nevoeiro dos dias que tudo fazem esquecer.

Eu escrevo cábulas da memória, um dia alguém vai encontrar estes milhares e milhares de monólogos e intrigar-se, alguém se questionará – talvez a minha neta, ou bisneta, um parente afastado que partilhe o meu estranho apelido –, se terei existido mesmo ou se sou mero produto da imaginação de uma outra criatura; vivemos ao lado de pessoas que na verdade não conhecemos, deixámos de escrever, todos nós deixámos de escrever, e eu sei mais do meu avô que morre de desgosto numa ermida do outro lado da margem através de um recorte de imprensa da Ordem dos Farmacêuticos, do que por ser sua neta durante quase trinta anos.

As minhas mãos, eu escrevo com as mãos pousadas sobre o teclado, de outra forma doem-me os tendões ao fim do dia, parece que estou a ler braille, acaricio as teclas, e não olho uma única vez para baixo, para o desenho das letras, sei de cor onde elas estão, as minhas mãos hão-de deixar de existir se eu parar de escrever, porque tudo se resume às palavras – às que dissemos sem colocar a voz para que se ouvisse lá ao fundo da sala, às que hesitámos e tivemos de pigarrear um pouco antes de lançar, às que ninguém ouviu, às que atirámos como facas e que acertaram certeiras no peito de alguém, não há nada mais forte do que as palavras, com mais poder que as palavras, estas, aqui, neste sítio, não valem tanto como as que se cravam no papel; um dia, neste sítio, há-de parar tudo a um buraco negro, e o papel há-de parar ao lixo, certamente, mas continuarão para todo o sempre, enquanto o mundo for mundo, os resgatadores do passado, que compram os retratos das famílias que ninguém quis em herança, que vasculham o monte de lixo deixado à porta de prédios à espera de serem demolidos e guardam com carinho desenhos feitos pelo Francisco, ou pela Margarida; um dia, a minha filha saberá que a sua avó amou perdidamente o seu avô, a quem chamava de Mané só para se vingar do facto de ele a chamar de Guida e não Magui; descobrirá que a mãe era uma criatura ingénua que acreditava em fadas, em bruxos e em contos de encantar, que, em tempos, escreveu que algo inacreditável e extraordinário aconteceria à 50.000ª visita de um blogue, porque a faixa 50 do CD que ela ouvia incessantemente falava de um amor maior que o medo, que no equinócio da Primavera aquele que seria o seu futuro patrão mandou plantar 50.000 flores na Avenida da Liberdade, que às quatro e picos da manhã o visitante 50.000 chegou, e desde então viveram felizes para sempre.

Deixámos de escrever – há muito que deixámos de cantar, outra forma de escrita imortal –, anotar bastava, é tão simples quanto isto – até uma criança com menos de quatro anos já percebeu –, vejam só, eu tenho dois anos úteis de memórias em que sorvi o amor das minhas avós, se eu não escrever, elas morrem comigo; não foram heroínas, não estarão nunca em manuais escolares, ninguém escreverá romances sobre as suas vidas, se eu não escrever tudo o que puder sobre os dois anos de memórias conscientes que ainda trago em mim, ninguém saberá que elas passaram por aqui.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Carolina e as luzes de Natal




Foi assim desde sempre - mesmo antes de as minhas cordas vocais vibrarem da boca para fora cascatas de sons cheios de nexo e significado, ou de o meu sistema nervoso central processar pouco mais do que um mundo feito da água de colónia Bien Être da minha mãe muito loira, do Âmbar e as madeiras da roupa da minha avó muito morena, e da lixívia das mãos da minha outra avó, que me embalava todas as noites no seu regaço, ao compasso do seu batimento cardíaco, sentada no sofá de napa laranja: chegava Dezembro, a porta do Ford Cortina branco do meu avô Ralha abria-se, e da Praça Pasteur seguíamos em romaria para ver o Natal nas ruas de Lisboa.

O pinheiro comprava-se junto à linha de comboio do Arreeiro, e debulhávamos um pacote de algodão hidrófilo pelas fagulhas, colocando bolas de vidro coloridas nos ramos. A minha avó, que quando não cheirava a lixívia, trazia consigo o aroma de roupa lavada no tanque de betão com sabão azul e branco da Clarim, tirava do porta-moedas uma nota de cinco mil escudos dobrada em quatro, e ditava que o seu destino era para comprar presentes para os meninos. No chão dos bazares da Avenida da Igreja, eu comprava um estojo de canetas da Molin, e tinha ainda dinheiro suficiente para comprar um "Meu Pequeno Ponéi" (lá em cima, na Erasmus, o meu tio Zé já teria comprado a tão desejada Barbie Cintilante, descrita ao pormenor na carta escrita ao Pai Natal).

O cabelo muito branco da minha avó muito morena, sentada no banco da frente do Cortina, iluminava-se de muitas cores quando íamos ver o Natal, e quando ela olhava para o banco de trás, os seus olhos, eu não sei se eles não sorriam mais do que os meus, colados à janela esquerda do Ford Cortina, as mãos em pose de ventosa no vidro e a boca aberta de espanto, dos sinos, das estrelas e dos anjos e da alta voltagem do Natal.

Nascida e criada no Bairro de Alvalade, apenas uma vez ao ano eu descia com a minha avó muito morena a Avenida da Liberdade. Depois, subíamos o Chiado, voltávamos atrás para o Martim Moniz, seguíamos em frente pela Almirante Reis, torneando a João XXI, e voltávamos à Lisboa que eu conhecia, à Avenida de Roma e Avenida da Igreja, mas o Natal, as luzes mais bonitas, só as podia ver do lado de dentro do Ford Cortina.

Com três anos, a minha filha Carolina, nascida primeira semana de Dezembro, já domina conceitos abstractos tão complexos como cidade, país e região autónoma. Tem todos os sonhos deste mundo e sabe que quer ser “artista das tintas” quando for grande, e que, daqui a duas semanas, assim que soprar as quatro velas do seu bolo de aniversário do Noddy e da Ursa Teresa, a vida lhe reserva feitos notáveis, como aprender a andar de bicicleta, ou ir dançar na televisão (não sei como descalço esta bota da televisão).

Trauteia Mozart e Rodrigo Leão, mas sabe-se lá porquê, também vem para casa a cantar o jingle das Chiquititas, ou as canções carregadas de conotações sexuais das mini-Doce, a minha Carolina possui uma memória notável - sabe que comeu favas há um ano nos Açores, e já distingue algumas letras, nos anúncios da publicidade, entre as quais, as que compõem o nome do seu ídolo Noddy.

Mas não é só: a morte também se aprende em pequenino, e sempre que a minha Carolina vê um pombo esmigalhado na estrada (e nesta família, gostamos de pombos e também de eucaliptos - malfadados e mal-amadas criaturas do reino animal e vegetal), diz "esta pomba está estragada", ou mais recentemente, porque já é uma pessoa em miniatura e não um bebé, diz "esta pomba está morrida".

Sabe que o gato Artur está no céu, ao pé da Lua (ainda hoje não gosta de ir ao consultório do Veterinário porque sabe que, no ano passado, o Artur entrou e não voltou mais para casa), de vez em quando, se a vê muito cheia no alto de um céu límpido, jura que avistou o nosso gato laranja lá em cima ao pé das estrelas.

Não pergunta pelo avô Ralha, o motivo pelo qual, supomos nós, ela quer, quando for grande, ser "artista das tintas". Apesar de não lhe termos dito que ele morreu, que ele partiu, que foi para o céu dos artistas, ou qualquer outra desculpa esfrangalhada; sabe-se lá porquê, ela sabe que ele não volta mais, mesmo que ninguém lho tenha dito ou explicado o seu súbito desaparecimento da face da terra, portanto, concentra a sua atenção e fixa os seus olhos muito azuis nos quadros que ele pintou e que nos deixou, e o seu preferido é um retrato de Fernando Pessoa, que diz ser "aquele senhor muito simpático".

No seu pequenito cérebro em constante ampliação, a Carolina sabe que a Câmara de Lisboa caiu quando estávamos de férias nos Açores (eu sosseguei-lhe o espírito aflito garantindo que a Câmara nao se tinha aleijado), e repete a lenga-lenga, sempre que lhe perguntam o que é que a mãe faz na vida: "A mamã trabalhava no Público, depois foi para a Câmara Municipal, mas a Câmara caiu (e não se aleijou), e depois foi para a casa cor-de-laranja (sede de campanha do PSD, onde confraternizou com as mais altas figuras do partido) e agora está na Cunha Vaz".

A sua percepção do mundo não é muito diferente do que ele é, apesar de visto à altura de um metro e dez centímetros, e de as fadas terem sempre um papel importante em tudo o que acontece.

Um dia destes, no autocarro, zangou-se do alto dos seus três anos com um grupo de púberes estudantes de arquitectura, que desfilavam baboseiras sobre a cidade, e que apontavam e se riam para uma empena cega tapada por uma tela publicitária do Cristiano Ronaldo. Reza a lenda, contada pelo meu marido, porque não a presenciei, que pontapeou um dos jovens que anunciava que o que era bom era uma cidade cheia de arranha-céus, e que o mandou calar, porque a mamã é que trabalhava na Câmara Municipal.

Sei lá eu se é de eu lhe contar histórias sobre um grande arquitecto chamado Ventura Terra, ou um outro, o Keil do Amaral, de lhe estar sempre a apontar as casas bonitas, muito antigas como aquela onde vivemos e que é mais velhinha que o bisavô Ralha, para que ela guarde tudo, porque antes de ela chegar à idade adulta já não existirão, apenas na memória de quem as guardou.

No mês do seu aniversário, dia da Padroeira de Portugal, a Carolina já sabe que entramos em romaria no Fiat Idea cinzento escuro, e que vamos ver o Natal. É sempre assim. Foi sempre assim, graças à minha avó muito morena que me morreu cedo demais. Todos os anos, eu tenho a minha avó comigo quando desço a Avenida da Liberdade e vejo o Natal pendurado nos Plátanos centenários do Boulevard da minha cidade.

Moramos no Marquês, mas a volta é a mesma de há vinte nove anos atrás (sem o Cortina, sem a minha avó muito morena). Porque foi sempre assim.

Descemos a Avenida da Liberdade, subimos o Chiado e, como numa Montanha Russa, voltamos a descer para ver a árvore de Natal Gigante do Terreiro do Paço (em tempos, quando a convencia a comer a sopa toda para ficar enorme como a árvore de Natal do Millenium BCP, ela assustou-se porque não queria ter uma estrela luminosa no cimo da cabeça), subimos depois o Martim Moniz, se calhar, ainda paramos na Verbena de Natal da Alameda e, com uma nota de cinco euros, temos meia hora garantida de luz, cor e música, de um carrossel à moda antiga, depois, se ainda sobrarem dois euros, trazemos um pauzinho com algodão doce cor-de-rosa, e vamos ver o resto do Natal, João XXI, Praça de Londres (antes, uma voltinha só à Praça Pasteur para eu me lembrar do Cortina e da minha avó muito morena), Avenida de Roma, Avenida da Igreja, e depois marcha-atrás para o Marquês.

Ontem, a Carolina pediu para ir ver o Natal. E saímos, chave na ignição, travão-de-mão desengatado, à procura dele pelas ruas de Lisboa, já o vimos nos Centros Comerciais, nos anúncios do Intermarché, e da Pópota e Leopoldina, mas nas ruas não o encontrámos.

Procurámo-lo em Alvalade, e nada, seguimos pela Almirante Reis, tudo às escuras. No Rossio tínhamos que o encontrar, pensámos. Não. Timidamente lá o conseguimos vislumbrar na Rua do Ouro e no Chiado. Os olhos e as mãos da Carolina não se colaram ao vidro. Não deu pulinhos e risinhos de felicidade absurda. Pelo contrário, lançou:

"A Lisboa está feia, não está, mamã?", e esta pergunta doeu-me mais do que um parto sem epidural.

Não se mente às crianças, não se deve mentir às crianças, está feia sim, filha - no meio, um suspiro, uma pausa, para a voz se recompor. As mães não choram pelas luzes de Natal que não se acenderam, que este ano não se vão acender.

Depois do passeio de ontem, a minha Carolina acha que o Natal não vai chegar a Lisboa. Só aos centros comerciais. Que a cidade está feia e sem magia pelo ar. Tem razão: à porta de nossa casa, em pleno Marquês de Pombal, há lixo, há folhas mortas amontoadas nas sarjetas e por debaixo das rodas dos carros estacionados, há obras, passeios esburacados, carros em segunda e terceira fila, apesar de estarmos a 20 metros da Divisão de Trânsito da PSP, e da propaganda barata da Tolerância Zero.

Ontem, colocámos luzes de Natal no quarto da Carolina para ela não adormecer de coração murcho. Porque a cidade não tem luz, porque este ano nenhuma VW pagou as iluminações, prometemos ir à loja chinesa mais próxima e comprar luzes para as janelas da nossa casa no Marquês. Em tempos, um treinador de futebol pediu aos portugueses para colocarem a verde rúbea nas janelas, numa febre patriótica como não se via desde os tempos da ditadura. Este ano, eu peço aos lisboetas que acendam luzes pelo Natal.

Hoje, porque a minha Carolina tem todos os sonhos do mundo, porque um sorriso de uma criança vale mais do que ordenados milionários de assessores e adjuntos, vamos a Oeiras ver o Natal, onde me dizem que o espaço público ainda não morreu.

Declaração de interesses - De Maio de 1997 a Março de 2007, fui Jornalista do diário Público, sete anos na secção de Economia, os últimos três na secção Local Lisboa. De Abril de 2007 a Maio de 2007, fui Assessora de Imprensa do Vereador António Prôa, responsável pelo Pelouro do Espaço Público e Espaços Verdes de Lisboa. A Carolina, essa, não percebe nada de política. Nesta foto, em 2005, fotografada por Diana Quintela, para o Diário de Notícias, junto à árvore de Natal do Millennium BCP, no Terreiro do Paço, para uma peça jornalística sobre as iluminações de Natal em Lisboa.

quarta-feira, novembro 07, 2007

O calcanhar (uma espécie de carta para ti)

Não julgues que já não me dói o passo, que nunca mais me vai doer o passo, às vezes esqueço-me de trazer pensos na mala, o calcanhar fica esfolado, e vou a mancar pelo caminho.

Sabes, a Sílvia já não é loira, mas até já há quem nem se lembre de que, em tempos, a Sílvia já foi loira.

O presidente do banco fazia o seu melhor, tentava refrescar-me a memória à força, dizia, não podia ser mais gráfico – aquela jornalista ruiva que estava à minha frente –, e eu olhava para cima à espera que a nuvem desenhada no céu me revelasse o rosto da jornalista ruiva, olhava para cima como aquela outra com quem jantei debaixo de um tecto desenhado pelo Keil do Amaral, que falava, falava, tagarelava como poucos, mas não me olhava nos olhos enquanto dialogava sobre banalidades com fervor, fixava os olhos verdes no tecto, como se estivesse a falar com Deus, ou talvez com o fantasma do Keil do Amaral, eu meses depois fazia o mesmo, franzia o sobrolho e depois olhei para cima como ela, na esperança de me lembrar da ruiva (eu sempre adorei ruivos, como não me lembro de uma jornalista ruiva?), e só depois percebi – a Sílvia já não é loira; é ruiva.

Mas eu nem reparei, porque para mim, a Sílvia vai ser sempre loira. O que ninguém repara, o que provavelmente ninguém reparou, porque é uma pequena disrupção da realidade aparentemente irrelevante, coisa da moda, é que a Sílvia já não traz na mão direita o cachucho de ouro branco com uma pérola reluzente de que eu tanto gostava.

Todos mudámos, e a cor do cabelo da Sílvia é o lado menos visível e menos chocante de toda a mudança. Eu estou à direita do presidente, e à minha frente estão os meus amigos, eu não estou ao lado deles, e na sala do hotel de cinco estrelas perco a manhã a contemplar tudo o que mudou.

A maçã-de-adão do Pedro continua nos seus rodopios, aquilo fascina-me verdadeiramente como poucas coisas, a João já não tem um dente encavalitado, mas eu revejo de soslaio no rosto o mesmo sorriso de boneca de porcelana com que ela me recebeu no dia em que me ensinou a fazer as páginas da bolsa do jornal de referência. E a Sílvia já não traz no dedo um pedaço do fundo do mar. Ah, sim, já sabes desde o segundo parágrafo – é ruiva.

Não julgues que eu perdoo tudo o que me aconteceu, que compreendo e aceito o meu destino, e que não nunca mais me dói o passo, que nunca mais me vai doer o passo.

Eu só queria aprender a tocar piano, era capaz de jurar que desta vez nasci só de propósito para tocar piano. Se quiseres, eu canto-te as mil canções que sei de cor, eu embalo-te baixinho até se pedires, mas só não me perguntes como é que eu sei tantas músicas de cor, porque eu não te sei explicar, não te sei explicar que tudo faz sentido para mim.

Mudamos milimetricamente todos os dias. A Sílvia já não traz o anel no dedo direito, a João já não tem o dente encavalitado, o Pedro até já é editor, a tua barba, eventualmente, sufocou-te mais um bocadinho (eu trago na cabeça que essa barba te mata lentamente; se ao menos fosse tudo tão fácil como cortar a barba). Mas não me digas que eu sou outra, lá porque estou ao lado do presidente.

Continuo a chorar baixinho sempre que um prédio vai abaixo – porque os prédios, e tu sabe-lo tão bem quanto eu, não são só prédios. Eu contei-te a história do prédio que me chamou durante dias a fio, e eu a pensar que estava louca, porque os prédios não têm voz, e quando tu partiste a janela, escondido pela glicínia, enquanto umas vacas coloridas eram licitadas no Parque das Nações por seres perturbadores que desembolsaram milhares de moedas de euro para exibirem uma vaca nos quintais das suas vivendas geminadas, sabes bem como eu tremi quando abriste a porta debaixo do caramanchão, e como eu já conhecia todos os cantos de uma assoalhada onde nunca tinha entrado.

Tu devias saber que eu sofro por cada telhado desmontado, por cada pedaço de entulho no contentor, por cada pedido de informação prévia que entra na Câmara, porque as casas não são tijolos e tabique, não são telhas e madeiras, são pedaços de nós, e sempre que uma casa morre, morre um pedaço de alguém, uma memória que vai a incinerar no Alto de São de João dentro de um caixão de pinho barato; no fundo, todos nós morremos um bocadinho também, uns mais do que os outros, sempre que a cidade muda, e a cidade, tal como nós, e sobretudo por nossa causa, não está em paz.

Eu já guardo milhares de canções em mim, eu guardo as minhas avós em mim, e agora atafulhei tudo, desarrumei a casa toda para me caber o meu pai também, eu só não sei quanto mais canções é que eu posso guardar, quantos mais telhados e fachadas eu consigo trazer em mim – por isso, não julgues que já nunca me dói o passo, como é que não me havia de doer o passo, eu trago tanta coisa em mim, e por vezes não tenho pensos na carteira, e o calcanhar fica esfolado e eu vou a mancar pelos dias fora.

A Sílvia já não é loira, e eu, de facto, já não te envio sms esquizofrénicos, profundos, eu tenho medo dessa palavra, sinto vertigem só de a escrever, quando era pequenita chorava só de ouvir a palavra esqueleto, e profundo, e profundezas, dão-me vontade de chorar.

Vê lá tu como as coisas mudam, um ex-ministro da nossa República, com quem o meu avô fez a reforma do sistema educativo no Robalo (quando as árvores do Robalo eram mais pequenas que a Carolina), repete baixinho, fracções de segundo depois, o discurso de um líder empresarial, voltou a ser criança, sem sonhar que eu reparei na brincadeira. Isto é tudo o que mudamos durante uma vida inteira.

E eu sei de cor milhares de canções, e sei reproduzir também o momento em que gritei pela primeira vez socorro, se quiseres até te digo quando aprendi o que era jurar, ou como fiquei envergonhada, com nove anos, por não saber no último teste de português do primeiro período o que é que era imolar. Ou posso contar-te quando era muito pequenina e descobri o que era a polifonia, e dizer-te que, desde então, nunca mais ouvi a música como um todo.

Dói-me o passo.

Somos camadas, como as músicas. Fazemos sentido como um todo, mas eu só vejo, e só oiço as partes, os detalhes, as pequenas coisas extraordinárias – diz-me quais são as possibilidades de duas pessoas que mal se conhecem, mas que trabalham para o mesmo patrão, sonharem, ao mesmo tempo, com o bacalhau à braz do restaurante Andaluz? Como é que eu não hei-de andar enamorada pelo raríssimo extraordinário?


Eu estou sentada ao lado do presidente. Do lado direito. Falo de obrigações hipotecárias e obrigações permutáveis, até já sei qual é a diferença entre elas, caso alguém queira saber, e tagarelo sobre turbo warrants na pausa do cigarro, mil milhões para aqui e para acolá, se bem que ainda tenho a lata de contar ao inglês com quem falo religiosamente às terças e às quintas-feiras dos milagres operados pelo fantasma da rainha D. Estefânia nos corredores do hospital pediátrico.

Eu continuo a mesma, mesmo que já não te envie sms perturbadores, mesmo que este blogue seja actualizado numa base mensal, a que tem ressentimentos cósmicos com o destino que não se há-de cumprir, a que se diverte a decompor a melodia que toca o oboé, e que por cima dele ouve o clarinete, e que sem esforço algum ouve os ferrinhos e o quinteto de cordas, a que chora nos concertos porque não suporta a beleza da união das coisas.

E, por vezes, não trago pensos na carteira, e levo o calcanhar esfolado pelo caminho.

quinta-feira, setembro 27, 2007

segunda-feira, setembro 24, 2007

Antigamente

Antigamente, eu não sabia o que era um vereador, não sabia o que era um editor, muito menos me preocupava com as funções de um redactor principal ou com a adequada tradução para a língua inglesa de tão distinta categoria profissional da carreira jornalística, e estava longe de imaginar que existem mais freguesias do que as semanas que completam um ano da minha vida, e nunca tinha pensado que um jornal se "fecha" todos os dias (à chave?), que Benfica ainda é Lisboa, que Carnide também ainda é Lisboa, antigamente eu tinha uma cábula muito bem feita num dicionário de Latim, na página 500 e na página 1000, que me garantiu um notável oito no exame nacional.

Antigamente, eu tinha telemóveis caros de última geração que apareciam nas mãos das vedetas dos filmes de Hollywood e, hoje em dia, tenho telemóveis de quinta categoria, só que, antigamente, eu tinha contactos de amigos pelintras em telemóveis caros, e hoje guardo o contacto do Joe Berardo num telemóvel reles.

Antigamente, eu não sentia as minhas entranhas a estalar, havia só registo de uma ou outra fissura microscópica, e, então, eu conhecia os limites do meu corpo e ainda conseguia sentir dor e frio nas extremidades, e tudo se resumia ao que vestir com as calças de sarja azuis bebé, com bolinhas brancas microscópicas, compradas no primeiro dia de saldos da Zara.

Antigamente, quando as férias de verão se estendiam por três folhas do calendário dos gatinhos amorosos em pose, dentro de cestinhas de verga, eu bebia sumos de laranja com uma pinguinha verde de Pinsang Ambom, no relvado, junto ao poço e ao jardim de cactos, e assistia ao transe conjunto das flores, das palmeiras, dos choupos e dos eucaliptos que mudavam de cor e mudavam de pio ao som hipnótico que vinha lá de cima, muitos decibeis acima do permitido, escorregando directamente do génio do Philip Glass (antigamente ninguém sabia quem era o Glass), e às vezes adormecia e sonhava com as lanternas de pirilampos que ia fazer quando o sol se pusesse na Mata de todos os Medos.

Antigamente, eu sincronizava a minha respiração com a da minha avó quando procurava consolo no seu colo fofo, eu encostava o meu ouvido direito à lã grosseira da camisola de gola alta, e ainda não tinha alergias nenhumas, nem às fibras, nem ao pó, nem aos pelos de gato e dos cães, e também ainda não era alérgica à estupidez e à incompetência, eu ouvia o tum tum do coração da minha avó e sincronizava a minha respiração com a dela, e mandava o meu coração bater no mesmíssimo compasso, e sabia que havia de levar aquele momento comigo para todo o sempre (e sabia que o haveria de recordar ao espreitar a rotunda do Marquês por cima de um biombo de secretárias).

O anel que eu trago no anelar da mão direita, antigamente morava na Praça Pasteur, dentro da caixa de plástico castanha, junto ao cabide das gravatas do meu avô, e eu arranjava forças sobrenaturais quando alguém tentava apedrejar um pardal (hoje, já mato formigas sem remorsos).

Antigamente, a minha mãe recebia no Natal um envelope com cem contos, e cem contos era uma pequena fortuna, juntávamo-nos os três em rodinha, a carpete cinza rato por debaixo dos nossos pés e os olhos brilhavam a contar as notas de cinco contos de reis, e tirávamos uma nota, vestíamos os casacos e as galochas, e fazíamos a Rio de janeiro a pé, depois descíamos a Avenida da Igreja e então aí, onde se vendem trens de tachos da Silampos e carrinhos de compras para as velhinhas, comprávamos um brinquedo e uma embalagem de 25 canetas de feltro da Carioca.

Antigamente, eu zangava-me com o meu avô porque ele não deixava que os meus dedinhos dançassem na máquina bonita de escrever, e, magoada, saía de casa disparada com uma lista telefónica das Páginas Amarelas e uma caixa de madeira cheia de avelãs, eu acreditava que alguém me haveria de comprar cartuchos de frutos secos por uma moeda de 25 escudos, talvez se me esforçasse muito, eu conseguisse um envelope com cem contos de reis, talvez eu conseguisse ter a minha própria máquina de escrever.

Antigamente, os mistérios da vida não eram mais do que três: quem inventou o homem (alguém que gostava de fazer puzzles como eu, pensava eu), com que artes mágicas ou com que cola (heraldite, uhu, patex ou aquela que colava cientistas ao tecto)é que a lua estava colada no céu, e porque é que os carros ficavam tão pequeninos lá em Alcântara (antigamente, saberia eu que Alcântara era Lisboa também?), quando o Ford Cortina do meu avô Ralha me embalava ao passar o Tejo sobre o Tabuleiro Metálico.

Fazíamos a Almirante Reis a pé, do Martim Moniz ao Arreiro, antigamente rezávamos na capelinha que ficou emparedada pelo centro comercial da Mouraria, comíamos chamuças vegetarianas e comprávamos sáris, pechisbeques e bonecas de porcelana nas lojas de revenda que cheiravam a caril.

Antigamente, eu não sabia o que era um consultor de comunicação, eu não sabia o que era o sub-prime e o mercado de derivados, muito menos estava interessada em análises swot, eu não sabia que a vida me havia de levar tão longe, eu só sabia que um dia havia de morar na Almirante Reis.

quinta-feira, setembro 06, 2007

A Herança

Tenho a casa cheia de fantasmas e a absoluta certeza que descendo em linha directa do santo que desfilou de sandálias de couro pelas ruas de Goa.
São fantasmas da outra margem do Tejo, são fantasmas do outro lado do mundo, fantasmas que eu trazia nas veias e na textura da minha pele sem reparar.

(são fantasmas ultraleves)

Tenho fantasmas e mais fantasmas, e latas de Toddy mais velhas do que eu em cima da mesa de jantar, certidões de óbito, e declarações do modelo 1 do IMI (com o respectivo anexo preenchido em duplicado) junto ao sofá que quando crescer quer ser cama.
Tenho plantas de localização à escala 1/100 de imóveis onde os descendentes do santo com quem partilho um apelido se juntavam numa quinta que se estendia até ao mar, uma quinta onde trepavam canas e roseirais, e onde decerto a minha avó Isaura feriu o seu olho direito numa ferida que nunca mais sarou.
E tenho também registos prediais de pequenas ruínas de uma vila fabril, tenho visões de uma praia de areias finas onde hoje o mar bate sem espuma aos pés de chaminés industriais, mas também tenho um busto de barro do Sá Carneiro que comprei no Barreiro.
Tenho uma queixa à Ordem contra um advogado e que tem que ser redigida o quanto antes, tenho uma convocatória de assembleia de condóminos para tratar, tenho uma bicha xenófoba que ficou com o quintal que devia ser meu e que não gosta dos meus vizinhos uzebeques, sem falar que tenho o grunhido do meu avô Ralha na sala onde o meu pai morreu com ar de espanto.
Mas há pior - tenho o carcinoma do colo do útero da minha avó Isaura guardado num arquivo morto de Chelas, e a tristeza de me ter esquecido que ela também se chamava Faria antes do Xavier e do Ralha. Tenho o Manuel dos Anjos Xavier e a Maria Manuela Faria enterrados nos arquivos poeirentos da Conservatória do Registo Predial do Seixal.
Tenho um presépio minhoto que encontrei na mesma loja do achado extraordinário do busto de Sá Carneiro - e sim, acredito que lhe partissem a montra se o pusesse à vista de todos, e ainda bem que vejo sempre mais além, que nunca presto atenção ao que está à frente mas ao que foi escondido atrás do óbvio, senão não tinha um busto de barro do Sá Carneiro comprado no Barreiro -, e já tenho algum carinho pelo Barreiro, 500 quilómetros depois aprendi a gostar da terra de onde vêm as minhas feições, e enterneço-me pelo facto de a cabeça do menino Jesus do Presépio ser maior do que a da virgem Maria, e de as ovelhas terem um sorriso maroto.
Tenho o presépio montado no janelo da cozinha de Santa Marta porque preciso da fé, da esperança e da luz que inunda toda a gente no Natal (e tenho outra vez uma invasão de formigas, que respeitosamente contorna as palhinhas onde o menino está deitado).
Tenho novas ruas na cabeça, tenho outra vez quilos a mais e cabelos arrancados por um tique nervoso compulsivo.

Esta é a minha herança.

terça-feira, agosto 21, 2007

VII


Cedo, o mundo voltou ao seu rodopio habitual, talvez um pouco mais fora de eixo do que é costume, por causa da panada, mas nem mesmo assim, depois do abalo e da réplica que se seguiu, a bola anilada perdeu a mania de desenhar órbitas por cima de buracos negros.
O mundo soluçou, ou se calhar foi só um coice, ou então uma picada de um mosquito, nada demais, mesmo nada demais, nada que já não se tivesse assistido neste mundo que nunca estava velho, que nunca se cansava de girar.
As gavetas foram todas remexidas, todos os armários, mesmo os dos sapatos, onde outrora se falou com Deus, forram varridos a pente fino. E, se por acaso, algo não ficou no preciso lugar onde o tempo parou, onde eu posso sempre regressar se quiser parar com o corropio do mundo, o fantasma da minha avó Tóia já fez o favor de arrumar a casa, de pôr tudo no seu devido lugar.
Os aviões descolaram num céu um pouco mais anil, e aterraram numa terra mais cinzenta.
Uns ficaram sem palavras, outros, sem água.
Cedo, o mundo voltou ao seu rodopio habitual e nem as árvores plantadas pelo meu pai – e mesmo as palmeiras, que não são bem árvores, e eu nunca gostei de palmeiras porque ele sempre gostou mais delas do que de todos nós – deixaram de me fazer alergia e seguir com as suas vidas: deita folha, deita pólen, deita flor e depois fruto.
Eu não lancei as cinzas do meu pai pelo ar, eu nem sei o que lhes fizeram - se as soltaram às mijinhas debaixo da Ficus religiosa que tem fama de provocar epifanias a almas maiores, ou se as guardam debaixo do colchão.
Os pêndulos dos bruxos cinestésicos baloiçaram junto ao Tejo e as agulhas de bambu espetadas no cocuruto libertaram-nos de todos os conjuros e maldições. Os primos, que por acaso são irmãos, reencontraram-se numa cozinha alta, e de bancadas de mármore rosa, cobertas por folhas de jornais amarelecidas onde há tão pouco tempo eu escrevia notícias sem grande interesse.
E eu não encontrei o meu nome impresso na fonte Bodoni, a negrito, por cima das bancadas de mármore. Mas eu encontrei este blogue nessas folhas, e encontrei uma embalagem de papel Carminol, dos anos 60, que se fazia no preciso edifício onde eu, até há tão pouco tempo, escrevia notícias sem grande interesse.
O mundo, como eu disse e tenho que voltar a repetir para ver se me entendem, cedo voltou ao seu rodopio habitual.
Eu achei que o capítulo sete, o último, o que devia ser perfeito, aquele que me emudeceu por tempo demais e deixou ao abandono este canto onde as letras se enamoram e contam histórias mirabolantes e extraordinárias, que geralmente implicam uma grande dose de magia e alguns santos, teria um rumo diferente.
Eu abri caderno azul onde, há tão pouco tempo, escrevi a sinopse de cada capítulo da história de uma menina que se viu órfã de um pai que nunca teve. Lá, eu escrevi “De nenhuma forma extraordinária”, e bastava uma frase para eu saber o que queria dizer com isto. Eu acreditava que estava órfã de extraordinário, que jamais nos voltaríamos a encontrar por portas travessas.
Eu esqueci-me que o mundo cedo iria voltar ao seu corropio habitual, talvez um pouco mais fora do eixo, por causa da panada, mas nunca se esquecendo de descrever aquelas órbitas brilhantes, desenhadas pelos tropeções nos buracos negros.
Enganei-me. Todos os dias, eu encontro o meu pai de uma forma extraordinária.

quinta-feira, julho 19, 2007

VI

Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa.

Depois, havia esse outro mundo, em paralelo, tão ou mais inventado do que o outro, onde, afinal, os magos morrem e as pequenas feiticeiras levitam, o vereador dos espaços verdes e os outros dezasseis membros eleitos que em nada interferiram no meu destino, o Prémio Valmor da Alexandre Herculano, e todos os que lá estavam presos com os pés afundados em terreno movediço, mas com apenas três dedos acima do chão, eu via esse mundo como se estivesse sentada numa nuvem em forma de anjo, e eles lá andavam, pequenitos, atarefados de um lado para o outro, a rescindirem comissões de serviços, a preencherem com uma caligrafia banal os recibos que não têm nenhum pigmento verde, a pilha de caixotes empilhados no anguloso corredor desenhado pelo Ventura Terra, a Lena a receber das minhas mãos o papel que me chegou por milagre e que assegurava que eu não tinha dívidas à segurança social.

Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa, impresso em papel Canson de 140 gramas por metro quadrado, a enfiar memorandos, despachos, informações, e a lista das árvores classificadas de interesse público, a enfiar listas de contactos da autarquia de Lisboa e a proposta de colocar floreiras na Baixa, a história do cemitério dos Prazeres e sua proposta de requalificação, e eu a saber que não havia dinheiro para comprar gaóleo para os crematórios, tudo para dentro destas pastas com corvos empoleirados no mastro de uma caravela, depois de tudo se ter arquivado por si num caixote, sentada no parapeito da janela, o que vai ser de ti, prédio, a despedir-me das madeiras dos umbrais das portas, a despedir-me das traseiras dos prédios arruinados da rua que honra o presidente da câmara que mais árvores plantou em Lisboa, e o que vai ser de ti, pequena feiticeira?

Ele queria esperar 72 horas.

Quando ela disse isto, procurando, com o olhar, validação do mestre budista, apeteceu-me descer um dedo do meu pedestal e soltar uma gargalhada. O mestre budista nada disse e eu também não ri.
Parece que as almas têm que se habituar à sua provisória condição de errantes quando o corpo morre, deve ter sido isso que ela queria dizer com as 72 horas de espera, lembro-me de ele me falar disso num dia em que eu ainda tinha dentes de leite, mas não demasiado cedo para o mago me ensinar que devemos sempre pedir licença à alma grupo para colher uma flor, que não custa e é nunca é demais ter a gentileza de explicar a que propósito a estamos a arrancar da terra, desde então eu faço-o sempre, ainda hoje, aos pés da Sant’Ana, expliquei ao Deus dos Chorões que aquela flor rosa fluorescente era um presente de anos para o meu pai, mas francamente, eu lembro-me da conversa ao contrário, que ele me contou que deve ser muito triste assistirmos tempo demais à dor de quem deixamos para trás, a mim, no que diz respeito à espera, às 72 horas desde o edifício da segurança social de Ponta Delgada, o que mais me perturbou foi ele a ver-se a si próprio dentro de um frigorífico.

A mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa acordou em silêncio.
Não havia corvos, nem caravelas, nem vista para o castelo, apenas uma nesga de Tejo junto ao PER do Vale de Santo António.
O vestido abraçou-se ao corpo, os sapatos não servem de nada para quem anda três dedos acima do chão, mas enfiaram-se dentro dos pés, o Fiat foi em piloto automático até ao Alto de São João. A Mónica e a Dinah estavam lá, e as senhoras do café já se habituaram à presença de olhos inchados e vestes escuras do outro lado do balcão.
As coroas de flores de ontem estavam murchas e, por isso, nenhum coveiro me interpelou para oferecer os seus préstimos de florista a preço de saldo. Dois melros baloiçaram-se no jacarandá que ainda não estava florido, mas não cortaram o silêncio daquela prece matinal.

O Leonardo tardava, pensei que não chegava, o Fialho, a Andreia, o mestre budista, a minha mãe, a Manuela e a Marta, e a que quis esperar 72 horas sozinha a um canto. Uma Ficus Religiosa junto ao crematório, eu a pensar no gasóleo, por momentos, com um pé no outro mundo, o dos vereadores que renunciaram aos mandatos, vi o meu contrato dissolvido num gabinete dos recursos humanos, a câmara a tropeçar e a cair, e num fechar de olhos rápido, de volta ao Alto de São João, lágrimas de mãe aos pés do caixão, e lágrimas de pai, das verdadeiras, das saturadas de sódio, junto aos caracóis prateados.

Não disse nada.

Os irmãos mais velhos ousaram quebrar o silêncio, mas não falaram por mim, porque todas as palavras me foram arrancadas, tive que voltar a aprender a falar, estou a aprender de novo a escrever.

Não abri a boca, ninguém ouviu porque saiu entre dentes, mas apenas cantei esta para a viagem.

domingo, julho 15, 2007

V

Chegou, há mais de dois meses e quatro capítulos atrás, à rua da santa que vai olhando por si, e esta história, mesmo que as palavras teimem em escassear à medida que as imagens se tornam mais nítidas à luz das duas luas que já cresceram no céu, tem de ser escrita em sete capítulos, porque é a história da morte de um mago, vista pelos olhos da sua pequena feiticeira.

Por aqueles dias, os seus pés, os pés de muita gente, mas sobretudo os seus, seguiam três dedos acima do chão.

Houve um momento, e não é fácil precisar, nem na qualidade de narradora, nem na pele de personagem, a partir do qual começou a levitar rasteirinho - talvez, no breve instante em que toda a coragem do mundo se agarrou às suas mãos, que ousaram fazer o que ninguém fez, destapando a face adormecida do caixão, coberta por um naperon de naylon barato, talvez quando as mesmas mãos afagaram, sem tremuras, os caracóis prateados, ou talvez tenha sido no momento em que as lágrimas do seu octogenário avô chegaram ao chão, evaporando-se de imediato, porque aquele homem não chora.

Não foi assim desde o início da viagem - não foi ao primeiro toque do telefone, nem quando a notícia lhe chegou ao cheiro das chagas e ao som das crianças que guinchavam no recreio à hora do almoço. Junto ao edifício da segurança social de Ponta Delgada ainda os tinha bem assentes na terra; lá perto, no Jardim António Borges, estavam tão ou mais presos do que as vastas raízes da maior Ficus Macrophylla que os seus olhos irão certamente ver; carregavam com força no acelerador até ao Porto Formoso, e a custo arrastou-os pelo areal e teve que sorrir quando viu a pequena loira a correr para junto de si. Mesmo quando sobrevoavam o Atlântico, ainda os conseguia sentir.

Não importa. Todos, mais cedo ou mais tarde, saberão. Talvez, a alma que toca incessantemente, sem resposta, à campainha do vizinho, já tenha vivido essa experiência, talvez o primeiro inquilino desta centenária assoalhada tenha sentido o mesmo neste mesmo lugar, junto ao banco de pedra da janela que não existe mais, sabe-se lá há quanto tempo não existe, mas que eu vejo desde o primeiro instante que aqui entrei.

Durante uns escassos segundos, ou mesmo semanas a fio, a dor cessa, passa para lá das marcas, rebenta as escalas, deixa de correr nas veias às golfadas, o ar arrefece, sou capaz de jurar que sim, que correu uma brisa, depois começou a nevar junto ao altar da Sant’Ana, uma neve fofa que caía dos choupos em pompons, e não dos céus em flocos, e depois veio a dormência, foi então que os seus pés passaram a caminhar em frente três dedos acima da calçada.

Chegou à rua da santa que vela por si e continuou a levitar, mesmo correndo riscos desnecessários, quando arriscou uma aterragem de emergência, por ter ousado abrir a porta do primeira quarto à esquerda, onde dormia, numa cama de borboletas, o vestido mágico de uma manhã de primavera.

Deitou-se a seu lado, mais tempo do que aquele que lhe pareceu, e depois foi tudo muito rápido - escorregou para dentro das quatro paredes da segunda porta à direita, só foi à rua da sua santa porque trazia no corpo a mesma roupa há um número de dias que era incapaz de contabilizar, e tirou do cabide o vestido mais bonito que lá estava.

Na manhã seguinte, também o mago iria voar no seu jardim coberto de neve.

terça-feira, junho 12, 2007

IV

Aqueles foram os dias de todas as certezas.

Numa cama de pinho, dentro do quarto da empregada, uma assoalhada desenhada à margem do regulamento geral das edificações urbanas por um arquitecto sem coração, um rectângulo estreito e comprido mais pequeno do que o hall da entrada que a empregada teria que espanar e aspirar, eu dormia ali, encolhida, esmagada pela companhia de um estrado de madeira, que, por sua vez, dormia de pé atrás da porta, um metro e oitenta de altura por sessenta centímetros, em equilíbrio encostado à parede, penso que era um estrado de cama, só agora penso nisso e, sim, era um estrado de madeira reciclado quando ninguém falava disso, e nesse pedaço de madeira, que era uma espécie de retábulo gigante, um Cristo, com o que eu me lembro de ser um Cristo, mas um Cristo com um prego espetado na cabeça que lhe chegava até às narinas, que dormia comigo no quarto da empregada. O quarto e o retábulo em tons de anil e de preto, e, por vezes, os aviões que se faziam à pista da Portela planavam tão baixinho que os vidros do quartinho da empregada estremeciam de medo, ou de susto, e eu estendida por cima do colchão de espuma, por vezes aconchegada pelos lençóis azuis-escuros com florzinhas, outras, tapada com os motivos geométricos laranja e pretos, e eu com medo do devir, com medo dos aviões que estremeciam os vidros do quarto da empregada e, também, com medo do Cristo com o prego espetado na cabeça, mas sobretudo aterrorizada com o devir, eu, toda a vida com medo do devir, a pensar se seria a empregada já que dormia no quarto que lhe estava destinado, eu com dores de barriga a avançar como se tivesse tirado dobles quando atirei os dados por cima da mesa e a franzir o sobrolho às escuras, sob o olhar atento do Cristo pregado encostado à parede, e a magicar se teria mamas grandes ou pequenas, a rever a minha vida toda à frente dos olhos, a ver os filhos, os netos, a minha mãe velhinha junto de mim, eu aterrorizada com todas as incertezas, com todas as possibilidades, com todos os caminhos e isto com apenas seis ou sete anos de idade.

Mas aqueles foram os dias de todas as certezas. E nem por um instante o devir me electrocutou as entranhas, não fez disparar o meu coração, não badalou como um carrilhão na minha cabeça; a partir daqueles dias, eu sabia que não havia certezas, e essa é a maior das certezas que poderia trazer comigo atrelada.


O Idea seguiu em piloto automático até à Vila Nova.

No Verão em que carreguei duas vidas dentro de mim, andara por ali, perdida, à procura da oficina, mas o Twingo parou antes de a encontrar, e o Zé Ralha não teve outro remédio senão o empurrar, e eu grávida dentro do carro, a capota aberta e o sol a fritar-me a moleirinha, eu a enfiar a custo a segunda e o carro sem pegar, o Zé Ralha com um ataque de asma lá atrás com a língua de fora e a grunhir, e eu a rir que nem uma perdida a assistir ao espectáculo pelo retrovisor, e uma descida, finalmente uma descida, e o meu pai a ficar pequenino pelo espelho retrovisor, e o carro finalmente a pegar, e eu estacionar o Idea e não o Twingo no mesmo sítio, em frente à Igreja, e pelo sim pelo não, a olhar pelo retrovisor à procura dos caracóis prateados do meu pai.

Não estava lá.

E fumámos um cigarro para ganhar coragem.

O primo aleijado a babar para o meu decote, e o meu octogenário avô a soluçar como uma criança que perdeu a mãe, os meus irmãos, os irmãos dos meus irmãos, as mulheres do meu pai, a que encarnou o papel de viúva, a minha querida Mónica, e eu sem medo do devir, a beijar primos cujas feições não tenho sequer ténue recordação, eu a chegar, zangada com a coberta de nylon barato a tapar o meu pai, ele merecia não menos que brocado de seda carmim, e eu com vontade de rir por causa do naperon que lhe tapava a cara, inquieta por momentos, com a certeza que não lhe teriam colocado na lapela a cruz de Cristo e em cima do seu corpo a sua espada favorita, eu com uma coragem que julgava ter-se sumido numa qualquer derrota, numa qualquer provação, eu a tirar-lhe o naperon de cima do rosto, a ter que lhe tirar o ridículo do naperon de cima do rosto, para me certificar que ele estava em paz, do lado direito, um hematoma salpicado, mas ele estava a dormir, em paz, e eu tirei da minha cabeça a imagem telefónica que o Leonardo me passou com um oceano de distância a separar-nos, que ele estava com ar de espanto, que ele não teria ido em paz, que queria mais um gole de vida, só mais um gole de vida.

Vila Nova estremeceu e nenhum dos seus pacatos habitantes sentiu o abalo. Talvez, na oficina onde a bateria do Twingo foi substituída, se tenha fundido um fusível. Estávamos lá todos, na pequena capela, cercada de árvores mortas de sede. Os filhos. Os outros filhos. As mulheres que se traíram umas às outras no passado. A família que raramente telefonava.

O morto, de facto, não se levantou do caixão e, afinal, não caímos todos caído num engenhoso ardil por si arquitectado com o intuito de nos juntar à sua volta.

Mas os fins justificam o meio.

O fenómeno sobrenatural que eu tanto pedira, que eu tanto procurara nos céus e nas árvores da ilha do arcanjo, estava ali para quem o quisesse apanhar e levar consigo para casa.

Aquilo foi separado em vida, voltou a unir-se no dia em que ele ficou para sempre a pairar num jardim sobrepovoado de palmeiras.

terça-feira, junho 05, 2007

III

É praticamente um distúrbio psicológico, um pensamento intrusivo que não me larga, que me faz acordar a meio da noite, e em Santa Marta eu não posso ir para o telhado e ver o dia a nascer por cima do mar de São Miguel. É um despertador que me assusta sempre que o fórum tsf vai a roncar em surdina nas quatro paredes do Fiat Idea, que me ultrapassa à má-fila, um segundo antes de eu bater com o polegar esquerdo na alavanca do pisca para ultrapassar uma fila compacta de carros parados pela passadeira vermelha do corredor bus.
Não me serve de nada, já não servia antes, muito menos agora, mas eu nasci três dias depois dele, e eu fui a maior de todas as vinganças e de todos os golpes que a vida lhe desferiu. Mais do que a glória que tardava e que acabou por não chegar nunca, nem na hora da morte, eu talvez seja a maior das suas cicatrizes, aquela que mais difícil foi de reduzir a cinzas no Alto de São João.
O pintor José Ralha morreu e a sua obra que anda por aí espalhada e pendurada nas paredes de tanta gente, a sua vida nem que fosse a vida que ele pintou a óleo, em tela, ou mesmo em azulejos de casa-de-banho, não valeu nada, resume-se a uma breve de 300 caracteres no Correio da Manhã e dois anúncios na página da Necrologia do líder de vendas nacional.

Eu era, eu sou a filha favorita, a mais parecida, a que traz para casa desconhecidos e não hesita em lhes chamar de imediato de amigos, a que atrai o extraordinário e todos os vagabundos, a que se enche de conhecimentos inúteis e decora o nome científico das plantas e das árvores, a que tem todos os sonhos do mundo na palma da mão, a que ainda é uma promessa, a que, de vez em quando, consegue ser sublime.

E eu fui a filha, a única filha, o tesouro que ele não pôde tocar, que apenas pôde seguir de muito longe por papel fotográfico, ou em folhas A4 desenhadas na secretária do senhor secretário de Estado do Ensino Superior a pedido da avó Zá.

Num Domingo feliz que passou, no Domingo mais feliz que já se viu nos últimos 28 anos, eu cheguei atrasada ao Jardim da Estrela. Fumaram-se cigarros de enfiada junto à Basílica da Estrela, dentro de um pequeno Smart imobilizado com os quatro piscas, para que se cumprisse a tradição da noiva atrasada, um atrás do outro, para mascarar a ansiedade de uma noiva que devia ter mandado às urtigas uma tradição idiota que colide com a sua doentia demanda pela pontualidade.

Eu sabia que ele ia estar lá, à margem, longe do grande grupo que se concentrava dentro do Coreto, eu sabia que ele atravessara o Tejo apenas para dizer olá e adeus. E eu sabia, eu sempre soube que era a favorita, por isso, esperei até à última semana para anunciar que me ia casar, sabia que tudo me seria perdoado, sabia que ele viria, que aceitaria o convite tardio em jeito de artista destrambelhada que era a menina do seu pai.

Ele disse, foi a última coisa que me disse, isto persegue-me há precisamente um mês, desde que o telefone tocou junto ao asqueroso edifício propriedade da segurança social de Ponta Delgada. Ele disse, e aquilo encheu-me de uma satisfação maquiavélica, de quem ri por último ri sempre melhor, porque se eu era a favorita porque é que tantas mulheres da sua vida já tinham passado para a tela e eu não.

Ele disse: Estás tão bonita. Vou pintar-te um retrato.

quinta-feira, maio 24, 2007

II

Eu não sei porque os fazem tão feios.
Os edifícios da segurança social, digo, deve fazer parte da breve nota da pasta da tutela que acompanha o caderno de encargos dos concursos públicos: por favor, senhores arquitectos, não se esmerem, esmerdem-se, queremos feridas urbanísticas a rasgar o céu, destruam o sistema de vistas sem qualquer pudor, violem as cérceas definidas pelos PDM, aliás, nem olhem para ele, dêem-nos empenas cegas para colar telas publicitárias gigantes, aqui amamos o fel, senhores arquitectos, o fel tem mesmo tudo a ver com os desgraçados que nos vêm pedir esmola à porta, vão trabalhar malandros, e eu pensava nisto tudo enquanto saía da segurança social de Ponta Delgada e me encaminhava para o carro encarnado nipónico, cuja marca não consegui fixar (Nissan, salvo erro, 191 mil quilómetros de carro de combate rasteirinho à estrada, ideal para as curvas e contra-curvas que fazem as delícias do Fittipaldi que há em mim; a Magui sempre disse que eu ia ser um Fittipaldi de saias, ela dizia isto quando eu não tinha incisivos frontais nas gengivas e eu não sabia o que isso queria dizer, mas acabou por ser verdade).

Era a hora do recreio.
E o carro encarnado ainda não tinha 191 mil quilómetros registados no contador, mas andava lá perto. Eu sentei-me atrás do volante sem esperança de conseguir em tempo útil um comprovativo da segurança social de que não era uma malandra como os demais que ali pedem esmola. E esmagada por uma tristeza infinita eu disparei para o lugar do morto, sem coragem para fazer rodar a chave da ignição e, por isso, optei por fazer baixar o vidro e atear um cigarro Além Mar: só me apetece chorar, e aquilo soou um pouco despropositado - o fado da segurança social.

Poucos segundos passaram, as crianças continuaram a guinchar no recreio, e o telefone tocou.

Aconteceu uma coisa muito má, disse o Leonardo, que nem esperou para respirar fundo num acto involuntário de ganhar coragem, ele disse logo que a Magui estava bem.
Foi o avô, ai o avô, mas, do outro lado, o impensável foi transmitido através da tecnologia GSM. Não. Foi o Zé Ralha, ele morreu.
E como estávamos em dia de os impensáveis acontecerem em catadupa, eu senti o cheiro das chagas que abraçavam a rede metálica de protecção da escola secundária, e eu sabia que as mesmas chagas estariam a trepar pela fachada da casa do Zé Ralha, e pela escarpa junto ao eucalipto que decidiu cair no dia em que o avô teve um AVC, e eu voltei a dizer, porque assim é que era certo pela ordem natural das coisas, não estás enganado, foi o avô.
E chorei. Chorei como nunca imaginei que pudesse chorar pelo Zé Ralha, nem eu sabia que o meu avô teria que dizer vezes sem conta ao telefone, não, não fui eu que morri, foi o meu filho Zé Manel, e eu chorei magoada porque ele não se ter vindo despedir de mim, e a partir daquele instante, fiquei à espera de um sinal do meu pai, eu sempre achei que ele viria despedir-se de mim de uma qualquer forma sobrenatural ao qual nos habituou com as suas histórias de bruxos e feiticeiras, reparem, ele nunca ia morrer porque era feito de outra matéria, não lhe corria sangue nas veias, mas pós de perlimpimpim, e depois de muito chorar, e sem forças nas pernas, eu segui amparada pelo João meio cega, seguimos até a um jardim que o Zé Ralha devia ter conhecido. A única coisa extraordinária que aconteceu, mas eu não sei se foi obra do Zé, porque eu olhava para o céu e lá em cima ainda não havia ainda nuvens pintadas por si, ele contou-me há muitos anos atrás, quando estava à deriva no atlântico, sem fé de ser encontrado, sozinho, a boiar de cansaço, ele disse-me que pensou que ia morrer, e que nos viu a todos, menos ao Leonardo, a dizer adeus. Eu espero que desta vez o Leonardo tenha estado lá ao nosso lado, mas eu procurava em todo o lado o meu pai pelas ruas de Ponta Delgada e não o encontrava, até me cruzar com um bebé, uma criança de caracóis negros que olhou para uma mulher de olhos inchados que estava a ser arrastada por um homem de caracóis loiros, e essa criança olhou para aquela mulher que não sabia, que não sabe ainda porque está destroçada, e lançou uma gargalhada.

quarta-feira, maio 23, 2007

I

Chegou à rua de uma das santas que olha por si.


Na véspera, antes de tudo acontecer, já quase como um pressentimento que vinha do ronco das ondas sobre as rochas escuras de vulcão da ilha do arcanjo, pedira a todos os santos, pedira à Marta com mais força do que ao Miguel, mesmo sabendo que ele era arcanjo e que ela, ainda para mais, era uma mera santa padroeira das domésticas, mas pedira com tanta alma que até se lhe eriçaram os pelos dos braços; não devia desvendar isto aqui, mas ora que esta, que se dane, também já não ocupava um cargo de confiança política, por isso, neste momento e sabe-se lá até quando, podia voltar a escrever tudo o que os dedos muito magros lhe ordenavam, já nada do que aqui se escarrapacha corre o risco de ser pespegado em papel de má qualidade por um qualquer mal intencionado jornaleiro, sim, é verdade, um mês naquela nova profissão e conseguiu passar a odiar grande parte da classe a que pertenceu, à classe cuja caixa de abono e previdência lhe passaria a depositar a prestação social por um prazo de 13 meses; sim, a revelação, já lá vamos, com calma, nada nesta ilha se faz à pressa, e esta é coisa para fazer ribombar os tambores, pelo menos aqui, à luz de um céu estrelado, e da melodia ritmada das rãs na ribeira e de quando em quando pintalgada pela espuma das ondas; aqui, onde os ponteiros se arrastam vagarosos, passa tudo mais devagar, eu escrevo quase às escuras uma hora antes de quem me há-de ler, e estou sob influência de um anticiclone que se apaixonou por este pedaço de terra, e, se é certo que o desgosto não ficou para trás na cabine do airbus da Sata, após mais uma petrificante aterragem que lhe colou as costas às costas da cadeira, certo é que, o tempo, que aqui tem mais tempo, ou talvez a latitude da ilha do arcanjo tinham, de facto, poderes curativos, analgésicos ansiolíticos e anti-depressivos, porque chegou, não à rua da sua santa, mas à ilha do seu arcanjo, e desmaiou de overdose de emoções num sofá-cama e nada mais se lembra até o acordar, hoje de manhã, num sótão solarengo, tão desorientada que teve que se sentar uns minutos largos a balançar na cadeira de couro por baixo da janela Velux para a alma regressar a bom porto; sim, a revelação, eu não me perdi, eu sinto tudo, eu vejo todas as palavras, eu rebobino todos os filmes da minha vida neste momento, eu lembro-me de envergonhar o Leonardo na Avenida da Igreja com o Zé Ralha com purpurinas a enfeitarem-nos os cabelos, eu rio-me com a lenga-lenga arraçada de feitiço, do chamamento de táxis à Estados Unidos de América – Apareça, Apareça, Táxi sem cabeça -, eu parece que o vejo sentado na beira do Lago, a confessar-me que pedira aos gatos que povoaram o Robalo de geração espontânea, que pedira uma vida a cada um, para emprestar ao meu avô, quando um AVC o deixou mudo e com o raio da perna esquerda preguiçosa; mas, a revelação já não me apetece contar, não é de propósito, mas esta é só minha e dos meus santos, e eu pedi na véspera a todos os santos e especialmente à Marta que me protegesse de todos os males, pediria amanhã o mesmo ao senhor Santo Cristo dos Milagres, e nada, mesmo nada poderia supor que, afinal, as coisas extraordinárias não tinham cessado de me tropeçar à frente dos pés; queixava-se, queixara-me para dentro, que mais nada digno de registo lhe acontecia, por isso, abusava amiúde da label “e nada de extraordinário acontece” quase como uma prece, uma súplica, mas esqueceu-se que a este um grupo restrito de felizardos do extraordinário, por vezes também acontecem coisas extraordinariamente más; tinha mesmo que ser assim, levava muitos anos disto, já se conformara, por vezes tinha mesmo que ser assim, porque se não o universo desequilibrava-se das pontas de ballet em que dança, e não era coisa bonita de se ver, o pandemónio que era depois.

Chegou à rua da santa que velava por si.
E o demónio do estacionamento fez o favor de lhe guardar um lugar à porta.

(há-de continuar; só não se garante quando)

sexta-feira, maio 11, 2007

Imagens como esta (escrito muito antes da passagem do furacão)

São imagens como esta (sem ponto final, sem reticências, sem exclamação)

Dito isto, houve silêncio num carro encarnado, o qual, se a inquirissem, não seria capaz de identificar qual o construtor sul-coreano ou nipónico que tinha aberto rasgado o papel de embrulho, aberto a embalagem, seguido cuidadosamente as instruções com o dedo indicador, e montado peça a peça aquele carrito Lego de brincar para gigantes.
São imagens como esta que o quê?
Pois, daí o silêncio, não sabia porque tinha dito aquilo e as palavras ficaram em suspenso, baloiçando-se ao sabor de uma curva de cotovelo à sua direita.
Já fizera menção de o dizer antes, pelas estradas ladeadas por plátanos muito antigos, cujos troncos só podiam ser abraçados por três adultos de braços bem esticados (o que mais me custa é ficar com fama de assassina de plátanos em Lisboa) e nas curvas e contra-curvas muito escuras alumiadas pelos faróis do carro encarnado, que ficaram sobressaltadas pelo rugir do motor junto às três mil e quinhentas rotações (ou assim fazia crer o ponteiro). Ou quando, ao telefone para Lisboa, confirmara que estava à beira do desemprego, e para seu consolo, única e exclusivamente para seu consolo, um milhafre se pavoneou muito perto, entre a linha do horizonte e o telhado da casa vizinha, onde gatos siameses contemplam o oceano atlântico.
São imagens como esta, que raio de desabafo, mas o que querem, esta mereceu mais um suspiro, nesta última semana, deu-lhe para os coleccionar, e esta imagem, pelo espelho retrovisor, invertida – e isto lembra-lhe um episódio longínquo em que o professor Palma Borges, num barracão pré-fabricado na preparatória Gago Coutinho, perguntou aos alunos da turma B, do oitavo ano, porque é que as ambulâncias tinham escrito ambulância ao contrário no capô, e alma nenhuma, incluindo ela, que se acha tão intelectualmente superior, soube dar a resposta certa, está ao contrário, setor, para se ler ambulância pelo espelho retrovisor, estas coisas ainda a perseguem, mais ninguém, decerto, se lembra disto, mais ninguém decerto, ficou envergonhada para a vida por não se ter lembrado da óbvia solução à adivinha, e, provavelmente, mais ninguém se lembra que havia uma Paula qualquer coisa, que lia os manuais em voz alta nas aulas com dicção de pivot televisivo –, enquadrada num espelhinho rectangular onde já descobrira alguns cabelos brancos que ficaram por tingir, era quase sobrenatural, um enorme sol laranja a deitar-se até à manhã seguinte nas águas do mar.

Nesta ilha, até as cuecas da Carolina, estendidas no quintal, me aquecem o coração.

quarta-feira, maio 09, 2007

Quando eu voltar (baralha e volta a dar)

Voltei.

Em uma semana perdi o emprego.
Perdi a aliança.
Perdi o meu pai.

Os Jacarandás ainda não estão em flor.

sexta-feira, maio 04, 2007

Quando eu voltar

Quando eu voltar, já que tenho que voltar que seja assim, não peço muito, apenas o quanto baste, como nas receitas do Pantagruel que levam o qb à frente dos condimentos do sal, da pimenta e do piri-piri – que a avenida 5 de Outubro já esteja vestida de azul, que as três centanas e meia de Jacarandás já tenham florido, e se não for pedir muito, eu gostava, eu gostava de entrar, triunfante, outra vez o quanto baste, não mais do que isso, no início da avenida, junto aos terrenos que ainda são da Bragaparques, e que caísse em cima do para-brisas cizentão do Idea, desde Entrecampos e até ao Saldanha, uma chuva de pétalas azuis (valeu a pena, nem que seja, valeu a pena pelo simples facto de eu ter em meu poder, algures num gabinete desenhado pelo Ventura Terra, uma informação da Divisão de Jardins, com o mapa dos Jacarandás de alinhamento de Lisboa, valeu a pena saber que a avenida 5 de Outubro tem 350 jacarandás).

Quando eu voltar, já que tenho que voltar, parece que não tenho outro remédio senão voltar, nada terá mudado, isso tenho a certeza, e espero que o Pedro se tenha lembrado de regar as Orquídeas e que elas tenham guardado alguns botões por abrir para quando eu chegar.

Não muda nada, quando eu voltar. O Centro de Emprego do Conde Redondo há-de estar no mesmo sítio e, decerto, os espanhóis que fotografaram a noiva improvável no eléctrico 28 já passaram os flashes das suas férias em Lisboa no ecrã do seu televisor (não tenho ilusões, já ninguém revela, já ninguém imprime fotografias; ficaremos, no máximo, arquivados num DVD)

Os meus mortos emprestados, continuarão à espera de ser pendurados nas paredes do hall e isso lembra-me, quando eu voltar, que tenho que comprar molduras douradas, barrocas, para os enquadrar.

A outra cinquentona, a que apareceu no Jardim da Estrela no Domingo passado, a que colocou na agenda que dois namorados que mediam o diâmetro do coreto numa noite de Fevereiro se iam casar no dia 29 de Abril de 2007, já terá escrito no Filofax um outro qualquer compromisso surreal ao qual irá aparecer de surpresa.

Se calhar, quando eu voltar, o Miguel da Clara já terá nascido. A Magui há-de continuar a dizer, qual corvo agoirento, que tudo o que está a acontecer são sinais de que o meu casamento está condenado ao fracasso.

Quando eu voltar, nem um segundo mais cedo, nem um segundo mais tarde do que o previsto, que o sol me continue a seguir como detective matreiro contratado por um marido corno. E que a conspiração cósmica e de todos os santos continue o seu curso natural, que a santa Marta vá à frente com o plano impresso em formato broad sheet e que não se esqueça de colocar, na ponta do nariz, os óculos de ver ao perto para que se não lhe escape uma vírgula das indicações do mapa.

Quando eu voltar, vou ter mesmo que voltar, fecho a porta atrás de mim. E depois abro uma janela.

domingo, abril 29, 2007

Fez uma noiva linda (e um noivo penteado)


Nas próximas três semanas, a meio do Oceano Atlântico, tudo sobre o casamento no Jardim da Estrela, desde o bouquet biodegradável, às lágrimas da Esquizo no hall de entrada de Santa Marta, à viagem no eléctrico 28, com os espanhóis a tirarem fotografias paa mais tarde recordar, e também a descida vertiginosa pelas escadinhas de Alfama abaixo (e eu a treinar para presidente da Junta, a distribuir beijinhos nos pátios, entre promessas de regressar em noite de Santo António para comer uma sardinha) e tantos, tantos outros momentos de uma história improvável e que eu quero interminável.

Três semanas, em frente à praia deserta, eu, o João, o diabrete loiro, e este computador.

Este blogue vai voltar a ser o que era.

PS - Muito feliz. Tão feliz que até estraguei as fotos, porque quando estou assim, radiante, rio muito e vinco o duplo queixo.

segunda-feira, abril 23, 2007

Leiria-Ralha

A noiva foi até Leiria, e Leiria pareceu-lhe menos feia, aliás, mais ou menos a meio da praça do centro histórico, onde procurava sem muita convicção uma caixa de brisas do Lis para trazer ao seu novo patrão – graxa danada, bem sei, mas o que fazer, a noiva tem destas coisas –, deliciou-se com o escafandro poisado no chão, à venda por 3500 euros numa feira de antiguidades ao ar livre, bateu no peito agradecida por mais uma imagem bizarra absorvida pelas suas retinas, e pediu até desculpa a Leiria por lhe ter chamado, há seis meses atrás, a mais feia de todas as cidades de Portugal.
É certo que o raio do vestido da noiva estava largo pelos nove quilos que a balança perdeu sem rasto nos últimos quatro meses (afinal não era assim tão chanfrada dos cornos por começar a dieta nas vésperas do Natal), é certo que não estava como esperado, como sonhado, com a magnólia e as tirinhas cor de vinho a caírem sobre a saia rodada – as madrinhas não disseram uau, o colar decidiu que não estava para ali virado e caiu sem graça sobre o regaço, apenas o véu, antigo, comprado no Ebay, deu um ar da sua graça naquele provador de um subúrbio de Leiria, onde há seis meses atrás um arco-íris rompeu pelo céu, junto à entrada para a A1.
A noiva foi até Leiria, e Leiria irá ficar no seu sobrenome, antes do Ralha, e só visto, nem dá para escrever o ar de espanto da funcionária da conservatória, em transe, quando o noivo lhe disse e voltou a dizer, não houvesse confusões, que ele é que ficava com o Ralha em último lugar. Leiria era uma cidade feia, não havia escafandro à venda no centro histórico que lhe valesse, nem mesmo o facto de o Leonardo, alegadamente, ter sido concebido algures em Leiria num hotel cujo colchão estava cravado de percevejos. Mas há apelidos averbados na certidão de nascimento que puseram Leiria no mapa de encruzilhadas que é a minha vida.

sexta-feira, abril 13, 2007

A Maldição do Alto Minho

Quando a noite cai, o silêncio desce as escadas desenhadas pelo Ventura Terra em pezinhos de lã, e desprendem-se das paredes luminescências que me fazem pensar sobre a maldição do Alto Minho.
As sapatas da porta 86 B da Rua de Santa Marta estão amaldiçoadas. Foram escavadas por cima das sepulturas de um cemitério índio. É tão simples quanto isto. Não pode, não arranjo outra explicação.
Nem sempre foi assim. Oiço relatos dos vizinhos que falam de uma taberna afamada, de uma cozinheira minhota de formas roliças, de um rodopio de febras e pipis, paredes pintadas com gordura e enxurradas de copos três e finos, que fariam transbordar o desolador chafariz do Largo de Andaluz.
O Alto Minho é um restaurante. É um restaurante simpático, irresistível pelo painel de azulejos monumental com vaquinhas e bois a puxarem uma carroça em Paredes de Coura.
O Alto Minho está amaldiçoado, só lá vai com água benta e crucifixo. Até lá, está condenado a este fado: abre, fecha, trespassa-se, arrenda-se. O Alto Minho não aguenta mais do que um mês com o letreiro da porta a dizer “Aberto”, mesmo com a imperial a 50 cêntimos. 50 cêntimos. Nem no boteco da D. Beatriz se bebe um café com 50 cêntimos.
É profundamente desolador. A mim entristece-me a maldição do Alto Minho.
Os vizinhos do restaurante Andaluz, na porta 84 B, têm a casa sempre cheia. Uma refeição ronda, em média os 15 euros por pessoa, e não há quem diga aos vizinhos que o raio das azeitonas não são lá grande coisa, e que, já agora, mudavam o fornecedor do queijo que não sabe rigorosamente a nada. Mas é vê-los todas as semanas com o mesma ementa afixada na porta, é vê-los todas as semanas a abarrotar. À hora do almoço e à hora do jantar.
Na porta ao lado, nem uma mosca se atreve a zumbir dentro das quatro paredes amaldiçoadas do Alto Minho.
Por vezes vamos lá. Não tememos.
Os olhares dos empregados já não têm uma réstia de esperança – devem já ter ouvido falar da maldição do Alto Minho. A lenda espalha-se de ouvido em ouvido, toda a gente a conhece de cor, como uma lenga-lenga.
A rapariga que nos serve o jantar está, sempre, sem excepção, à beira de um ataque de nervos, deita faísca pela ponta dos dedos e aquilo enternece-me, derreto-me com o nervoso miudinho e um misto de ansiedade infantil de quem acabou de desembrulhar um presente, quando chegamos e, apesar de todas as mesas estarem vazias, pedimos para nos sentar na zona de fumadores.
Depois, desdobra-se em atenções dignas de restaurante de primeira categoria: serve as bebidas, por vezes não lhe corre lá muito bem, entorna um bocadinho para fora do copo, mas nós não dizemos nada, nem nos atrevemos, mesmo quando ela não entende o pedido, ou se engana, nós temos medo que ela desate a chorar de desalento, desfazemo-nos em elogios à comida, ao serviço, em jeito de consolo, em jeito de a culpa não é vossa, a culpa é da Maldição do Alto Minho, e ela lá atura a Carolina com a maior das paciências, dá-lhe todas as palhinhas que o seu capricho de diabrete loiro entende pedir.
O Alto Minho tem os melhores secretos de porco preto de Lisboa. Sopa, azeitonas, pão, manteiga, prato, bebida, sobremesa (salva de palmas para a mousse de chocolate – caseira, com raspas de chocolate branco) custa 7,5 euros.
O Alto Minho deve estar quase a fechar as suas portas. E assim vai ficar, com o placard da agência imobiliária na porta, até que algum empresário do ramo da restauração que não tenha lido a newsletter da ARESP, o reabra.

Pelo sim, pelo não, sem medo da maldição, hoje vou lá jantar.

quinta-feira, abril 05, 2007

quarta-feira, abril 04, 2007

Nasceu uma criança com as mãos coladas*

Por estes dias, encontro-me profundamente encantada pela total ausência de expressões faciais da empregada de mesa Irina.

Subo até ao terceiro andar, de elevador, depois, passo pelo chão ladrilhado a preto-e-branco e treino algumas jogadas de mestre do xadrês da minha vida,

[encurralo o rei, como um cavalo, esquivo-me da torre e preparo-me para um eminente xeque-mate, isto tudo num pulinho e a caminho dá acesso à escada estreitinha por onde trepo para a mansarda]

cheguei, e tranco-me no quarto de banho desenhado pelo arquitecto Ventura Terra,

[também ando hipnotizada com a planta deste edifício, às vezes perco-me pelos tectos altos do meu gabinete e imagino-o – vou agora ver na wikipedia a cara dele –, sentado em frente ao estirador, regra e esquadro, tês, aparos vários espalhados, frascos de vidro soprado a transbordarem manchas de tinta-da-china que poderiam inspirar testes psiquiátricos acaso alguém se desse ao trabalho de reparar nelas, o Ventura Terra a desenhar estas salas, os jardins-de-inverno, os motivos florais da fachada, o desenho arte nova do corrimão da escada, e até a casa-de-banho, penso que é um privilégio fazer xixi num prémio Valmor e fico agradecida, eternamente agradecida pela experiência]

e tento, tento muito, tento não devolver ao espelho uma careta, tento, porque me dava jeito dos diabos ter cara de autómato, gostava de saber mentir com cara de guarda nacional republicano, dava um bocadinho do meu cabelo para não ser tão transparente, cara cuspida e escarrada do que se passa cá dentro nas entranhas, tinha piada e até fazia bem à pele ser como a Irina, porque tenho 28 anos e esta cara bolachuda já está riscada a x-acto, porque me rio muito, porque me preocupo muito, porque, em tempos, chorei muito.

[há meia dúzia de anos, eu a chegar à redacção do Lambert que tinha os tectos radioactivos, a chegar para fazer as bolsas com traje escuro a preceito, muito arranjadinha, nessa noite, eu não sabia, eu apenas julgava que ia à inauguração de mais uma exposição do Zé Ralha, mas nessa noite, com aquela blusa de seda verde-seco, eu conheci a Amália e os seus dentes bamboleantes, e a Sílvia Oliveira dispara esta para o ar, que me persegue sempre que me cruzo com um bocadinho de areia que se transformou em espelho, Ela tem cara de bebé; não tem uma única ruga.]


Mas por mais que treine nas instalações sanitárias protegidas pelo Ippar não consigo, e acabo sempre por constatar que tenho um pelo da sobrancelha muito mais comprido que os outros e arruivado.

Os dias passam-se assim. Num gabinete desenhado pelo Ventura Terra. Num imóvel classificado, onde todos, ou praticamente todos, lêem as entranhas deste blogue (e eu com vontade de picotar os pulsos a cada revelação dos leitores do Tralha).

Os dias passam e eu na expectativa de ver uma expressão qualquer estampada na cara da empregada de mesa Irina.

*Nasceu, ou talvez não, algures no Brasil, numa terra chamada Itaguaí, uma criança com as mãos coladas, como se tivesse passado nove meses quietinha, a rezar no ventre materno. Esse nascimento – que não consigo confirmar porque tenho muito que fazer – vale cem visitas diárias ao Tralha, reencaminhadas pelo Google brasileiro. Diz o mito que quando os médicos cortaram a fina membrana que unia as mãos do nascituro aconteceu um milagre. De facto, o Tralha só não morreu por causa disso. Mas não sei se é obra de Deus.

** Lamento, caro leitor do Google brasileiro: Não faço ideia como se monta uma fábrica de sabões no quintal...

sexta-feira, março 23, 2007

A doutora

A doutora ficou de cabelos em pé, madeixas loiras, brancas, vermelho fogo e castanhas-escuras, um arco-íris capilar e cada cor espetada para seu lado, de costas voltadas como amantes zangados a partilharem a mesma cama. Saída de um divórcio litigioso com convenção antenupcial que cobria até a custódia do papagaio africano que se deliciara a aprender de trás para a frente a última edição do dicionário de calão da Editorial Notícias para combater a agonia dos últimos dez anos de casamento dos seus donos, a doutora vinha com pequenas gotas de suor presas nos riachos das rugas da sua testa, a bufar pelos lados da boca um fumo fininho branco, quase imperceptível à vista humana, e a desgraçada da subserviente funcionária da conservatória não podia ter escolhido pior altura para indagar, a medo, em jeito de pedido de autorização:

Podemos casar estes dois no Jardim da Estrela?

As pupilas dilataram-se e os globos oculares da doutora tiveram ganas de ir dar uma voltinha ao andar de baixo e ver outras vistas sobre a cidade. Os óculos, de meia-lua, hastes encarnadas, desceram o escorrega da cana do nariz e a sobrancelha direita da doutora esticou-se (a testa ficou sem rugas e caiu uma gota de suor em cima da secretária), e a doutora, perplexa, as suas roupas de estilista a caírem com menos graça pelo corpo de girafa abaixo:

Não é digno casar no Jardim da Estrela... Conhecem as nossas salas de casamento? Temos a rubi, a pérola, a cristal...

Não havia verniz para estalar e então estalou um bocadinho da unha do anelar esquerdo da noiva.

Perdão?

Doutora, desculpe-me, a noiva a falar e maravilhada, quase paralisada com a etiqueta do inventário do computador do estado escrita à mão com tinta permanente, e o tapete de rato publicitando os serviços de uma agência funerária, qual é mesmo a diferença de casar numa tenda de uma quinta nos subúrbios que há-de ser fechada mais cedo ou mais tarde pela ASAE, ou na cabine de um avião da TAP, ou sob a areia da praia, e porque é que não é digno casar num dos mais belos jardins de Lisboa?

A doutora cheia de tiques, os olhos a tremerem muito subtilmente, a funcionária atrás dela a esfregar as mãos da nervoseira, um misto de pena de já não ir casar aqueles dois no Jardim da Estrela onde, a própria, há três décadas atrás namorava escondida no Caracol.

Bem, vai ter que nos dizer onde é que na lei diz que não nos podemos casar no Jardim da Estrela.

A doutora viu que não se safava com estes noivos armados em sabichões. Tentou arrasá-los com uma vitória de secretaria.

Bem, então, preciso das licenças emitidas pela autarquia, para começar o processo. Têm um mês.

A licença foi dura de obter. Todos os dias, 21 3912463, está lá, dona Rosinda, novamente Diana Ralha, ai mulher que me parece que já não me caso se não me sai essa licença de ocupação do espaço público... Amanhã? Está bem, eu ligo amanhã às 15h. Todos os dias a mesma coisa, a querida da Dona Rosinda, sempre a mesma resposta, depois a até nos mandou medir o perímetro do coreto, ó raios o perímetro era mesmo como, dois pi ao quadrado?, até que, quase em cima do limite legal, a bem aventurada autorização chega ao tabuleiro do fax.

Tiraram a senha.
A senha dos casamentos ainda não funciona, tem que se tirar uma que também dá para óbitos e a etiqueta do inventário escrita à mão está um pouco mais descolada e o tapete de rato da funerária continua à vista de quem é viciado na realidade. Os livros de registos já não são escritos com bonitas caligrafias a tinta permanente, mas sim, com letras muito redondinhas da funcionária de vinte e poucos anos.
Os divórcios sucedem-se e a doutora continua a vestir uns trapinhos que não se podem compram com o salário de conservador, índice 174. Sentados, à espera da vez, ouve-se a doutora vitoriosa a falar com a funcionária com desdém: Não devem ter conseguido a tempo a licença...
A noiva ouve, porque a noiva ouve tudo, vê tudo, mas não diz nada ao noivo. O painel luminoso chama o número que está impresso na senha verde e os noivos avançam dois passos e sentam-se.

Surpresa (pensa a noiva), estamos aqui.

Ainda agora estávamos a falar de vocês.

Eu sei (pensa a noiva). Fala-se do demónio e aparecem os cornos (acabou por dizer a noiva).

Está aqui a licença, conseguimos.

A doutora bufa, bufa lá de longe sem se mostrar, a funcionária sorri e diz para lhe perdoarem qualquer coisinha que vai ser o seu primeiro casamento fora das salas do edifício da Fontes Pereira de Melo.

O casamento está marcado para as 12h do dia 29 de Abril.

Apareçam.

Carta de demissão (ou vou só ali aprender a tocar piano e já volto)

O raio da velha em São Félix, nós todos encostados em fila indiana junto ao muro de pedra, o Toyota Corolla estacionado na faixa de rodagem em cima da curva de cotovelo, e eu a sonhar com o gemido do portão de ferro a abrir-se, a sonhar com o alpendre da casa do meu avô Oliveira e com o pomar das laranjeiras que não via há tempo demais, e a velha que se fixou em mim e que não me largou, a cara dela craquilhada por entre um lenço preto de viuvez, agarra-me nas mãos, chama-me Magui – e eu tinha uma borbulha na testa, desculpem-me, mas eu tinha catorze anos, mas não era loira como a Magui, que me passou para o sangue os seus olhos azuis –, o raio da velha que há-de martelar-me durante muito tempo, inspeccionou bem as mãos, virou-as e revirou-as (eu já roía as peles quando estava nervosa), e diz assim muito séria, olhos nos olhos do meu tio Manuel:

Ela tem mãos de pianista.

Vinte anos depois de me ensinar a desenhar todas as letras do alfabeto e, seguramente, os mais belos xis de Lisboa, a professora Gertrudes Maria sentada no Luanda, surpreendentemente igual a si própria, como se tivesse sido ontem que me dispensara de fazer os trabalhos de casa para todo o sempre porque me tinham morrido as duas avós, nos olhos, nos olhos muito grandes, as mesmas olheiras negras e o fiel companheiro verde-velha, pintado a pincel por cima das pálpebras e diz-me assim muito séria:

E tu, sempre és pintora como o teu pai?

(o mais surpreendente deste encontro nem foi o lembrar-se, vinte anos depois, que eu queria ser pintora; o mais surpreendente foi lembrar-se que eu amava a cor roxa, que pintava céus e malmequeres roxos com lápis de cera Sino)

Depois, escreve-se um blogue, escreve-se um blogue porque o salário não estica para lá do dia quinze, porque as escadas de um quase bicentenário quarto andar sobre a Duque de Loulé parecem uma via-sacra todos os finais de noite em que se carrega sobre o ombro direito escada acima uma menina com cabelos de ouro, essa sim, que podia ser confundida com a reencarnação da sua avó Magui, e à qual eu disse assim, sem pensar, meia anestesiada e com o ventre aberto a ser costurado pelas mãos hábeis do doutor Moniz:

Ela tem mãos de pianista como a mãe.

Escreve-se um blogue porque a família Pestana, toda a descendência do patriarca João, é preguiçosa e, certamente, tem artroses nos joelhos ou falta de paciência para trepar os sessenta e cinco degraus podres até às assoalhadas de uma casa velha da rua de Santa Marta. E, de repente, escreve-se, escreve-se sem parar até à tendinite, porque as noites são brancas, e matam-se a escrever num teclado branco, enquanto os dias se ganham a dedilhar num teclado preto.

(e o raio da velha, outra vez, com esta coisa das teclas brancas e pretas – ela tem mãos de pianista)

De repente, alguém que todos nós conhecemos bem, alguém de quem temos saudades e a quem eu gabava umas botas de estilo militar, esse alguém escreve (que é coisa muito mais séria do que apenas dizer da boca para fora):

Ela é a melhor escritora.

E porque alguém escreveu isto, a vida muda drasticamente: o raio da velha já não martela tanto, só pontualmente, quando os dias se ganham a escrever no teclado preto ao som de Chopin.

E na madrugada do dia que assinala o começo da Primavera, há trezentos e sessenta e cinco dias, os jardineiros da câmara de Lisboa atarefados a plantar cinquenta mil flores, entretidos com a empreitada entre vasinhos de ciclames e amores-perfeitos, ancinhos e pás pousados na calçada, e cumprindo o destino, nessa mesma madrugada, houve alguém que também se habituara a noites brancas, houve alguém que, perto da Estrela, atrás de um teclado de cor incerta, foi a visita cinquenta mil do tal blogue, apenas porque se escreveu, porque se espalhou que ela era a melhor escritora; e esse alguém, esse um em mil milhões, predispôs-se a ir buscar um dicionário com mais de duzentos anos debaixo de uma roseira, predispôs-se a recolher cartas de amor debaixo dessa mesma flor que ainda se lembra de haver um leão na Estrela.

E a vida ficou mais simples.

A dona Maria continuou a vir buscar-me, ao final da tarde, um exemplar do 24horas para se rir no autocarro depois de uma jornada de trabalho de catorze horas, eu continuei a fazer obituários de prédios bonitos que todos os dias morrem nas imediações da Viriato, a fumar despudoradamente no meu posto de trabalho e a levar, por isso, com as culpas de cancros alheios.
Contei histórias mirabolantes de mendigos de olhos azuis com sorrisos pueris aos quais o Cerejo me ordenou ir entrevistar do alto dos dez centímetros dos meus saltos altos, loucos que encontrei meses depois, com um recorte de jornal junto ao peito, com mil e quinhentos caracteres impressos a bold junto ao peito.
Nos piores dias, fui cantar missas de Mozart no fumódromo e a Anabela chamou-me de rapariga peculiar.
Escutei com atenção, agarrada ao auscultador do telefone, o fabuloso destino do senhor Guilhermino que nunca cheguei a publicar, e o Cerejo continuou a chamar-me “coisinha”. O Adelino disse-me, no corredor, junto à máquina do café, que eu escrevi uma coisa muito bonita e até hoje eu não faço ideia o que foi; a Teresa de Sousa deu-me conselhos de puericultura no elevador, e quando a coisa estava mesmo mesmo a rebentar, quando eu quase não conseguia respirar, entre plenários, greves e rescisões, encontrei um frasquinho de água com sabão na mala e soltei milhares de bolas irisadas ao longo da Andrade Corvo e sorri quando ouvi o nosso louco, o Afonso, a gritar:

A nossa rua está linda!

(mais acima, há algum tempo, no refeitório do Pingo Doce da Tomás Ribeiro, um velhinho também se aproximou de mim com um saco cheio de carcaças e segredou: vou dar pão aos malucos, e eu fiquei muito aliviada de não ter sido presenteada com um pãozinho)

Espera-se tudo a partir de hoje.

Espera-se que o cabelo me cresça até ao rabo, ou que fique todo branco aos trinta e cinco anos, como é o fado dos Ralhas. Espera-se que as Ginkgo Bilobas de Lisboa deitem daqui a vinte anos o fedor a manteiga rançosa que alguma louca vaticinou e teve o privilégio de escrever nas páginas do Público. Espera-se que o António Barreto continue a dar conta da floração dos jacarandás todos os anos em papel de jornal (e, já agora, que haja mais jacarandás em Lisboa). E eu espero mesmo esta: que o prédio da Tudor, na Fontes Pereira de Melo, não se suma na memória, e que seja resgatável apenas no arquivo municipal de fotografia, ou num texto do Público que fala de dragões e pérgulas de rosas. Quem sabe, quem poderá saber, se calhar, até se espera que alguém, um dia, sabe-se lá porquê e para quê, encontre um texto de uma jornalista com um apelido estranho, sobre um raro metal precioso chamado paladium.

(e, certamente, espera-se que a Cristina Ferreira continue a aconselhar mocitas em idade fértil a nunca se mudarem para casa dos namorados, porque, mais cedo ou mais tarde, hão-de ficar com uma mão à frente e outra atrás, que a Lurdes Ferreira enxugue, nos próximos anos, as lágrimas de adolescentes traídas pelas suas melhores amigas, que o Paulo Madeira ensine ainda muita gente a pontuar com vírgulas, que a Ana Henriques continue a vir para a redacção sem soutien, que o Cerejo se faça ouvir por toda a redacção quando está a descobrir ao telefone alguma escandaleira, que o Miguel Madeira faça mais uma tatuagem, que o David Clifford improvise serenatas à hora do fecho, que a Lena e a Sandra tenham a pachorra de ensinar alguma garota interessada a paginar as cotações da bolsa, espera-se que alguém se barrique na varanda da Viriato, que o Zé Bento Amaro continue a fazer rimas porcas, que o Tiago não tenha emenda e continue a chamar darling às suas editandas, e que o Pedro Ribeiro seja sempre facilmente contactável no aquário de vidro, com um maço de Pall Mall azul)

Por enquanto, eu só espero aprender a tocar piano.

Até já.

(oito caracteres; oitocentos, umas brevezitas, por cada ano que passei convosco)