segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Fim-de-semana

Fim-de-semana bizarro, o do Carnaval (terá sido uma brincadeira de mau gosto?): sentiu novamente o que é uma vida fora de casa, longe do teclado e da Internet. Não desgostou. Mesmo sem os beijos e os amassos.

sábado, fevereiro 25, 2006

Brancas

Era uma amiga anterior ao blog, desconhecia que os dias se escreviam aqui.
Depois do almoço, sobre o laguinho do Picoas Plaza, sítio recolhido por guarda-sóis e aquecedores a gás, onde os pardais eram menos mal-criados e mednigavam lá de longe por umas migalhas e restos deixados nos pratos do almoço, ficou a saber da sua existência.
A outra ficou de lhe enviar o endereço por email. Esqueceu-se. Foi uma sexta-feira dura, o 13 tinha passado há muitas folhas da agenda, mas foi 13, para si foi 13. Não sabia porque esperava outra coisa. Dizia para dentro, em silêncio, com o dedo pai de todos enfiado na boa, já em carne viva: a sorte protege os audazes, mas a mediocridade vence sempre; só se dá bem quem não tem noção das suas limitações.
A partir de agora, iria usar, para sempre, tatuado no braço direito, o epíteto, "miss 90 por cent". Por mais que trabalhasse, por mais que desse de si, por mais que nunca chegasse a tempo de dar banho ou jantar à sua filha geneticamente modificada (por que outra razão teria a pequenina olhos azuis e cabelos dourados?), era sempre avaliada a 90 por cento.
Estava triste. Levava o coração ao peito e isto não era uma figura de estilo: levava, realmente, o coração ao peito; a Magui comprara-lhe um gigante coração de Viana, era suposto abri-lo apenas no seu aniversário, mas ela fazia anos no fim de Julho, não era justo ter o coração fechado tanto tempo; para corações amarrados, banhados a titânio, inquebráveis e à prova de bala, bastava o que lhe batia do lado esquerdo do peito (e isto sim, é uma figura de estilo; qual não sei, já não sou tão boa nisto como era antes).
Chorou. Não sabe bem porquê, mas chorou, escondeu as lágrimas atrás de uns vasos de bambus de plástico, descolorados pelo sol de Verões passados. A amiga reparou nos seus cabelos brancos. Todos os dias nasciam novos cabelos brancos, ela já não os contava, sequer, via-os, à contra-luz, de manhã, no único espelho da casa, o dragão do Gaudi, que comprou no Bairro Gótico de Barcelona, e nessa mesma viagem, numa Páscoa cheia de chuva, uma bruxa disse-lhe, nas Ramblas, que ia ser terrivelmente feliz, depois de viajar muito, mesmo muito, pelo mundo inteiro.
Gostava do inesperado. O telefone tocou, o almoço foi combinado daí a dez minutos, chorou, não por ter sofrido um ataque de auto-comiseração; era demasiado orgulhosa, era demasiado forte para ter pena de si própria. Chorou mais uma vez de raiva. E com aquela lágrima, entre três, ou quatro Davidhoffs, nasceu mais um cabelo branco.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Olimpíadas do Amor

Sou campeã nacional nesta modalidade: pleasure delaying. Colecciono troféus, de vez em quando passo-lhes Duraglit para ficarem mais brilhantes, com o dourado e o prateado e o cobre luzidio; é que eles oxidam, ganham verdete, fechados no museu do meu coração.
Sou séria candidata, a imprensa do coração aponta-me como a maior esperança mundial à medalha de ouro das próximas Olimpíadas do Amor.
Nunca ninguém sabe é quando se realizam estas Olimpíadas. Muito menos onde.
Pombos-correio batem com o bico às janelas desta incansável classe de desportistas a que pertenço, trazem presos à pata, com um cordelinho de merceeiro, azul, encerado, um papel enfarruscado, manuscrito, e, escrito a tinta invisível, vêm duas informações: data e local.
É uma sociedade secreta, a dos desportistas do amor, não andam de avental, ou de luvas brancas, mas é uma sociedade secreta, a dos que se levantam às seis da manhã todos os santos dias e treinam seis horas por dia, três de manhã, três ao final da tarde, os que vivem o amor com todos os poros da sua pele, que o respiram, que o bebem, com uma sede e com uma fome de terceiro mundo, os que tratam mal do corpo e da alma também, que os relegam para segundo plano, fumam desalmadamente, queimam pestanas à noite, apanham tendinites de esforço nas mãos, os que escurecem o pedaço de pele por baixo dos olhos, apenas pelo que é verdadeiramente importante é o exercício de um músculo, um único músculo, levam uma vida inteira a aperfeiçoar uma emoção.
E aos 30 anos, como qualquer atleta de alta competição, estão acabados.

[E o mais sinistro foi a pessoa que esteve na minha cabeça o tempo todo, o tempo todo, pouco, nem coisa de dez minutos, que me acompanhou, ao ritmo de um compasso ternário perfeito, espartilhado pelo som de um metrómetro louco e destas palavras]

Anaïs and June

[Misses Olheiras 2006, fotografadas por Diana Quintela, no mui divertido Jantar dos Encalhados. Quanto às olheiras, Santo Amaro também as tinha e não se queixava, bem pelo contrário, toda a gente lá queria viver]

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A prova do crime


Com algum delay, madame Quintela começa a enviar as fotos do célebre Jantar dos Encalhados. Foi esta a vela que quase me imolou.

Queixume

Nem uma licitação. Nem uma para amostra.
Não há direito: um puto norte-americano [não é norte-americano; é britânico, corrigiu-me agora o famoso senhor Vring] cria um site, com um nome bem esgalhado é certo, milion dolar site [milion dolar page, diz o holandês voador], e, num instantinho, fica com a conta recheada com um milhão de notas verdes e com a fuça borbulhenta estampada no papel de péssima qualidade da imprensa mundial.
Eu já estava a imaginar-me como o novo fenómeno do Entroncamento, eu sempre tive ideias malucas, pensei que esta ia pegar, a Necessidade (uma mocita trigueira com as bochechas rosadas, que é da família da outra velha chata que não me larga, a Prudência) é a mãe do Engenho (e esse é o miúdo promissor da humilde família, aos 35 anos vai lançar uma OPA hostil à Sonaecom), eu até pensei que o meu avô Oliveira se ia orgulhar desta minha ideia peregrina, aos oito anos, agarrei numa lista telefónica velha e num caixote de nozes e anunciei-lhe que ia vender cartuchos de nozes para a Estados Unidos da América e ele deu-me uma festinha na cabeça, e deitou por terra o meu espírito empreendedor; eu já não era certa na altura, nesse dia, eu telefonei à Magui a chorar, telefonei do telefone preto, propriedade dos TLP que tinha uma rodinha e fazia trimmmm, número 898288, eu liguei à Magui em hora do expediente, porque o meu avô Oliveira não me deixou ir vender nozes para a avenida, e eu queria vender nozes porque precisava de uns ténis no dia seguinte, porque ia haver uma aula de ginástica e a professora mandou vir toda a gente de ténis e eu não tinha nenhuns, eu sofria por isso, pela vergonha de não ter ténis, eu sabia que a Magui não tinha dinheiro para os pagar, ganhava trinta contos e o meu colégio era vinte e muitos (isto foi há vinte anos e, na altura 150 euros, trinta contos, não dava para sustentar uma criança), eu disse também à Magui que a criada Isabel me queria envenenar, eu ainda hoje não estou muito certa que não fosse esse o propósito de me servir bifanas com a embalagem da mostarda fora de prazo, disse-lhe que estava muito infeliz e que queria morrer, foi a minha primeira manifestação de tendências suicidas, as minhas avós tinham morrido e o meu avô Oliveira não dizia coisa com coisa, estava órfã, tinha tantas saudades da avó Tóia, eu sei que fui sincera, eu queria mesmo morrer, eu gostava dos dias de chuva porque na minha cabeça a avó Zá e a avó Tóia estavam a lavar as suas nuvens, e a Magui veio a correr dos Armazéns da Matinha, apanhou o 50 até à Rotunda do Relógio, depois o 44 até à Rio de Janeiro, e fomos comprar uns ténis, eram fucsia, comprámo-los na defunta sapataria Angolana, na rua Palmeirim, atrás do Mercado de Alvalade Norte, eu lembro-me de tanta coisa, há quem nasça com esta sina, de ser um mero depósito de memórias, penso muito nisto: será que daqui a vinte anos eu ainda me lembro de tudo isto? Será que me lembro dos Balenciaga que comprei no Corte Inglés?
Eu achava que esta era uma ideia de um milhão de euros, eu escreveria por um euro, sim, fodem-me um juízo para eu escrever um livro, e assim talvez fizesse sentido, por necessidade, foi sempre assim na minha vida, só fiz alguma coisa por necessidade e eu já estava a imaginar a minha cunhada a entrevistar-me, a foto tinha que ser da minha irmã de nome, uma breve no Boing Boing, talvez, site mais geek à face da terra, eu achei mesmo que era uma boa ideia.
Uma gaja oferece contos a um euro, vende a alma ao Diabo por um euro, e nem um, nem um dos fervorosos leitores da [T]ralha é suficientemente corajoso para tirar uma moedinha, a mesma moeda que dá, sem pensar, maquinalmente, todos os dias ao carocho que arranja um buraco de estacionamento ao pé do escritório, nenhum desata os cordões à bolsa para ver o jogo, já nem digo subir a parada, apenas pagar para ver o jogo, não se fazem mecenas como antigamente, não há Medicis em Portugal, mas, também, para quê? A gaja já escreve lençóis de borla, e quando eu receber, em Oslo, o Nobel da Literatura vão se arrepender de ter deixado passar esta oportunidade em branco. Vão, vão.

Saudades e vícios [as minhas tardes no messenger]

Vende-se says: estou apaixonada pela Natureza do mal
Dão-se pérolas a porcos... says: então?!
Vende-se says: gosto imenso dos posts do Luís
Dão-se pérolas a porcos... says: o que vale é que tens uma paixão dessas por semana
Vende-se says: lol
Vende-se says: ando apaixonada pelo João Pedro George também
Vende-se says: estou para lhe escrever um mail há semanas
Vende-se says: mas antes hei-de escrever ao Luís
Dão-se pérolas a porcos... says: o Esplanar adoro
Dão-se pérolas a porcos... says: a natureza do mal esqueço-me
Vende-se says: estou triste com o silêncio do FTA
Vende-se says: arrisco-me a dizer que estou com saudades
Vende-se says: lol

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Um mês nas lides decorativas

...

Leilão

Vendo-me.
Um euro por história.
Quem dá mais?
A Anaïs já o fez, há umas boas dezenas de anos, em desespero de causa, escreveu contos eróticos a um dólar, eu devia aplicar a taxa de inflação, eu devia cobrar mais caro, não me devia vender a preço de saldo, mas eu vendo-me a qualquer preço se for preciso, e o investigador de Cambridge perguntou assim, no sábado do temporal, e a ideia surgiu nesse instante, e nada é por acaso, no dia seguinte, Domingo, esbarrei com os contos da Anaïs na Bertrand, ele perguntou: Estás na tua fase Nin, Dia?
E sim, acertou na mouche, é o seu espírito científico aguçado, muitas horas ao microscópio, vê-se ampliado depois de muitas horas ao microscópio, eu procuro o Henry, eu descobri a June, separei-a do Henry, aquele não era o nosso Henry; antigamente eu era pupila deste Henry de Cambridge, ele advertiu-me logo que não podia ser o meu Henry, porque não sabe escrever e diz, também, que eu passei a mestre, ele ensinou-me bem, a conta da Amazon chegou aos três dígitos, isto nos tempos em que eu gastava 150 euros por mês a encher a garrafeira dos jantares lá de casa, isto foi há muitos anos, eu era uma miúda, a sorte protege os audazes, ele encontrou a discípula perfeita do nada, no desaparecido ICQ, estávamos no ano 2000 da graça do Senhor, eu li tudo o que ele sugeriu, eu andei à cata de postais eróticos dos anos 20 para a sua colecção, estou perfeita, diz-me ele com o vento, a chuva e os trovões a concordarem.
Preciso de dinheiro.
Tenho filhos pequeninos e não os posso criar, e 150 euros de pensão de alimentos, ouvi, é mais do que suficiente para criar um filho, ouvi isto e ouvi mais: há belos pares de sapatos de criança a dez euros, ouvi isto sem acreditar, 150 euros não compravam sequer vinho de qualidade para os meus jantares de há seis anos atrás, no meu 11º andar sobre a cidade, ouvi isto com os punhos cerrados no Palácio meu vizinho, mas ouvi expressões magníficas, "paralelismo pedagógico", "projecto educativo", mas no meu cérebro, a ribombar, belos pares de sapatos a dez euros, eu fiz as contas, 150 euros chega para criar uma criança, eu ouvi isto e a mão ficou doente.
Passará, passará e nenhum há-de ficar, eu fico doida com estas lenga-lengas infantis: que mãe deixa um filho no bom barqueiro e ele até pode ser bom, não duvido que possa ser um velhote simpático, mas pode também ser um dos que comem criancinhas ao pequeno-almoço; e atirei o pau ao gato e ele não morreu? O que é isto? Joaninha voa, voa, que o teu pai foi a Lisboa com uma faquinha na mão para espetar no coração? O mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz, bate na areia e desmaia porque se feliz. Até o mar é casado, até o mar tem filhinhos. É casado com a areia, os filhos são os peixinhos. Até o mar tem mulher, é casado com a areia, bate nela quando quer? Alguém me liga para a APAV rapidinho, por favor?
A minha filha ontem trauteou pela primeira vez o meu nocturno de Chopin favorito e eu não lhe ensino estas parvoíces dos gatos que não morrem à paulada. Ela gosta de rap, Da Weasel, “Toda a gente” e eu digo-lhe, filha, há mesmo uns quantos bacanos a mais, e quantos belos dentes partidos se podem comprar por dez euros? Acaba essa e passamos para a faixa nove e lá vamos nós as duas a dizer “está tanto frio lá fora, que eu não vejo a hora”. Adora Evanescence, “going under”, não diz quase nada, fala russo, fala a língua dos seus olhos azuis e do seu cabelo dourado, e depois canta com o Abrunhosa “Eu estou aqui”, na perfeição.
E eu preciso de dinheiro.

Repeat[one]

Tento ter a força para levar o que é meu,
Sei que às vezes vai também um pouco de nós.
Devo concordar que às vezes falta-nos a razão
Mas não há razões para nos sentirmos tão sós.
Vem fazer de conta, eu acredito em ti,
Estar contigo é estar com o que julgas melhor.
Nunca vamos ter o amor a rir para nós
Como queremos nós ter um sorriso maior?

Da Weasel. Casa (vem fazer de conta)

Blogmother

Isto é muito importante, muita atenção, queridos leitores: há mais dois blogues no Universo, e que passam a fazer parte das minhas intensivas e doentias leituras diárias.

Do meu companheiro de guerra Telescópio, temos o fenomenal Danos Colaterais (só espero que ele não se ponha com merdas de acabar o blogue às mil visitas: queridinho, se fosse assim com o [t]ralha era um blogue que se desintregrava ao terceiro dia).

O one man show Goiaoia (espero ter escrito isto bem, até se me esngasgaram os dedos), revelação mundial do Jantar dos Encalhados, estreia-se nestas lides com o Corações ao Alto.

Estarei atenta aos meus afilhados.

Assinado
Blogmother

A mão. Doente.


Hoje vi demais. Coisas belas. Coisas mesquinhas. A mão está doente outra vez.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Black bird [em draft há muito tempo. Para o 33.333]

[estava há demasiado tempo em draft, a ganhar teias de aranha e mofo; os drafts preparam uma nova revolta e da última vez que se amotinaram eu quase enlouqueci; dei a liberdade condicional a este post, que ficou-se pelo prólogo. Têm a mania que eu sou a melhor escritora mas enganam-se. Quando é a sério, quando é mesmo a sério, eu não consigo]

Se eu começar este post antes da meia-noite, antes de virar bruxa má (não tenho perfil para gata borralheira e prefiro andar no céu de vassoura do que no chão de terra batida, aos solavancos, numa carruagem feita de abóboras), toma este embrulho: não rasgues o papel que é muito bonito, cor de vinho com motivos barrocos impressos a dourado; é para abrir com jeitinho, é muito frágil, é para lavar à mão com Woolite a temperatura baixa, é o teu presente de anos (o relógio do Ibook diz que sim, que eram 23 e 59; escrevi o "Se" e virou para as 12:00).
Se não, se o Blogger o publicar daqui a uma hora e meia, tempo médio de incubadora de um post deste blogue, já com a data de Sábado, dia 4 de Fevereiro, tant pirre; mas é para ti de qualquer forma, eu é que tenho a mania que sou intensa, eu é que gosto de encher a minha vida com estes reptos que não servem para nada, só para eu andar entretida, para não me cansar da vida, ainda há pouco andava perdida pelas ruas da Lapa e surgiu este, para me fazer companhia no labirinto de ruas com casas bonitas, muitas delas abandonadas: se eu arranjar lugar de estacionamento em frente à porta, pelo décimo primeiro dia consecutivo, algo fantástico vai acontecer nos próximos três dias.
Estás a ver como é?
São as vozes da minha cabeça, não chateiam, até me acalmam, eu já estava com um nervoso miudinho, peito encostado ao volante, olhos em busca de um ponto de referência qualquer, às voltas no labirinto sombrio do teu bairro fino: respira fundo, hás-de sair daqui, pensa, o que é que conheces na Lapa? Pouco, mesmo muito pouco, a UGT, a sede dos Trabalhadores Social-democratas, isso é tudo na Buenos Aires, não devo andar longe, mas eu já te disse que nunca fui ao jardim da Estrela?
A Lapa às escuras é bonita, dizes-me que, de dia, tem melros à cata de minhocas, e deixa-me contar-te que onde eu cresci também havia melros, ia para o liceu às primeiras horas da manhã e via melros no estádio 1º de Maio, do Inatel, vês, 1º de Maio não tenho quaisquer problemas em escrever, é só o 25 do 4, mas o estádio antes era da FNAT – Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho – e eu ia lá muitas vezes com o Hugo e com o tio Manuel, e ele, a meio dos anos 80 ainda lhe chamava FNAT, a minha mãe ainda lhe chama FNAT, deixa-me dizer-te que tinha o lugar de estacionamento à porta pelo décimo primeiro dia consecutivo, que os três dias já passaram, passaram quase vinte e nada de extraordinário me entrou pela ranhura da caixa do correio a dentro (eu nunca recebi uma carta de amor, eu queria um dia receber uma carta de amor, em papel, num envelope, tenho aberto a caixa de correio que tem uma lata de um quilo de comida de cão lá dentro, a caixa, castanha, que quase nunca abro, porque ainda me dói, queima quando lhe toco, mas tenho-a aberto à espera de algo extraordinário) e, um dia, convenci-me que os melros eram mau presságio. Vi um bando deles e aconteceu uma coisa horrível nessa semana: eu tinha entrado na faculdade, e os gatos da Magui começaram a morrer como tordos, morriam sem explicação, ficavam com o olhar perdido, vidrado, como os olhos das bonecas, sabes como é?
E eu lembro-me de pegar na Eva, que era uma persa azul, era a minha gata, de ver a minha imagem com ela junto ao peito a triplicar, no toucador arte nova do quarto da Magui, e dizer “Não, não, não”, assim, três vezes, tantas quantas as imagens reflectidas nos espelhos do toucador. Passadas algumas horas ela estaria morta, eu sabia disso, nessa semana, morreram 17 gatos e eu deixei de chorar pelos gatos, e ainda hoje não estou certa que os melros sejam bom presságio.

[O resto da tua prenda há-de ser parida. Um dia]

Verdade

Cansada de gente e de ser gente.

Roubado de um livro que estava no fumódromo, de seu nome , A Santa Mãezinha, quem escreveu isto, no masculino, foi um senhor que se chama Carlos Gouveia e Melo.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Mais uma perturbação

Isto é muito perturbador.
Encontrei o Paulo no Welcome Center e pensei isto, quando o avistei e estremeci, e disse Paulo. Não gritei, mas também não sussurrei, e ele não me ouviu e ele também não me viu, e eu, ainda assim, sorri, sorri com a cara toda, e o assessor que estava ao meu lado não percebeu a alegria que não consegui conter, e eu pensei isto: que devia ser proibido passar tanto tempo sem vermos quem amamos.
Não faz sentido. O destino põe e dispõe. Dá as cartas, esconde o jogo, vicia-o, faz batota quando bem quer e bem lhe apetece.
Todos os dias temos que cansar a vista, enferrujamos os neurotransmissores, gastamos a mielina que envolve as ligações nervosas com rostos que não nos dizem nada (o maior terror da tia Lena é que eu tenha esclerose múltipla, que os Ralhas me tenham passado a esclerose múltipla nos genes, da mesma forma que me passaram os joelhos defeituosos e a coxa enormemente desproporcionada à cintura fina; ela tem medo quando eu lhe digo que às vezes não sinto as mãos; ela treme quando se apercebeu que eu deixo cair tudo das mãos, que não há copos e pratos que me resistam; a Magui diz que eu pego em tudo com a pontinha dos dedos, a minha tia Lena sofre por pensar nisto, ela assusta-se com o meu cansaço extremo, ela deu-me tudo a ler sobre a esclerose múltipla e, honestamente, eu tenho medo de ir ao oftalmologista, e se eu tenho uma perda de visão grande?, e por ela eu já tinha feito várias ressonâncias magnéticas, e por ela eu sei o que é a mielina e eu estou atenta a todo e qualquer sinal estranho do meu organismo).
E hoje eu fixei uma cara, dei-me ao trabalho de a guardar. Estava no Palácio meu vizinho, às vezes não quero passar por debaixo do túnel do Metro, por debaixo da Fontes Pereira de Melo, não quero lutar com os carros estacionados em cima do passeio na rua de São Sebastião da Pedreira - mais um santo meu vizinho - e vou pelo palácio. Apanho a boleia do elevador panorâmico, o segurança, preto, enorme, mete sempre conversa, às vezes, abusa e tenta a sorte, e questiona-me como é que eu não tenho namorado, eu não ando com nenhum placard ao peito, mas ele soube, apercebeu-se que eu não tenho namorado; é que ele vê-me à noite sozinha com a Carolina, eu sou uma cara que ele vê todos os dias, e, provavelmente, tal como eu, ele não vê uma amiga do coração há anos, mas a mim, vê-me todos os santos dias, às vezes de manhã, outras vezes à noite, de vez em quando, de manhã e à noite, e se eu quero dormir, não devia tomar café à noite, e se eu quero deixar de ver branco à noite, devia tomar o chá que a Magui comprou na ervanária, mas eu gosto é do chá verde, e do preto e, recentemente, do encarnado.
Eu fixei uma cara no Palácio porque ele não tirou os olhos de mim. E eu gosto de quem faz duelos de olhares, como corridas de carros rumo ao precipício. E ele não baixou o olhar, e passámos muito perto um do outro, e ambos olhámos para trás, pelo ombro, e sorrimos. Eu gosto de uma boa luta de olhares. E é raro encontrar bons adversários.
Mas isto é a excepção. Trabalhamos ao lado de rostos sem expressão, em silêncio, no meu caso, trabalho com os "cascos" enfiados nos ouvidos, e os cascos são uns headphones que, outrora, pertenceram ao meu sub-director. Têm quatro metros de fio, posso ir até à máquina de café com eles, se quiser, vou fumar à janela também com eles a aquecerem-me as orelhas, e posso até nem ouvir música, eles são conchas perfeitas: não se ouve o mar, mas insonorizam-me totalmente da realidade, é a minha afirmação silenciosa, mas geralmente oiço Bach, ultimamente tenho ouvido Purcell (ando à procura da peça Dido et Aeneas, mas não encontro em lado nenhum; ouvi-a na Mezzo e fiquei apaixonada, por ser muito triste, é um queixume lírico, uma das vozes diz: "remember me", repete esse pedido vezes sem conta; é belíssimo e ainda não saiu da minha cabeça desde que o ouvi, bastou uma única vez para não sair da minha cabeça), e a minha vizinha, a encalhada, a mais bela encalhada de todos os tempos, agora envia-me música quase todo os dias e, de repente, aprendo músicas novas, e eu sou conservadora, eu sou conservadora em todos os sentidos: eu comi o meu primeiro mil folhas há pouco mais de um mês; eu fui pela primeira vez ao indiano da Gama Barros no aniversário da Magui, depois de 15 anos da sua abertura, 15 anos depois de dizer quase todas as semanas que lá queria ir; eu uso o mesmo perfume há cinco anos, apesar de ter dezenas de frasquinhos guardados numa gaveta do closet; eu gosto de hábitos: eu vou tomar café todas as manhãs com a minha mãe, eu vejo a novela das nove da noite do GNT com a minha mãe, eu leio a TV Sete Dias às terças à noite, eu leio a Dica do Lidl à quinta-feira à noite, por isso, isto de admitir músicas novas, de amar tudo o que ela me envia, tem que se lhe diga. Aos poucos, vou deixando de ser uma mulher de hábitos, de mansinho, vou aprendendo um mundo para lá das rotinas de prazer, mas com os "cascos" nas orelhas, com Bach, Purcell, Kristen Hersh, ou Anja Garbarek em repeat one, eu vejo caras que não me dizem nada, bom dia, boa tarde, passados nove anos, eu ainda não sei o nome de alguns, eu sou bombardeada de gente que não deixa marca, e fico um ano sem ver o Paulo.
Isto é muito perturbador.

domingo, fevereiro 19, 2006

A história interminável [para o Da.]

Não se devia ter sentado no sofá laranja embalando o computador ao colo.
Não devia ter bisbilhotado o programa espião das estatísticas do blogue; devia ter ignorado que há mais um leitor, utilizador de Macintosh, a vasculhar-lhe as profundezas do seu ser, mas 300 pageloads a um Domingo é como um preto de cabeleira loira, e ela era pidesca, ela era compulsiva e obsessiva (nunca sabia se se escrevia assim; era das únicas palavras que lhe virava as costas, ela evitava-a, da mesma forma que evitava tratar o seu pai por pai, dirigia-se a ele sempre indirectamente, e o Macintosh de onde escrevia não tinha dicionário em português, ou isso, ou ela é que não o encontrava - era o mais provável -; ia googalizar num instante, mas, tarefa árdua, a net é um antro de analfabetos: havia milhares de páginas com obsessiva e outras milhares com obcessiva e os resultados das primeiras páginas do motor de busca falavam de neuroses obsessivas, ou obcessivas, ou como raio é que a palavra se escrevia, teorias do senhor Freud, ligadas a recalcamentos na fase anal, e acabou por pedir ajuda à sua homónima, que estava à janela do mensageiro da Microsoft, e de acordo com o dicionário da sua amiga era obsessiva e ela perdera tempo demais nisto), e sentiu-se na obrigação de seguir todos os passos deste IP, que decidiu pisar - espero que de galochas de borracha - a terra molhada do seu quintal.
Mas não devia estar a escrever - tinha o lixo todo para levar lá abaixo e nos bancos do Idea repousava um tabuleiro com lençóis passados e perfumados, que ainda não tinham o dom da levitação: precisavam que alguém os carregasse, de preferência sem lamúrias e queixumes, até a um quarto andar a pique sem elevador.
Também não devia estar a comer gomas de ursinhos desenfreadamente (compradas no Lidl de Xabregas, e quando se falava deste supermercado, ela deixava sempre esta sugestão: quem quiser ver gente feia, mesmo feia, é mesmo ali; perto do rio, dos contentores do Porto de Lisboa e das gárgulas do Convento). Não devia estar a fazer nada disto, porque prometera a si própria que, este fim-de-semana, ia descansar, ia cuidar de si, já não pensava direito, tinha os olhos raiados, às vezes adormecia nos semáforos, ou tinha pensamentos encavalitados, psicadélicos, geralmente à hora do almoço, a dar migalhas aos pardais do Picoas Plaza.
Fez uma cura de sono de um dia só.
No Sábado, dormiu cerca de vinte horas, mas sabia que não estava curada das insónias, não era assim tão simples. Desmaiou de cansaço no dia que antigamente era o mais odiado, não saiu sequer de casa, não tomou banho, nem sequer veio à sala. Ficou no quarto a ouvir os espanta espíritos numa dança e música loucas, e a ver os coitados dos amores perfeitos varridos pelo vendaval (não é sempre assim com os amores perfeitos? Não há sempre uma ventania que os leva para longe?). E ela tapada até às orelhas com dois edredons, luzes apagadas, Skype ligado, a conversar com Cambridge, e discutiu a insónia com o seu amigo investigador: o problema do sono era freudiano, as pestanas zangaram-se, as de cima não queriam saber das amantes que moravam um pouco mais abaixo; não dormia e os cabelos brancos surgiam sem pedir licença, enbranquecia a cada dia que passava, e com a zanga das pestanas secou também a fonte das lágrimas.
Ela sabia que o problema era grave, sabia que um demónio lhe tinha blindado o coração, mas recusava-se a pôr um pé no divã, só se fosse uma chaise longue de veludo beringela e com pés de garra, e ela perguntara ao seu irmão se o seu psiquiatra tinha chaise longue e não tinha, e ela inquirira mais uns quantos colegas de trabalho se os seus doutores tinham, e eles também não tinham, por isso, fazia a purga por aqui, sentada no seu sofá de veludo laranja, esburacado por muitas cinzas voadoras dos cigarros que queimava junto com as pestanas ao ecrã do computador da maçã.
Desligou a televisão. Não tinha paciência para filmes românticos, nem para notícias. Enquanto arrumava a cozinha, e juntava todo o lixo a um canto da divisão que era da cor do seu sangue, tinha o post todo na cabeça. E disse três vezes: vai-te deitar. Não se pode fazer obras de arte todos os dias. Os trevos de quatro folhas aparecem muito de vez em quando.
Mas era teimosa - e o post, claro, não estava a sair como ela imaginara.
Era sempre assim, mas, ultimamente, sentia que tudo o que escrevia não estava bem. Envergonhava-se, pensava no suicídio do seu quintal, fantasiava sobre pragas divinas de cochonilha ou de pulgão, ou uma seca, ou granizo que queimasse toda a cultura. A verdade é que escrevia amputada e culpava a popularidade desmedida do seu quintal pelos caracteres sem carácter que floriam como trevos de três folhas no seu blogue. Mas não era só isso.
Não podia escrever sobre este, nem sobre aquele, muito menos sobre o outro e respeitava; nem todos eram exibicionistas, nem todos gostavam de ser fantasiados ou hiperbolizados, mas não era só isso. Tirara da linha vários posts geniais, textos escritos com um sorriso nos lábios, e até ali ela achava que só sabia escrever bem a dor, a dor sempre lhe ficou bem, era, aliás a sigla do seu nome: Diana Oliveira Ralha, ou seja, DOR, tinha pena de não usar este nome profissional. Ficou triste. Pediram que os tirasse da linha e não hesitou. Sabia que podia recusar, estava no seu direito, mas não hesitou, apesar de serem bons textos, e bem escritos e que surpresa, tinham sido dedilhados no teclado branco com um sorriso nos lábios, e por isso, não mereciam estar em rascunho, mas ficaram na prateleira, à espera de melhores dias, quem sabe, da Primavera.
Pedaços de si, pedaços de aparvalhada felicidade estavam agora em rascunho e a multidão que a seguia, ávida de leitura, nem se tinha apercebido, e ela admitia que era mesmo isso que lhe doía mais, mas não era só isso.
Só sabia escrever sobre si. A sua obra esgotava-se em si. Escrevia sobre si da mesma forma que a sua pintora favorita, a que tinha as sobrancelhas unidas e o farto bigode, também nunca se cansava de se auto-retratar. Porque se conhecia bem. Porque era de todos os que a rodeavam, a que conhecia melhor. E mesmo assim ficava zonza com a sua capacidade de perdão, de regeneração das feridas que, há dois ou três meses atrás, pareciam fatais e de sangramento eterno. Não parava de se surpreender e com a escrita, com a sua escrita, já tinha aberto duas ou três vezes a boca de espanto.
Ficou especada a olhar para as suas mãos. Mais de um minuto. Estavam geladas e muito cor-de-rosa. Ficava sempre com as mãos frias quando escrevia coisas sérias. Não entendia o que lhe diziam as linhas. Queria muito saber onde estava ela agora, procurava um corte feio, uma bifurcação na sua gigante linha da vida, via muitos cortes fininhos, que se prolongavam, tinha a linha comprida, que lhe chegava ao pulso, esfaqueada até metade: ia ser assim por mais uns tempos. Suspirou fundo. Estava preparada.
Procurava os amigos na palma da sua mão. Da direita. A que às vezes doi porque não consegue traspor o turbilhão de palavras que mora em si. Queria saber se estes, que se aproximaram e tomaram conta dela nos últimos meses, estariam vincados na sua mão. Não os encontrou.
Mas não tinha medo de nada, nem tão pouco se deixava afogar pela tristeza. Sentia-se quase invencível. A Santa salvara-a de uma morte certa e horrível, na fogueira, e ela até aqui só tinha pavor de morrer afogada, pelo fogo sempre se purificava, pensou isto no rescaldo do fogo mansinho que soprou, mas a Santa decidiu que não havia nada para purificar, por enquanto, pelo menos (procurou o fogo na mão e também não o encontrou).
Quis dizer isto ao David, há muito tempo, quando leu o seu primeiro post sobre a História Interminável; quis-lhe dizer que, durante muitos anos, teve pesadelos com o pântano da tristeza. Aquilo marcara-a tanto como a morte da mãe do Bambi, ou como a história da malvada da formiga que deixou a pobre cigarra morrer à fome e ao frio.
Era um pântano de areias movediças que só se deixava atravessar a quem deixasse a tristeza e melancolia na margem. Quis dizer-lhe isto, mas esqueceu-se. Chorou muito pelo cavalo, que não libertou o seu coração dos medos e tristeza, isto marcou-a tanto que até se lembra que se chamava Artax.

sábado, fevereiro 18, 2006

Espanta Espíritos

Os espanta-espíritos dançaram e cantaram a noite toda à janela de Santa Marta. E espantaram-me as noites que são brancas, as noites em que as minhas enormes pestanas teimam em não se abraçar para dormir.
Consegui dormir dez horas seguidas, embalada pela música celestial dos espanta-espíritos. Eles continuam a tocar, desenfreadamente, mas o som é sempre doce, é sempre mágico. Há muito que espantar, eu não durmo porque há muito para espantar e os espanta-espíritos à janela não têm capacidade para tanta coisa escura que têm que espantar.
Mas não tarda, eu assim espero, vou voltar a dormir, eu não sei há quanto tempo não dormia dez horas, este fim-de-semana, sem filha, sem amigas esquizofrénicas, faço uma cura de sono. E até tenho medo de me levantar, de espreitar a imagem que o espelho da casa-de-banho me vai devolver.

[Disse bom dia, não me assustou, desejou-me um bom dia e eu decidi que vou dormir mais um bocadinho, porque é mesmo muito bom dormir]

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Revelação

Aos poucos, deixou de saber escrever em papel, na Moleskine que levava consigo para todo o lado, onde anotava coisas sem nexo, ideias, frases, jogos de palavras (amava as palavras porque elas brincavam consigo desde muito cedo) que surgiam sempre enquanto estava a conduzir o seu Idea imundo (e às vezes surgiam em andamento e não nos sinais encarnados e no caos do pára-arranca e ela não sabia como nunca tinha tido um acidente grave e como é que a caligrafia ficava sempre perceptível).
Descobriu isto à hora de almoço, na companhia de uma silenciosa tosta de tomate e Mozarella, maravilhada com a chuva que caía e que, à contra-luz, parecia neve (e imediatamente, bastava ler a palavra neve, não precisava jamais de a ver para se lembrar disto, viu a ponte sobre o Tejo e os vidros embaciados e os quadros a caírem pelas paredes abaixo com vergonha, com pudor, e suspirou alto, tão alto que o vizinho do lado, que também falava em silêncio com uma tosta mista surda-muda e um bule de chá da marca Bodum, reparou em si, provavelmente, apenas fixou que ela trazia vestida uma camisola transparente, que deixava a descoberto o seu soutien tamanho 32, mas, com o suspiro provocado pela neve que não era mais do que a chuva, bastou um suspiro sincero, e o vizinho saiu daquele transe autista e acordou, por um segundo, não mais do que um segundo, para depois voltar a adormecer sobre o chá).
No ecrã, ao teclado, escrevia com as duas mãos, e não apenas com a mão direita, como tinha que ser no papel e com a caneta. Por isso, e apenas por isso, porque trabalhavam duas escravas e não uma, trabalhavam horas demais, em dupla inseparável, laboravam dia e noite na árdua tarefa, sem passar recibos verdes, não estavam colectadas, não havia na lista de profissões liberais, os tradutores de inquietude, por isso, no teclado preto da Viriato, ou no outro branco, de Santa Marta, estava mais perto dela própria. Com as duas mãos não era a outra.

[Post escrito com a mão direita, no papel]

Confiança

Estou farta de me enganar na password do meu email, apenas porque, inadvertidamente, te facultei palavra-passe e, cheirando o perigo desse acto tresloucado, decidi alterar a senha de entrada no sítio da Google onde se passa grande parte da minha vida. Mas, quer queiras, quer não, confio em ti cegamente. A password é novamente a que conheces.

Ao inominável, que também me segredou a palavra-passe do seu blogue de referência, porque é desbocado como a sua amiga Dia, apenas uma palavra: nunca na vida a vou utilizar para espreitar seja o que for. Mas não consigo esquecê-la.

Série de mini-posts

Quero escrever mini-posts hoje.
Mais do que escrever, quero dizer mal.
De quem usa a casa-de-banho dos deficientes.
Será mania das grandezas? Ou um desejo pérfido de ter uma qualquer incapacidade física? (o Cronenberg se precisar de gente e histórias estranhas, há aqui a rodos no jornal, não vá mais longe). Serão deficientes mentais? Talvez... E são todas mulheres, vêm todas do mesmo canto da redacção e eu já sei, também, quem é que não sabe para que serve um piaçaba, eu fico sempre encavacada quando o departamento de manutenção envia emails a pedir encarecidamente que não se roubem piaçabas, que não se enfiem os objectos e acessórios mais bizarros pelas canalizações abaixo.
Não entendo. A sério que não percebo e, ainda por cima, a porta não tranca (e isto é outra coisa que me perturba, porque é que os deficientes não têm direito a ter portas trancadas), há sempre a probabilidade de se passar vergonhas sentado na sanita com as calças para baixo e não é nada que já não tenha acontecido, já ruborizei muitas viciadas em casas-de-banho dos deficientes, é que eu vou lá lavar os dentes depois do almoço (sou uma ave rara no jornalismo, lavo os dentes), porque o espelho é maior e a minha higiene dentária fica, assim, maximizada, e já apanhei muita gente sentada no trono.
E agora vou escrever outro mini-post. Sobre a confiança.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Perto das estrelas (500º post)

Eu faço filhas loiras, de olhos azuis, por causa do gene recessivo da Magui. Esta é a fotocópia da Magui com dois anos de idade. Daqui a 14, vai ser igual à foto aqui em baixo.

Magui


Há 40 anos. É a mais bonita. Eu não disse que era a mais bonita?

As encalhadas (ou o post que vai fazer explodir as audiências deste blogue)

O milagre de Santa Marta (com uma ode à minha mãe pelo meio)

Eu anotei tudo. Anotei tudo para não me esquecer.

A memória já não é o que era, e eu estou sentada no café mais horroroso que algum dia foi projectado na cidade de Lisboa, quando me apercebo que o disco rígido precisa de ser formatado, e olho à volta e isto é obra de autor, tenho a certeza, é demasiado mau para ter sido feito por um qualquer curioso, e falha-me a memória outra vez, ao meu lado está uma mulher e eu sei que a conheço, mas não sei de onde. Ainda assim, lembro-me que a menina sardenta que me traz a bica se chama Paula, recordo que trabalhava na defunta loja de brinquedos que há mais de dez anos é uma ervanária, vá lá, menos mal, deve ser da fealdade do café, fico tonta, anestesia-me os sentidos e venham as tascas, venham os azulejos de casa de banho nas paredes, é que aquele café é por demais pretensioso, é novo-rico, roubou as cores às abelhas, amarelo, preto, chama-se Polana, fica ao lado do Fruta Almeidas da Avenida de Roma, e agora bebo lá o café porque o Pingo Doce da Conde Sabugosa está fechado para obras. E levo a Magui e a Carolina ao Minipreço da Óscar Monteiro Torres, porque a Magui vai todos os dias ao supermercado. É que nunca se sabe, diz, a dispensa dava para alimentar um batalhão durante um mês, mas nunca se sabe se os dias difíceis voltarão. A minha mãe tem terror a senhas de racionamento, ela diz que ficou assim, armazenadora de comida, na ressaca do 25 do 4, e eu acredito, eu lembro-me quando não tínhamos nada para comer a não ser a pescada zero que a senhora Rosa enfiava no carrinho das compras e a minha mãe comprava dois quilos e a senhora Rosa colocava, em segredo, cinco quilos bem pesados. A senhora Rosa não sabe que eu me lembro disto, ela não sonha que eu reparo que ela tem as mãos deformadas pelas artroses; tem um coração de ouro, a minha peixeira favorita, com o avental preto cheio de escamas de peixe, a senhora Rosa ainda não sabe fazer as contas em euros, os preços estão em escudos, ela não sabe ler, não sabe escrever, sabe fazer contas e ponto final, e a vida tem-lhe sido madrasta e não é justo, um filho morreu estupidamente, a bebé que encontrou abandonada na rua cresceu e seguiu pelos maus caminhos, e eu vejo tudo isto nas ruas das rugas da cara da senhora Rosa, e eu nunca vou esquecer o que ela fez por nós, em silêncio, sem magoar, sem humilhar, sem fazer caridade, mas eu também sei que nunca mais vou conseguir gostar de pescada.

Anotei tudo na Moleskine enquanto o semáforo não ficava verde. Hoje não vou escrever sobre o milagre de Santa Marta, sobre o fogo que apaguei como as velas do bolo de aniversário, em forma de coração, que comprei para a sobremesa do jantar dos encalhados.



E até o bolo ganhou vida própria e o coração dentro do coração, pintado a corante cor-de-rosa, escorregou pela massa pão a baixo. Os cépticos diriam que escorregou com o calor humano da minha casa semi flambé. Eu digo que escorregou, que se desencaixou das setas do cupido, porque não queria ser o Judas deste jantar, é que a todos os meus convidados (excepto o penetra do Carlos, mano da Thê, o único dos corações que não está encalhado num qualquer cais) acontece isto que aconteceu ao bolo: sofremos todos de amores arraçados de enguias, quando os temos perto, quando achamos que eles estão na mão, esquecemo-nos de pôr aquela tela anti-derrapante que se põe por debaixo dos tapetes (eu varro os doidos para debaixo dos tapetes, gosto de tapetes voadores movidos a doidos varridos) e eles fogem como do Diabo da Cruz.
Não posso, não devo pensar no sussurro do anjo ao meu ouvido, sem alarme, sem pânico, uma voz muito doce, muito calma: "Perigo". Eu não posso escrever sobre a vela que derreteu, que queimou a gaiola pombalina da minha sala, eu nunca lidei bem com as expectativas dos mortais, quanto mais dos deuses ou dos anjos, eu não sei porque fui escolhida, porque é que não me deixaram ser manchete do Local Lisboa do Público, e eu não sei rezar, ainda assim, fui à igreja do Coração de Jesus, a igreja da minha rua, e cantei para a Santa Marta, cantei porque é o que faço melhor, cantei uma Ave Maria Guarani do Morricone no filme a Missão e só ela ouviu, não estava ninguém, só eu e não ousei acender nenhuma vela, pedi-lhe perdão pelas minhas ofensas, pelo umbiguismo, pedi-lhe para me explicar num sonho, sem pressa, um dia destes, porque é que fez um milagre, logo eu que não faço nada de mais pelo mundo, que compro sapatos de 300 euros, mas não, eu prometi e não vou dizer outra vez para dentro "E se eu não tivesse acordado com a claridade fluorescente das águas furtadas bolorentas dos meus vizinhos de leste do prédio da frente”. Não posso escrever sobre o devir, dou em maluca se me ponho nestas conjecturas, é um sinal, estou em paz, não devo ser assim tão má pessoa, os anjos não acordam más pessoas, não guiam más pessoas para apagar fogos mansinhos, e à mesma hora que eu acordei, a Magui acordou também, e amanhã, a minha mãe faz 56 anos, eu queria fazer-lhe um post de aniversário, mas eu não consigo, a minha mãe é a mais bonita e eu não consigo fazer nada tão bonito como ela, estamos no McDonalds com a Carolina e eu, a despropósito, apenas lhe digo isto: "Os deuses não te podem levar. Eu reclamo-lhes a tua eternidade", eu não sou ninguém sem a minha mãe, eu tremo de pensar que a história se repete, que a mãe da minha mãe morreu aos 60, tinha eu seis anos, e quando a Magui tiver 60, a Carolina tem seis anos; e eu sei que tinha nove meses e era o bebé mais deprimido à face da terra, não me mantinha sequer sentada, porque a Magui não podia gostar muito de mim, a tia Lena contou-me isto e não era nada que eu não suspeitasse, eu sei que não lhe salvei o casamento, eu sei que o Zé Ralha passou toda a gravidez a dizer-lhe aborta essa merda, eu sei que lhe atirei uma bota da tropa à cabeça quando tinha 14 anos, acabadinha de entrar na idade do armário, eu sei que lhe grito todos os dias, eu sei que ela muitas vezes só se mantém viva por minha causa, porque não estou criada, ela diz-me que um dia vai ter que partir, que tem muitas dores, que vive num mundo de dor, e eu faço um pacto, eu lanço-lhe um repto, eu não aceito de outra forma: "mamã, assombra-me todos os dias então". E ela alinha.
Eu trato a minha mãe por mamã, não tenho vergonha de a chamar mamã, e estive para lhe ligar às seis da manhã, a contar-lhe do fogo, das chamas que saíram do meu peito e foram passear até à sala e chamuscaram, ligeiramente, a madeira da gaiola pombalina, mas não a quis assustar, rezei à minha maneira à santa Marta, disse a lenga lenga do anjo da guarda como quem conta carneiros para adormecer, vi o dia nascer e li todo o a-manh-ser até às oito da manhã, reguei os amores perfeitos, se calhar fiz mal, porque os meus joelhos dizem-me, com uma dor fininha como uma agulha espetada na planta do pé, que vai chover, e isto lembra-me que não tirei a roupa da corda, e então, depois de três cigarros de enrolar seguidos, e isto está a perturbar-me um pouco, liguei para o que é (de)coração e eu tinha anotado para não me esquecer, e não estou a escrever nada do que tinha anotado e já nem me lembro quando foi a última vez que fiz um ponto final.

As unhas de rameira em repouso sobre a manete das mudanças, a Carolina com o frasco de amaciador Herbal Essences na mão pequenina, a dizer sim sim sim, bananas!, e eu não lhe disse nada, ela devora publicidade, ela já está lobotomizada pela publicidade, pegou no frasco e disse sim sim sim com voz orgásmica, e no Domingo saiu-se com uma que ainda me deixa zonza: viu uma imagem de Buda, e nós dissemos que o senhor gorducho se chamava Buda e ela replicou: Buda é Deus; e eu anotei as gémeas obesas, cada uma com um bebé recém-nascido ao colo, cada uma com um cigarro na mão direita, iguais em tudo, o mesmo corte de cabelo, os filhos da mesma idade, quem sabe, os cigarros da mesma marca. O letreiro na rua a apelar às feias: "Venha ficar mais gira com os acessórios cem por cento gira", o mupi do pasquim que me paga o salário com um ruivo com a cabeça aberta em forma de livro, e eu no trânsito, ainda em chamas: porque é que puseram um ruivo eslavo na publicidade Vê-se mesmo que não é português, que foi retirado de um banco de imagens manhoso, e eu sem saber porque se poupa nos pormenores, eu hoje vejo tudo, eu vejo tudo porque não quero pensar no fogo, no milagre de Santa Marta, porque eu não sei a quem agradecer, eu não sei como pagar o milagre, eu não posso ser freira, não tenho vocação, não sei porque fui escolhida e abençoada pela Santa da minha rua.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Come on baby light my fire

Caros, são seis da manhã, acordei com a luz fluorescente dos meus vizinhos ucranianos, do outro lado da rua, ou isso, ou foi uma vontade louca de beber água; na realidade, não foi uma nem outra, porque os ucranianos levantam-se todos os dias às seis da manhã e nunca me incomodam com o raio da luz, eu não tenho cortinas, eu vou mandar retirar os estores, e quando estou ferrada (e estava, de tal forma que nem ouvi uns sms que foram chegando pela madrugada fora) também pouco importa a sede, aguento-me até de manhã. Quem me acordou foi o anjo da guarda, ou o São Valentim, lamento, recuo, foi o anjo da guarda, cá para mim o Valentim ficou ressabiado com esta história dos desengatados (a expressão é do André, no post alucinado em baixo, escrito a 18 mãos, e é muito boa), bebi a água e o anjo mandou-me ir ver se a Carolina estaria destapada, e nisto tenho que passar obrigatoriamente pela sala, e a sala estava a começar a arder em lume brando. A vela, uma das vermelhas, das que se compram nos chineses e se levam para pagar promessas em Fátima, a única das velas do jantar dos encalhados que ficou acesa, não de propósito, mas porque não reparei, não fui eu quem a pôs ali, a vela derreteu e pegou fogo à estrutura de madeira pombalina, agora estou a tentar minimizar, a dizer para mim própria que aquilo nunca iria arder, que se apagava por si só, mas é um facto que já estava a arder, mas como acordei, como fui beber água, como fui tapar a Carolina, como tenho o cú virado para a lua como diz a Magui, bastou soprar, como uma vela de um bolo de anos, e o incêndio não chegou a ser, tenho o verniz das unhas todo lascado, estou a aproveitar para o roer com os dentes, apenas para descomprimir, para a próxima, a fada do lar não faz a manicure imediatamente antes de preparar um jantar para dez pessoas, e amanhã deito fora todas as velas que há cá em casa, as velas são para os românticos e eu ando cada vez menos romântica, meto tudo num saco e lixo, e quanto às velas das igrejas, as que me queriam bem tostadinha, amanhã levo-as comigo, à hora do almoço vou à igreja do Chiado, acendo-as e agradeço ao anjo, e aproveito já que lá estou e vou pedir, também, à Santa Teresinha, ou ao São Judas Tadeu, ou aos dois, para ninguém ter ciúmes, peço apenas que os Pestanas passem a frequentar a minha casa com maior regularidade, e só espero que as velas desta prece não provoquem um segundo incêndio naquela zona da cidade.

Vou dormir. Ou melhor, vou ver o dia nascer. Contaram-me outro dia uma história de amantes que ficavam a ver a noite até ser de dia e eu gostei, vou pensar nisso não tarda, quando o sol me bater à janela

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Ninguém quer partir o coração

O blogue é meu, começo eu, é uma sina. As velas de igreja estão acesas. O Paulo destruiu o coração, houve ataques ao coração, vários, o Paulo, o Paulinho, o meu irmão pequenino, desfez o coração. Passo a palavra à Thê, à minha vizinha, que me apareceu na caixa de comentários, nunca vou deixar de confiar na bondade dos estranhos ( a Carrie acaba de editar este parágrafo - a última garrafa está quase no fim, o Mário Lanza canta na aparelhagem pela primeira vez, foi o meu avô Ralha quem mo ofereceu; ainda tinha o celofane, a Qui Qui fotografa para mais tarde postar).
num aperto de mamas bem perto do coração com as mãos marcadas no corpo pela pequena carolina. segue a posta no dia abençoado pelo senhor que nunca conheci. a senhora grita aqui dentro. devem ser palavras de amor. podem-se dizer palavras essas prometidas a quem não as merece. deixem-nos voar, nós os que sofremos por amor, aqueles que cantam e tratam o amor por tu. aqueles que não têm medo de dizer o que sentem e seguir. por onde se deve começar a partir um coração? o meu está aqui. com buracos. continuemos a sonhar então. alguém já começou. foi o andré. a seguir vou pedir à menina dos olhos perfeitos que continue. estamos a partir o coração.
Será que se consegue mesmo partir um coração? Por muito que explodam granadas depois do fogo de artíficio, por muito que se estilhace, se espalhe em mil pedacinhos, será irrecuperável? Escrevo e apago. Escrevo e Não lido bem com a pre
Será quer mais vale um gajo a olhar por cima do que dois a passar???
Bye-bye, good...hi! Say hello wave goodbye
Não lido bem com a pressão e o André roubou-me o iBook das mãos. A Dia come o coração e eu vou passar a maça à senhora dos bonecos. A única que conseguiu deixar-me bonita numa foto.

obrigada pelo elogio. desculpa a filinha em cima de distância. ontem li um texto do mexia onde falava nos espaços que inconscientemente se estabeleceram de distância em relação ao próximo na ligação urbana. era interessante é um facto, e isso levou-me incondiconalmente a relacioná-lo com a linha que deixei de intervalo. Inconsciente ou conscientemente um acto de não reflexão mas de um hábito continuo inconscientemente.
ok, tretas. é sempre assim, pensa-se numa coisa pouco concreta e foge repentinamente o pensamento.

filinha de intervalo e vamos passar :
e o coração palpita, palpita e a alma desatina. as minhas noites são vermelhas a fugir para o azul no final. os dias são amarelos com retalhos de nicotina. não tenho pernas para ti, sempre te adiantas. tenho uma imagem na retina, o passador de nata da minha avó a escorrer o leite nos sábados, o meu dedo a escrutinar, a recolher a gordura. é isso que és quando me foges. a nata escorrida antes do cacau quente.

Não é bem uma folha em branco... mas uma maçã paralelepipédica branca... e brilhante! No entanto, é sempre difícil escrever sobre o branco. Por isso, há que ser sintético para começar do e a partir do branco. Neste coraçãomaçã brancodocecomcremed'ovo, espetámos as setas, partimos, rasgámos e comemos numa ceia em que eramos apenas 10... Os outros 2 faltaram e um acabou por sair mais cedo (ainda tinha que ir para a frente da fogueira dizer 3 vezes não). Não era a última ceia, mas acabou por ser a ceia dos "sem namoro" (resta dizer que eu era o Judas).

(Leio: Desatina ... a... ...retina, e movo-me p@r outras vistas)
De preferência nãomorava sózinho, mas moro, desengatado, mas não encalhado. Até vou a jantares, não sei o que vos diga. Mas vinho, pratos no forno, visky, pratos, muitos pratos com mais de cem anos (a própria da procelana, não os manzares) com queijo, na salada, no gratinado, e fotos milhares de fotos em quantidades irreprodutiveis, mesmo com as facilidades tecnológicas. Vamos ficar suspensos em milhares de fotos que mal existem e das quais aqui não hão-de caber. Vão sobrar como a a comida. E oportunidades para conversas .

Crónicas de uma fada do lar

É por estas e por outras...
Um fedor a alho que não se pode (alguém sabe como se tira o fedor a alho das mãos?). A manicure, 5 euros para o galheiro, estavam tão lindas, cortei os coentros e os alhos arranquei uma lasca de verniz encarnado sangue de boi. Fui para comentar o post do FTA sobre o monte dos panascas e também já não estava lá, raios, a cinza do meu Davidoff acaba de cair para cima do teclado, é por estas e por outras que eu não quero ser fada do lar.
Vou voltar às amêijoas à bulhão pato, desistir das unhas, pareço uma rameira com o verniz estalado, bolas, mas comprei um bolo kitsch com um coração a dizer adoro-te, e vou bombardear um determinado número de telémovel de mensagens tão pindéricas como o exemplar da mais fina pastelaria que repousa aqui do meu lado direito, porque hoje a Telecom do patrão deu sms de borla, não porque é dia dos namorados, não porque ele seja meu namorado.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Jantar dos encalhados

Somos nove, por enquanto, mas aceitam-se inscrições na caixa dos comentários até ao último minuto.
Temos a bênção de Santa Marta. Vamos brindar aos amores, os desamores ficam à porta, deixo-os entrar porque as escadas são escuras e frias, e eu gosto de todos os desamores, foram amores perfeitos um dia, eu agasalho os meus desamores, mas amanhã entram e encaminho-os com jeitinho para a segunda porta à direita, a porta que desliza, ficam a fazer sala aos inomináveis, tranco-os no closet. Amanhã vou acender velas encarnadas, daquelas que há nas igrejas, aquelas que se compram nas lojas chinesas, amanhã Santa Marta vai ser uma espécie de santuário, não vou pedir mais, nem ao São Valentim, esse santo com nome de cantor pimba, nem ao Santo António, ali no cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida da Igreja, não vou pedir mais por mim, esqueci o amor de correspondência, esqueci tudo, ninguém vai bater à porta da caixa dos comentários, surpreendentemente, eu estou bem assim, blindei o coração, chega-me quem me faz rir, quem é melhor que Prozac.
Para variar, não vamos ficar em casa trancados a sete chaves com a neura, vamos festejar à grande, vos garanto que não vou cerrar os dentes quando passar pelas montras decoradas de peluches e corações, vou achar piada aos casais de mãos dadas nos restaurantes, vou estar bem atenta aos sinais, vou saber quais foram as tipas que fizeram a depilação a primeira vez neste Inverno, vou saber quais vão mandar a primeira queca do mês, marcada na agenda, absolutamente inadiável, não há enxaqueca que lhe valhe, amanhã, o rating de orgasmos por dia vai aumentar ligeiramente, é certo, os fingidos sobretudo, gritos histéricos, quando no fundo estão a pensar o que vai ser amanhã o almoço, e eu não vou constar dessas estatísticas, nem eu nem os meus oito convidados, mas, depois de amanhã, tudo volta a ser como antes para a grande maioria: silêncios, solidão acompanhada, pelos nas axilas, e nas pernas, barba por fazer, arrotos, dentes palitados, depois de amanhã é a minha vez, sem hora marcada, sem estar à espera, de surpresa e amanhã, estreio o vestido mágico, o que é da cor do vinho tinto, o que é semi-transparente no decote, eu previ-lhe uma grande estreia e amanhã é o dia.

A Carolina sonha com folhas que fugiram


Três e oito da manhã, os Pestanas andam outra vez com o GPS desgovernado, não estou sozinha, do outro lado, também sem receber à porta a visita de um qualquer parente afastado dessa poderosa família da noite, está o 33.333, e a conversa está animada, as ideias fervilham, e desta vez há cigarros à fartazana, há tabaco de enrolar, há mortalhas para todos os gostos, a maquineta não tem descanso, fumo a esquizofrenia dos últimos dias, puxo com força, o filtro fica quente, mas na assolhada à minha esquerda, a Carolina tem cunha com o bisneto Pestana, um rapazinho loiro de caracóis de anjo barroco, parecido com ela, podiam ser primos, ela dorme há horas, ressona baixinho, e há pouco sonhou alto, ouviu-se aqui na sala: "A folha? A folha? Não está... Fugiu..." A minha loira sonha com árvores e com folhas que jogam às escondidas. Haverá sonho mais lindo?

domingo, fevereiro 12, 2006

[De]coração

És melhor que Prozac. Tinha que escrever isto. É de coração.

Estás cada vez mais parecida com a tua avó


[Retrato de Isaura Ralha - José Ralha 2006]

Lamento

E a única coisa que me apetece dizer é que assim agonizo a escrever, arrasto-me, não arrepio ninguém, ainda se lembram como era antes? A outra, a que não é esta, eu sou a que se expõe gratuitamente, a que se recompõe a escrever, a que não manda nos dedos, a que tem as falanges, as falanginhas e as falangetas doridas, sou a da tendinite na mão direita, a que tem que usar uma tala quando a alma sangra demais para o teclado, e assim não é carne nem peixe, o dashboard está cheio de drafts, os inomináveis amontoam-se no closet ao pé das dezenas de sapatos, pendurados junto aos vestidos com decotes indecentes, os inomináveis expulsaram-me os fantasmas do armário, não cabiam todos lá dentro, e agora o que é que eu faço? Andam à solta, os fantasmas, e já não os posso mandar para o quintal da [T]ralha à velocidade de dez dedos frenéticos, e para quem acabou de chegar, para quem ainda não sabe, não há nada a esconder por este buraco da fechadura: este é o blog da Diana Ralha, jornalista, carteira profissional 81 81 (mudaram-me o número da carteira para um cinco mil e qualquer merda, mas eu serei sempre o 81 81), a Diana Ralha que não vai ser nunca ninguém na vida porque é desbocada, que pode escrever até muito bem como não se cansam de lhe dizer, mas que nunca há-de ter pachorra para escrever mais de dez páginas seguidas da sua lavra, e se é para ser assim, manca, cheia de cortes a lápis azul, mais vale escrever só para mim, lamento o egoísmo, é sempre para mim de qualquer forma, alimento-me disto, eu escrevo para me reiventar todas as noites, eu escrevo porque não durmo desde o Verão passado, escrevo porque enfiei a ridícula ideia na cabeça que vou escrever outra vez uma história de amor, que vou encontrar o meu blogue metade, mas também é verdade que eu só escrevo quando alguém me inspira, escrevo porque sou generosa, porque gosto de partilhar, e só me apetece dizer que o que mais me impressionou ontem foi a força dos elementos, o tronco do eucalipto por terra, a gaiola dos faisões esmagada, conhecia tão bem aquele eucalipto, plantado junto ao lago, ele mudava de casca todos os anos, quem me dera mudar de casca todos os anos como o eucalipto, quem me dera que a minha filha deixasse de absorver a aspereza do mundo pela epiderme; todas as noites, todas as manhãs, ensebo-lhe a pele com uma emulsão que cheira muito mal, que é muito gordurosa e peço a um Deus qualquer que me valha, que a livre desse mal, da pele áspera como lixa, que me dê a mim a pele de lagarto, que ela não merece, e debaixo daquele eucalipto eu brincava às peixeiras, fingia que as cascas eram bacalhaus, e fingia que eles eram microfones também, e cantava: "são tão bonitas as carvoeiras, são tão catitas as feiticeiras, ai que lindo rancho da mocidade, cantai raparigas, viva a liberdade", e ele tombou, e ele quis tombar, cansou-se, não quis morrer de pé, morreu deitado, e não visse eu sinais em toda a parte, o jardim meio desalinhado, a relva queimada do gelo, a ocupação ilegal dos gatos, o Zé Ralha como um trapo velho, o meu avô de arrastadeira, muito cansado, e o eucalipto fez muito bem em cair por cima da gaiola dos faisões, eu também não queria estar de pé, do alto dos meus dez ou quinze metros, não suportaria ter o local privilegiado, junto ao lago, para assistir ao fim do mundo como sempre o conheci.

sábado, fevereiro 11, 2006

Anúncio II

Este blogue está outra vez semi-deprimido, nada demais, mas eu estou triste.
Bom fim-de-semana.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

À noite tudo se recompõe

À noite tudo se recompunha.
A camisa do pijama - só usava a parte de cima, dormia sempre de pernas ao léu, gostava do toque dos lençóis brancos, de algodão, bordados pela sua mãe, na sua pele -, de flanela, cor-de-rosa, com ovelhas, 5 euros na loja chinesa da Gama Barros, tamanho xxl

[o pijama que levou para a Maternidade, dentro do qual sentiu uma moinha fina, contracções, quarto 615, sozinha, com o livro do Harry Potter na cabeceira e duas máquinas fotográficas na gaveta, Canon EOS 500 N, Leica Digilux 1; o anel de platina e diamantes, que o avô Oliveira dera há Magui quando ela fez 16 anos, no dedo anelar da mão direita, já nem sabia quando é que a Magui lho tinha passado, como um testemunho, como um pedaço de si; o fio de ouro com um pingente de coração, que pertencera à sua outra mãe, e que também lhe foi confiado, no dia em que fez 18 anos, também ao peito - sempre que sentia que algo estava para vir punha o fio no pescoço, e naquela noite, em que estreou o pijama não falava com a sua outra mãe há dois anos, tinha perdido o número do telefone, estava no quarto 615 a pensar muito nela, a pedir um milagre, que a queria lá ao seu lado, por isso tinha posto o colar e, no dia a seguir, transmissão de pensamentos, a sua segunda mãe, que parecia mais mãe dela que a Magui, porque tinha o mesmo cabelo negro e cor de pele e a mesma anca larga, podia mesmo ser sua filha, no dia seguinte, no dia em que um ser vivo, uma menina, de 47 centímetros e 2,9 quilos, lhe foi arrancada do ventre, sem anestesia, essa sua mãe cabo-verdiana, a que tinha sempre a seu lado, numa moldura redonda junto à cama, telefonou, não me venham dizer que não há muitas coisas entre o céu e a terra, e quando estava aflita punha, também, a aliança dos tempos em que vivia paredes meias com o Bairro do Zambujal, e não era ao acaso que tinha ambos no corpo, neste momento, um círculo dourado no anelar da mão direita e o coração na boca, o de ouro e o de carne também; tinha um péssimo pressentimento, e não era o avô Ralha, sentia que não era o avô Ralha]

em cima do braço direito do sofá laranja, a saia castanha que rasgou a subir as escadas tenebrosas de Santa Marta, sentada, sem pose, na poltrona branca, o urso cor-de-rosa e o tigre laranja, do Winnie the Poo, deitados no chão, três pares de sapatos semeados na tábua corrida, um desodorizante junto aos livros e ao lado da moldura com o Pax a bocejar, mas à noite tudo se recompunha, mesmo no meio do caos, mesmo sentada por cima de uma coberta cheia de nódoas de leite com chocolate do Lidl, tudo voltava ao seu lugar.

Tudo se recompunha, os dentes, por exemplo, voltavam ao sítio onde deviam estar, não onde nasceram, onde assentaram arraiais, mas sim, onde os mandaram estar, onde os puxaram durante dois anos e sete meses, o lugar perfeito, alinhado, mais ou menos simétrico, se não fosse um canino mais saliente, da sua faceta vampiresca, estragar o ramalhete.
Os amigos, os poucos que visitavam a sua casa centenária já sabiam isto, ela já nem avisava, largava o molde dos dentes pela casa, chamam-se goteiras de contenção, eram feitas em acrílico, nunca sabia onde os tinha largado. Era provável encontrar as suas mordidas superior e inferior no sofá, de cima da mesa de vidro, na cozinha. Imprevisível.
Estava quase a passar um ano. Um ano em que o marfim amarelado, manchado de nicotina, se tinha visto livre de uns piercings de titânio. Mas, durante o dia, os dentes mexiam-se, queriam voltar ao seu lugar (quem não quer?), onde foram felizes, e há noite tudo se recompunha, doía muito, arrastá-los de volta ao sítio perfeito, à casa decorada para a revista, e ela começava a desconfiar que teria que usar goteiras de contenção durante toda a sua vida, ou aceitar que há coisas na vida que não podem ser perfeitas.

A DIA ERROU

Estou fora, estou esquizo, estou cheia de cabelos brancos, estou perto da linha e, só agora, ao reler os últimos posts - exercício narcisista que raramente pratico, aliás, exercício não é comigo, abro a excepção para o sexo, que é muito saudável e não cansa, nem me lixa as articulações, quer dizer, lixa sim, sobretudo quando fico por cima, ou no doggy style, mas é uma bagatela a pagar - é que reparei que, erradamente, lamentavelmente, psicadelicamente, atribuí a nacionalidade norueguesa ao incidente dos cartoons, em vez de dinamarquesa. Pois muito bem, não me fodam com a Noruega, por causa dos bacalhaus, e com a Dinamarca também não, porque é de lá que vêm os grand danois (os grandes dinamarqueses, algures na sua linhagem, o Pax e a Maria têm sangue dinamarquês).
Pronto, vou ali tomar um Xanax e já volto.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Nada de sexo no Ikea [post quase anti-depressivo]

Foi um pouco como no dia de ano novo, no bar do Guincho, em que o casal sem sal se levantou, incomodado, lançando para o ar, um enjoado desabafo “há pessoas que não têm noção”, mas não foi bem um desabafo, nem sequer se pode chamar àquilo de desabafo, foi uma provocação cobarde, não gosto de gente que em vez de correr para a frente, corre para trás, que não enche o peito para parecer maior, que não levanta a crista, não suporto gente que não olha nos olhos. E eu e a thê e o João só estávamos a falar na demanda louca por um novo paradigma das relações amorosas, ou se calhar estávamos a falar de paneleiros, já não sei, o problema é que eu tenho muitas dúvidas, eu questiono tudo, busco a perfeição das coisas, das mais pequenas até e gostava de entender, a sério que gostava, a dona Ester até sugere à sua filha thê a minha homossexualidade apesar de nunca me ter visto na vida, apesar de saber que já tenho descendência, mas eu comentava apenas uma infeliz história de amor gay que me foi revelada, de dois homens que se amavam muito, mas que optaram por seguir caminhos diferentes, porque gostavam do mesmo (foi-me contado mesmo assim, com estas precisas palavras).
E eu sou naïf, sei que não parece, mas sou, não percebi o que isto queria dizer, fizeram-me um cartoon que incendiaria as representações diplomáticas portuguesas de todo o mundo, se tivesse sido publicado num jornal impresso em folhas de bananeira do Burkina Faso (esta história da Noruega dá cabo de mim, puta da globalização, não me bulam com a Noruega, que nos fodem os bacalhaus e eu não sei viver sem o raio do peixe que, no meu imaginário infantil, nadava nos mares gelados do Norte, junto a carradas de petróleo, já espalmado e seco, sem cabeça ou olhos, lembro-me o preciso momento em que, depois de muitos meses a pensar na peculiar anatomia do bicho, a franzir muito o sobrolho e a meter o pai de todos na boca, decidi desfazer todas as minhas dúvidas metafísicas em relação à fisiologia do bicho, e perguntar à avó Tóia, no então Pão de Açúcar da Conde Sabugosa, estava ela a tirar da prateleira um pacote de massas com letras de marca branca, chamava-se assim mesmo, produto branco, estava a atirá-lo para o carrinho das compras, quando eu lancei a minha dúvida: Onde é a cabeça do bacalhau, vovó?).
Gostam do mesmo, ou seja, gostam os dois de levar no cú. E o amor não resiste a isto e estávamos nós a discutir esta problemática e cintos com dildos acoplados, uma bela conversa para o primeiro dia de 2006, sentados perto da lareira, com os sentidos inundados de monóxido de carbono, quando os queques da linha saíram-se com essa do “há gente que não tem noção”.
Este post é para rir. O prelúdio, a posta do lombo que está aí abaixo, é triste, bem sei. Por isso, dei-lhe liberdade, autonomizei-o, separei, com êxito, gémeos siameses à nascença. Porque entrei na loja decorativa, vestida de preto, com um decote indecente, meias encarnadas (sempre que estou com o período abuso do encarnado, mas ainda ninguém reparou na lógica da coisa, que é apenas de 28 em 28 dias que abuso desta cor que significa perigo em toda a natureza, ninguém repara em nada, sabem lá que é às 17h30 que a câmara acende as luzes da cidade) e sapatos tamanho 40, lindos Stilletos comprados a 20 por cento do seu imoral preço, saltos a incrementarem em 12 centímetros a minha mediana altura, entrei acompanhada do meu querido e divertido decorativo, e não pensei mais no Zambujal, não pensei mais no Pax ou na Maria, nem no amor da minha vida, no que perdi, no que ganhei por ter perdido.


Tem esse condão, com um pacotinho de gomas de ursinhos na mão e uma barbicha de meia-foda, um sorriso sacana, uma voz de acordar doentes comatosos, e vinte e dois caralhos por minuto (muito além da minha melhor marca pessoal, que se fica nos 17), que incomodariam muitos casais pseudo pudicos (pudico não leva acento; nãoé uma gralha; é horrível, eu sei) sentados em bares da linha de Cascais, e a linha, ensinou-me a thê, e eu nunca mais esqueço, acaba em Cascais e não no Estoril, como eu pensava.
Fizemos um trato à janela do Messenger. Nada de sexo na visita à cadeia sueca. Íamo-nos portar bem. Objectivo da visita: comprar umas coisinhas para a casinha nova com vista para a ponte sobre o Tejo, candeeiros, tachos, toalheiros, porta-rolos de papel higiénico, piaçaba, eventualmente, um tapete para o quarto e para o hall de entrada. Condicionantes: um baixíssimo orçamento e nada de sexo.
Com o decorativo descobri que tenho cara de foda queca, melhor, que, efectivamente, sou uma boa foda (isto devia estar em aspas; não fui eu quem disse) e ele insiste que apalpar mamas e dar palmadas no rabo, nos corredores do IKEA não é sexual, eu cá sou bem mandada, quando entrevistava ministros nunca largava calão, estou domesticada, não o apalpei nunca, e o espectáculo só começou na recta final ao saque à loja de decoração, quando o porta-rolos de madeira que ele tinha escolhido para a sua casa-de-banho, com peixinhos colados nos azulejos, estava esgotado e ele verbalizou, em volume 37, junto a uma senhora com aspecto anorgásmico, que “anda tudo a cagar demais neste país, é o que é, ò caralho!”

No domingo da neve, andávamos à cata da roupa espalhada pela sala, a pendurar os quadros que tinham caído das paredes, isto foi antes de o meu querido inominável ter ligado e se ter apercebido pelos meus monossilábicos sim e não que algo se estaria a passar, mas, ainda sugeriu que eu escrevesse para a revista Atlântico antes de desligar, a conversa foi longa e o decorativo (ele adora ser chamado de decorativo; dá-lhe um quê de objecto sexual) foi fazer o jantar, e depois desliguei o telefone e achei que se estava a tornar um hábito preocupante eu e o inominável falarmos ao telefone depois de um, ou outro, ter ido para a cama com alguém, mas o adorado homem que andou a dormir na minha cama e que cozinha muito bem, e que passa as suas próprias camisas a ferro, contou-me como o casamento de uns tios tinha acabado, estupidamente, digo eu, depois do tio ter encontrado a tia a evacuar no mato.
Pois muito bem, o orçamento do meu decorativo era baixo, demasiado baixo, e a casa dele é muito bonita, não achei certo que a casa-de-banho fosse decorada com uns toalheiros manhosos e porta-rolos de papel higiénico igualmente rafeiros, esgotados que estavam os de madeira e, daqui para a frente, sempre que estiver a limpar o rabo, lembrar-se-à de mim, do belíssimo porta-rolos inox que lhe ofereci numa espécie de prenda do anti-dia dos Namorados.
E em frente à mesmíssima senhora que não sabe o que é um orgasmo há cinco anos 67 dias e 13 horas 25 minutos, eu: “Decorativo, não permito, não levas essa merda, deixa-me oferecer estes em inox, são iguais aos meus, anda lá, tu não és um qualquer, tens que cagar com alguma dignidade”.
Com o seu orgulho de macho ligeiramente amolgado, apalpou-me outra vez o rabo, pagou ele o seu próprio piaçaba e, em troca, ofereceu-me o escorredor de massa encarnado e comprometeu-se, também, a pendurar o candeeiro da sala de jantar.
Bela troca, mas, regressando à alegoria do divórcio dos tios dele, acho que acabo de arruinar uma bela queca.

A caminho do IKEA

Eu vivi ali, 200 metros acima, paredes-meias com o Bairro do Zambujal, rodeada de gente ordinária. Fui feliz.Ali, no meio da improbabilidade. Fui suburbana, não tinha cafezinhos ou mercearias com gente patusca (e quem diz patusco é o meu avô Ralha, o tal que eu não tenho notícias, mas isso, em princípio é uma boa notícia) que me contasse historietas que dessem posts, ali só havia o Jumbo e o Continente, mais tarde, a Decatlhon, mas não se perdeu nada, também, eu não sabia que sabia escrever, via telenovelas da TVI deitada na chaise longue, mas, ainda assim, era muito feliz. Tinha uma casa com um terraço gigante, com um barbecue que nunca foi usado, tinha palmeiras roubadas de um viveiro abandonado meu vizinho, tinha dois grand danois, o Pax, todo preto, a Maria, que parecia uma vaca da Mimosa, ou uma dálmata com problemas de gigantismo (eu penso na Maria quase todos os dias, também não conto a ninguém, mas penso nela todos os santos dias), tinha, na minha cama, o grande amor da minha vida, tinha puxadores dourados nas portas que sempre detestei, mas não importava, sabes, era o que menos importava, o móvel da casa-de-banho arrepiava-me, a casa ter sido construída pela cooperativa de habitação da UGT também, lembrava-me sempre dos dentes podres do João Proença, tinha um Twingo e um Frontera longo 2.8 TDI, tive tudo isto aos vinte e poucos anos e deixei escapar, e tu não ouviste nenhuma alteração na minha voz, não escutaste um silêncio que, de facto, não durou mais do que uma semi-breve escrita numa pauta, não reparaste que a mão direita deu três carolos na manete das mudanças, numa raiva contida.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Sem título

Isto é muito triste.
E como é tão triste, talvez se aproveite qualquer coisa que saia sem ser à força nesta madrugada que sei que vai ser longa, porque não me vou drogar com nenhum químico, não vou fazer o chá que a Magui comprou na ervanária, preocupada com a negritude das minhas olheiras, não digo que vá conseguir parir algo sublime, que erice a pele, a soberba é um pecado mortal, pelo menos, se não é, eu vejo-a como defeito capital, mas talvez eu consiga purgar qualquer que se assemelhe a âmbar e não apenas mais uma merda viscosa como tudo o que tenho escrito por estes dias.
É que hoje saí de mim, senti a alma a desprender-se do meu corpo, ela foi para um canto, lá em cima, de castigo, enfiou voluntariamente o chapéu de burro, e leu alto, com a sua melhor voz de rádio, as últimas coisas que plantei neste quintal e eu fiquei tão envergonhada com o amontoado de caracteres desalmados que para aqui andam, em fundo preto, que, antes de partir para o caminho da auto-flagelação, ainda me consegui rir com a história das acções do blogue, que está avaliado em seis mil b$, seja lá isso o que for, não tarda começam a ser emitidos profits warnings, mas o que me fez mesmo rir foi o Mau Tempo, que me linkou à sucapa, que canalhice, valer muito menos que esta tralha escura, e já imagino o Francisco a não dormir por causa da sua reles cotação no Blogshares, mas depois desse apontamento de humor, e ainda não me conformei com esta história de um accionista ter um quarto do capital literário da (T)ralha, que está disperso sem a autorização da sua CEO e CFO, em bolsa, e falando em bolsa e em acções, estou maravilhada com esta do meu patrão a querer comprar a PT, a sorte protege os audazes, sim senhor, mas, fazendo jus à minha cavalar bipolaridade, depois de uma gargalhada, nem um minuto depois, tive vontade de apagar posts, partes de posts, posts inteirinhos, sem contemplações, uma espécie de plano de reestruturação, de redução de custos para aumentar os dividendos a distribuir aos accionistas, chegou a apetecer-me dar à (T)ralha uma morte com alguma dignidade, uma eutanásia rápida, abrir falência, sim, apeteceu-me apagar o blogue inteiro, acabar tudo, era um bom dia para acabar. Mas eu não apago nada nesta vida, há pastas deste e do outro computador cheias de ilusões, de conversas do messenger, arquivadas com nomes sugestivos, a conta principal de Gmail carrega às costas, todos os dias, 1079 megabytes de tralha, coisas boas, coisas menos boas, há conversas arquivadas com a etiqueta dramalhão, há as conversas da treta, há 1410 comentários postados pelos meus leitores, há um amor literário guardado com uma etiqueta que eu não posso escrever e isso é indecente, até o nome da etiqueta eu tenho que esconder.
Isto é muito triste e se sair delicodoce não publico.
Esta aprendi com quem já não me ensina mais coisas tontas, disse-me um dia a tristeza é loira, é fácil de enganar, basta forçar um sorriso, o que parece é, e a tristeza foge dos sorrisos a sete pés, como os vampiros das cruzes e os casais de namorados (foda-se, mais um ano, o quinto, sem um caralho de um gajo para ir jantar fora no idiota do dia de São Valentim) dos refogados com alho.
Isto é triste e quando estou triste, esqueço-me de respirar, cerro as mandíbulas, aparece uma veia no meu pescoço, os olhos ficam achinesados, ficam tal e qual como quando nasci e a Magui desatou a chorar por pensar que eu era mongolóide, mas o que parece é, esforço por esticar os lábios e ajuda sim senhor, se calhar, também não me devia vestir tantas vezes de preto, carrega-me, e já não vou a caminhar para nova, diga 27, repita comigo, 27, o chefe farta-se de me elogiar quando vou de calças de ganga, não sou eu, mas eles gostam daquela que eu não sou, um pouco como a audiência silenciosa da (T)ralha, eu não sou isto que vêem aqui, mas olhem, o decorativo ligou, cantou e tocou para mim, disse coisas descalibradas, como sempre, e os sorrisos saíram cada vez mais escorreitos pela madrugada fora (são três e um quarto da manhã).
Se ele tivesse morrido teriam ligado? Se ele morrer, enviam-nos um telegrama?
No Algarve, a 300 quilómetros a sul de onde escrevo, sentada numa cadeira de rodas, a filha do meu avô acha que ele caiu, que não foi nada de grave, está mais preocupada em saber que tamanho de roupa veste a minha filha, porque amanhã uma amiga vai levá-la aos saldos, ao Faro Shopping, e isso é um acontecimento para uma catedrática multi-deficiente com esclerose múltipla.
Isto é tudo muito triste e eu vou esforçar-me agora por sorrir. Dói.
No dia 25, eu estava no Bairro da Liberdade a ver imundices várias, a ficar com as pernas cartografadas por pulgas sem muita falta da chá, que não sabem que não se ataca os convidados. No dia 25, antes dizer ao taxista para me levar para o pior cenário daquele bairro de Campolide, estava dar duas fatias de Panrico aos pardais do Picoas Plaza, cagada de medo, a tentar acalmar o nervoso miudinho que tinha na barriga e que não sentia há muitos anos, instalado que está o funcionalismo público na minha profissão e, também, em mim. No dia 25 de Novembro, eu pensei, juro-vos que pensei isto, que tinha que fazer um trabalho que o meu avô comentasse ao pequeno-almoço, na Costa, e quando eu fui cantar ao Coliseu, ele deixou-me uma mensagem no telemóvel, eu ouvia-a uns minutos antes de entrar no palco, dizia: "não importa qual é o resultado, se ficas em primeiro ou em último lugar. Para mim, tu já és a vencedora". E ele disse isto com a voz embargada, estava a chorar e foi nesse momento que eu soube que ele não lia só os artigos do Leonardo, que não falava de mim, mas, também, me seguia de longe, mas com muita atenção, talvez com a mesma atenção.
No dia 25, o meu avô teve um AVC e eu não soube, ninguém me avisou.
Ontem, sabe-se lá porquê, teimei em trazer para Santa Marta a prenda de Natal que ele deu à minha filha, a primeira bisneta Ralha. Estava em casa da Magui desde Novembro, trocámos prendas em Novembro às escondidas do Zé Ralha, que amua se sabe que nós vemos o nosso avô, é um Bambi gigante, grande demais para esta casa, mas, desde ontem, passou a fazer parte da decoração da sala, está mesmo à minha frente. Desde ontem. Meteram-se comigo na rua, por causa dele, vi adultos a sorrir, a carregar nas buzinas, porque o Bambi foi comigo para Santa Marta instalado no banco laranja do pendura.
E hoje eu soube que o meu avô teve um AVC. E não estou certa que, se ele morrer, alguém nos avisará.

[Não reli este post, são quatro da manhã e o blogger não deixa postar. Amanhã corrijo. Acho que não está delicodoce]

Anúncio (retirado da caixa dos comentários)

Este blogue está uma bela merda.

Esquizo

O meu avô teve um enfarte, a notícia veio pelo Messenger, directamente de Edimburgo, puta de família disfuncional, e o Old Mirror comprou 25 por cento das acções do meu blogue. Mas o que é isto? OPA's hostis? Ainda há pouco, ao telefone com o senhor do BB, a dizer-lhe que tenho vontade de rasgar a minha agenda de contactos económicos, mas ele não deixou, pode fazer falta, socorro, quem me acode?, eu não pus o meu blogue à venda, bloggers de referência, expliquem-me que merda é esta?

Post no supermercado

Este fim-de-semana escolhi viver.
Ou se vive, ou se escreve, disse a Virginia Wolf, e eu li isto num blogue de referência, o do Pedro Mexia, salvo erro.
Opções.
Opto fumar em vez de almoçar. Agora, as horas de almoço, à falta de orçamento para ingerir alimentos, servem para escrever posts na Moleskine e dar migalhas de um interminável Panrico fora do prazo, que jaz em Santa Marta, aos pardais mal-criados do Picoas Plaza. Duas fatias por dia, ponho duas fatias por dia num saquinho de plástico, isto lembra-me quando ia com a avó Zá dar pão duro aos patos do Convento dos Capuchos.

Quarta-feira, vou entrevistar uma professora de piano. Que tem voz de homem e anda pela cidade com um papagaio temperamental ao ombro. Decerto, irei optar pelas aulas de piano e deixar os maços pretos e dourados de John Player Special de lado.

Opções.
O reembolso do IRS e o prémio anual de produtividade não serão gastos numa cozinha nova. Tenho a canalização de água a manchar-me a parede, mas a pedra é dura e a água mole ainda vai ter que dar muitas até furar. Os móveis cheiram a velho, o meu marido literário esteve lá a cozinhar e gostou do cheiro dos armários, eu não o suporto mas ele gostou do cheiro, ainda assim, não vou comprar uma cozinha encarnada no Ikea.

Opções.
Espero - sonhei assim - torrar dois milhares de euros a trazer o piano de Viseu para Lisboa, espero que o dinheiro chegue ainda para o afinar (se calhar, fica na cozinha, que, assim como assim, é a divisão mais ampla da casa, e tem as paredes pintadas de encarnado escuro, e na arrecadação da Avenida do Brasil - outra casa de seis assoalhadas que serve de depósito de traquitandas - tenho uns candelabros dourados, rocócós, para pendurar na parede do lava-loiça, ou, talvez, na chaminé, vejo-me a cozinhar à luz de velas encarnadas, vejo-me a preparar iguarias, enquadrada com os candelabros dourados), espero não engordar dez quilos com a falta de nicotina, que seja fácil deixar de alimentar o cancro do meu pulmão direito, que seja troca por troca, vício por outro, espero sonhar em solfejo, espero ouvir no silêncio tanta música como a chuvada de palavras que cai no meu cérebro.

Este fim-de-semana optei viver.

Mas as palavras mandam em mim, tentativa vã, de pouco ou nada me valeu não ter posto os pés em casa, de ter pedido exílio político ao território protegido contra as novas tecnologias, presidido pela senhora minha mãe. Os posts são quem mais ordena, se não tenho um teclado branco da Macintosh, tenho folhas de papel e, ontem, no Pingo Doce dos Olivais, no verso de uma gigantesca conta do mês de Novembro do Corte Inglés, uma das muitas que colecciono numa carteira de cortiça, com a Magui a escolher um paio, depois um pão saloio, e, por fim, uma embalagem de esparregado congelado da 4 Salti, nasceu este post, que é mais um da série das marcas de amor:


"Queria que o teu amor me incendiasse o peito. Queria chamas, labaredas, queria que para além de pirómano, fosses mestre na arte de cravar tinta invisível na pele; queria o fogo tatuado no peito, pintado com muitos tons de encarnado, queria que queimasse à distância de um toque. Queria um amor assim, que me chamuscasse o lado esquerdo do peito, queria que um incêndio de grandes proporções, que abrisse todos os telejornais, queria que lhe desses muito ar e muita lenha, que catasses pinhas na floresta, que, louco, despejasses álcool e latas de spray para a fogueira. Queria, a certo ponto, consumida, praticamente reduzida a cinzas, queria chamar os bombeiros, ou emitir um SOS com o fumo do que restasse do meu peito."

sábado, fevereiro 04, 2006

Morcega

Enquanto o João não toca à porta de Santa Marta, enquanto não me vem buscar numa carruagem que há poucos minutos atrás não era mais do que uma abóbora, quebro o silêncio de um sábado dedicado à sorna, à mais pura das sornas: supermercado com a Magui, almoço com a Magui, post a meias com a Magui (é a continuação de um que está em draft desde as 23h59 de ontem, que é o meu presente de anos para o 33.333, e a minha mãe dava uma grande blogger, já sei onde fui herdar esta coisa de brincar com as palavras, de as torcer a meu bel-prazer, a minha mãe é mesmo muito boa nisto, deu um novo rumo ao post do 33.333), sesta até às sete e meia, mas o depósito do sono ainda está na reserva, escrevo no limiar da exaustão, trabalho no limiar do sonambulismo (e se calhar depois ando a provocar acidentes na A8).
Falhou a noite com os swingers (quem sabe, para a semana, eles me dão a senha, quem sabe, se ainda não consigo fazer a reportagem), falhou a noite no meio dos swingers com o meu inominável favorito, mas a noite ainda é uma criança e o João (carinhosamente apelidado de Jão pela minha loira, que este fim-de-semana está ausente, algures para os lados do Lumiar - não é surreal que eu não saiba onde a minha filha dorme nos fins-de-semana interpolados que não tem residência em Santa Marta?? Fuck, Fuck, Fuck, é surreal sim...) deve estar aí a aparecer e eu ainda não pintei os lábios de encarnado sangue de boi, e promete, esta noite, apesar de ter muita pena de não ir ver a noite até ser dia no meio de casais que gostam de swingar entre si.

Primeiro post escrito na mesa da cozinha, ainda coberta com a tolha de Natal, com os mortos que a Thê me ofereceu no Natal (não há maior prova de amizade do que oferecer os nossos mortos a alguém, a segunda prova de amizade, que, ainda assim, não chega aos calcanhares desta, é mostrar, ao primeiro encontro, os nossos mortos e os nossos vivos em pose para o momento em que o tempo parou, no momento em que a objectiva o fez parar - e a minha objectiva é Carl Zeiss, é coisa fina, não se brinca com esta coisa de parar o tempo) a olharem para mim em sinal de reprovação. E está uma bela caca o texto, mas foi só para os dedos não ficarem gagos, foi só para não ficarem com pequenos pontos de ferrugem nas articulações - é que não tenho, nesta casa, o milagroso spray Bala.

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Histórias que ficam bem em qualquer decoração

O meu decorativo dava um blog autónomo.
Hard core, naturalmente.
Debato muito com a vizinha do lado e com a adolescente esquizofrénica este assunto. O meu decorativo tem um defeito. As três achamos que é um defeito. Fazemos brainstormings via messenger, por sms, ou mesmo por interposta pessoa e eu, que sou sempre exagerada, avanço logo para as soluções mais drásticas: exorcismo ou hipnose. Damos uma de Freud. Procuramos explicações via recalcamento. O meu decorativo dava um case study.
Mas isso só num blog anónimo, isso só quando eu estiver a escrever uma sit-com para a Teresa Guilherme.

Da primeira vez que estive com o decorativo roubaram-lhe o carro.
Da segunda vez que estive com o decorativo, o franguinho apanhou uma inflamação no peito, foi de baixa para casa, ainda pensou que era cardíaco, convenceu-se que era cardíaco, acho que até está triste de lhe terem diagnosticado uma mera e ridícula inflamação no peito.
A médica perguntou-lhe: "Fez algum esforço, levantou algum peso no Domingo?" E ele, descalibrado como é: "Não lhe chamaria um peso..."
As coisas entre mim e o decorativo estão condenadas.
Nem ouso pensar o que lhe poderá acontecer à terceira.

LSD. Reloaded.

Por momentos, não mais do que fracções de segundo, duvidei da minha sanidade mental.
Foi a primeira vez que duvidei a sério, as outras, tantas, que jurei a pés juntos, sem figas atrás das costas, ter andado num baldio cheio de urtigas a jogar à cabra cega com a loucura, essas, não chegaram sequer a fazer comichões; desta vez, ouvi o carrilhão de Mafra a sussurar-me um segredo ao ouvido, todo o corpo estremeceu, tive que parar a meio do corredor da roupa de bébé de um hipermercado (e não me parece certo que tenha sido num hipermercado; sempre imaginei a cena no sofá laranja, perto dos bonsai que morreram de tristeza - dois estão a ressuscitar, eu não desisto de nenhum dos três, a teimosia é uma dicotomia em mim, ora é qualidade, ora é defeito insuportável), sufoquei o telemóvel com a mão direita (a doente) instantaneamente gelada, levantei a sobrancelha direita, fechei os olhos depois disto, acho que o coração deixou de dar uma batidela que estava prevista no guião, mas, rapidamente, abri os olhos, deixei de ver tudo à roda e desatei a rir à gargalhada sozinha.
Nesse instante, senti a biqueira do novinho em folha sapato Pedro Garcia muito perto da tal linha que me farto de descrever. Hoje, a linha imaginária que separa aqueles que seguem com as suas vidinhas arrumadas dentro de um carrito versão base, sem extras alguns, adquirido através de um contrato de leasing a 36 meses, os que seguem nem depressa, nem devagar, a noventa quilómetros à hora à hora não mais, pelo Eixo Norte-Sul, que os separa dos que fazem, na berma, mausoléus a um Deus desconhecido, com galhos de roseiras, com cimento, tijolos e entulho dos condomínios de Telheiras - e no banco do pendura, sem cinto de segurança, seguia a minha Moleskine de reportagem, se é para fazer reportagem tem que ser em grande estilo, é como a história dos sapatos, é sempre em grande estilo que piso o chão imundo da minha cidade, e pensei deixar ali o carro com os quatro piscas ligados, pensei abordar o homem de cabelos e barbas enormes que construía ali o seu templo de oração, mas deixei-me ficar, não bulas com as pequenas coisas esquizofrénicas, por esta semana basta, tranca os fantasmas no closet, dorme, uma vez na vida, com a porta encostada, deixa o doido em paz, deixa o doido porque ele está mais perto de Deus do que algum dia estarás, anda, pé esquerdo na embraiagem, engata a primeira, um cheirinho de acelerador, deixa a Moleskine aos tombos no banco do pendura, vai lá comprar o que tens a comprar no Carrefour, segue sem olhar para trás -, hoje, aproximei-me demasiado da linha.
Senti a corrente eléctrica a serpentear-se por todos os cantinhos da mioleira como uma enguia, vi um clarão de electricidade que me chegou a cegar; num segundo, na sexagésima parte de um minuto, menos tempo que escrever a palavra tempo, todas as gavetas dos arquivadores da minha memória abriram-se com a violência dos espíritos zangados, entoaram um batuque frenético, e as folhas finas como papel de Bíblia do meu passado, guardadas em pastas de papel manetiga cor-de-rosa e verde, dançaram ao sabor de um vendaval.
Ligaram-me para o telemóvel. Que estive envolvida num acidente de automóvel, na madrugada de 17 de Novembro, na A8, junto à saída de Loures, que provoquei o acidente, que fiz sinais de luzes para ultrapassar um veículo e, ao desviar-se para a faixa de rodagem do meio, esse automóvel esbarrou-se contra outro. Que forneci voluntariamente os meus dados à polícia. À Brigada de Trânsito da GNR das Caldas da Rainha. Que preciso de prestar declarações aos peritos da Zurich e da Seguro Directo. Que estão à porta de minha casa.
Hiperventila.
Nunca fiz a A8 de madrugada. Não faço a A8 há não sei quantos meses. Nunca emprestei o meu carro. Nunca provoquei um acidente.
Hiperventila. Taquicárdia galopante.
Será que já fiz A8 de madrugada? Será que sou sonâmbula? Que deambulo de madrugada pelas bandas do Oeste? Será que já emprestei o meu carro? Será que, para além de prever neve, o Idea dos estofos laranja também tem piloto automático? Será que está cansado de fazer o trajecto Rua de Santa Marta Avenida dos Estados Unidos da América e à noite vai até aos estúdios da Endemol da Venda do Pinheiro? Será que está triste por estar quase a apagar as velas do segundo aniversário e o conta-quilómetros ainda esteja longe dos vinte mil? Será que vai namorar com algum Idea de estofos laranja para aqueles lados? Será que eu provoquei um acidente e não me lembro?
Vai à PSP. Declara que não estiveste na madrugada de 17 de Novembro na A8. Constata que a BT, tua vizinha, recebeu dezenas de bloqueadores de rodas, que os barrigudos enrolam os bigodinhos com prazer sádico depois de terem feito bondage aos pneus de todos os carros estacionados em cima do passeio.
Acalma-te. A linha, a imaginária, está longe, e os teus bonitos sapatos têm ainda muita sola para palmilhar caminhos até a pisarem com fimeza. Nunca ao de leve. Nunca num corredor de um hipermercado. Estas coisas só te acontecem para teres histórias para escrever.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Bicker da Costa [Vox Populi]

[Reescrito]

Seis da tarde.
A neve já está arrumada na gaveta das recordações longínquas.
Nevou em Lisboa há coisa de três horas, mas todos, sem excepção, já só a admitem rever daqui a meio século. Já ninguém sorri. Já ninguém partilha essa absurda felicidade branca com o estranho que está ali ao lado, a pisar as mesmas pedras da calçada. As temperaturas baixaram muito, os termómetros, preguiçosos, não estavam habituados a estas andanças, a descer abaixo do sete, mas lá tiveram que, a contra-gosto, rumar até aos zero graus da escala de Celsius. Fizeram birra, estiveram impossíveis de se aturar nos dias que se seguiram.
Os meus sapatos, que coisa admirável: hoje comprei três pares de Balenciaga, mas no dia em que a neve caiu na minha cidade, sem ninguém, a não ser o meu carro, a ter sentido a chegar, assim de mansinho, tinha nos pés uns ténis ranhosos. Vá lá que o decorativo me deu uma memória para trancar no cofre do dia do "nevão", vá lá que não me vou lembrar dos ténis manhosos, mas sim, de quadros a caírem das paredes (é o que a minha amiga esquizo chama de sexo desenfreado), da ponte sobre o Tejo (reparem, como nós os reaccionários evitamos chamá-la pelo nome) meia iluminada, meia envergonhada, mas, às seis da tarde, os pés estavam encharcados de terem andado a dançar com a Carolina junto à "bela sombra" que guarda a minha infância (quero que ela guarde a infância da minha loira também), às seis da tarde, 18 horas, os pés estavam roxos e eu sem os sentir, as mãos inchadas e roxas e eu também sem as sentir, e o meu cabelo encaracolado, como o do Zé Ralha, com vida própria e também não o sentia (no Brasil, com 90 por cento de humidade, o meu cabelo também revelou os seus genes paternos), e eu e o desgraçado do fotógrafo catalão, que apanha sempre comigo os serviços mais sinistros (lembro-me de irmos à Lapa fotografar uma cratera de um metro de diâmetro, descrita assim pela Lusa, e quando lá chegámos era uma rachita no chão), nós os dois com o dente a bater, a desesperármos por quatro almas caridosas que respondessem ao Vox Populi, e era tão simples a pergunta: "Já alguma vez tinha visto neve em Lisboa. Gostou de ver nevar?", não custava nada responder, a fotografia é um crominho, quase não se vê, e o rapaz é bom fotógrafo, faz as velhas bonitas e as novas trigueiras, mas ninguém, ninguém queria responder, nem uma filha da mãe de uma tipa que, sádica, ainda teve o desplante de dizer que tinha um filho jornalista mas que não estava interessada, e eu a desejar desemprego crónico ao filho jornalista, a desejar-lhe um balcão de MDonalds, ou recibos verdes e 14 horas de trabalho por dia, pelo menos durante cinco anos, para ver o que é bom para a tosse, para ver se para a próxima responde, mas, à porta do Monumental, depois de termos corrido, também, a Maternidade Alfredo da Costa, e todas as paragens de autocarro da Fontes Pereira de Melo, abordámos o senhor Bicker. Velhotes. É o desespero de causa. Todos os velhotes gostam de opinar. Basta ver a média etária do Fórum TSF ou do Opinião Pública da SIC Notícias.
E graças ao senhor Bicker, à neve e à outra filha da mãe, eu tenho mais uma história para contar. Abençoado senhor de olhos azuis cristalinos e placa dentária saltitante, abençoada loucura, artereosclerose, solidão e galopante surdês.
"Fartei-me de ver neve na minha vida. A brasileira que cuida da casa é que estava doida, nunca tinha visto". Foi esta a resposta de Bicker da Costa e, claro, transformei o testemunho do homem de 85 anos numa coisa mais politicamente correcta, não estou certa, sequer, se mencionei a brasileira que o velhote, de origens alemãs, tratava como se fosse de uma raça menor.
Sem pedir licença, como a neve que caiu em Lisboa, Bicker da Costa começou a discorrer as suas memórias. Tínhamos que ouvir. Ele era uma alma caridosa, a primeira, que tinha respondido ao Vox Populi. Era o mínimo que podíamos fazer.
Surdo que nem uma porta, identificou-se como enólogo e, sem avisar para apertarmos os cintos e endireitarmos a cadeira, levou-nos de viagem até à Venezuela, a palácios e a quintas que não conhecemos, que nunca ouvimos falar.
Fortunas que se perderam, jogos de azar, jogos de amor. Levou-nos ao baile. Nem reparou que eu estava de ténis. Não disse o nome dela, apenas nos revelou que, à segunda dança, e tenho eu a certeza que foi ao som de Irving Berlin (o talentoso judeu russo Israel Isidore Baline, um self made musician, que aprendeu essa linguagem que eu percebo, que eu falo, mas que não sei ler ou escrever; ele aprendeu de ouvido, fiquem a saber isto: um dos melhores compositores de sempre, aprendeu música de ouvido e, se, de facto, fosse o meu destino andar a cantar, eu também devia aprender por obra e graça do divino Espírito Santo; não tarda, tiro da cabeça que é o que eu sei fazer melhor; não tarda, convenço-me que é mesmo a escrever que tenho que cantar o meu fado), escolho o Let's face the music and dance (There may be trouble ahead, But while there's moonlight and music, and love and romance. Let's face the music and dance), e antes o Cheek to Cheek (and I seem to find the hapiness I seek, when we're out together dancin' cheek to cheek), à segunda música, o senhor Bicker pediu a elegante menina com quem dançava graciosamente, com uma leveza de colibri, em casamento
Inveja. É coisa feia a inveja. Três Pai Nossos e Dez Ave Maria já. Quero que me peçam em casamento ao segundo post. Não sei rezar, aviso já. Com seis anos passei a vergonha na sala 5 da professora gertrudes Maria porque não sabia o que era jurar. Com nove anos, passei outra vergonha, numa sala da Gago Coutinho, durante um teste de Português, porque não sabia o que era imolar carneiros (e ainda bem, fiquei impressionada e ultrajada).
Ela disse que não. Mas o senhor Bicker, galã de filmes, mas com os olhos azuis da cor de um Pantone que ainda estava para inventar nessa altura, em vez de a preto-e-branco, como nas salas escuras do cinema, insistiu. Foi falar com os seus pais, impressionou-os com o porte nobre, mas, sobretudo, com o seu pátua. Ia partir para a Venezuela, explicou-lhes, queria casar o mais rapidamente possível. Isto foi há mais tempo do que o último nevão que cobriu Lisboa de branco.
O senhor Bicker era um homem lindo, ainda é um homem lindo, trajando sobretudo de cachemira e fato de alfaiate, mas no dia em que a neve caiu dos céus em Lisboa e em todo o país, no dia em que toda a gente sorriu, esticou os braços como que num demorado espreguiçar, e gritou o seu nome alto - Neveeeee -, no dia em que toda a gente sacou dos telemóveis com camera fotográfica e tentou parar o tempo para depois matar as saudades ao longo dos próximos 50 anos, o senhor Bicker esteve indiferente ao espectáculo: "Fartei-me de ver neve. A brasileira é que parecia parva. Fiquei sentado no divã".
A menina angelical, pele de pêssego e cheiro de rosas chá, a menina disse, poucos dias após as duas danças mágicas, disse que sim, que se aceitava casar, mas a bela noiva de cabelos loiros do senhor Bicker não tinha sequer enxoval. Apanhara todos desprevenidos, a paixão louca e decerto interesseira e de conveniência do senhor Bicker.
Esperaram, então, cinco meses até que as bordadeiras acabassem de bordar os lençóis e as toalhas, até que chegasse a baixela de prata e o serviço de porcelanas de 180 peças da Vista Alegre. Passados cinco meses, estavam casados. Na alegria e na tristeza. Até que a morte os separasse. Viram o mundo todo, viram neve em toda a parte.
Ela partira há três anos. E o senhor Bicker desdenhava da brasileira e contava ao primeiro estranho que o abordava que, depois da segunda música de Irving Berlin, a tinha pedido em casamento.