quarta-feira, dezembro 17, 2008

António


Os dias que se seguiram amanheceram com uma luz quase perfeita.

As manhãs todas apareceram-me como se trazidas pelos olhos do David que vê o mundo como ele é, ao lusco-fusco; há sempre sombra na luz que o David vê, e essa é a verdade mais antiga de todas, da qual nunca duvidei: que a luz precede a sombra e que se lhe sucede a seguir, interminavelmente; que nenhuma existe sem a outra, mesmo nos dias mais claros de todos, e os dias que se seguiram eram de uma luz que não feria ninguém, uma luz que fazia dançar as partículas de pó à minha frente e, se quisesse, poderia até nunca ter fechado os olhos naqueles dias; e nas manhãs todas parecia-me ouvir um estalido pequeno, o pequeno estalido que os ouvidos mais atentos conseguem escutar no momento imediatamente anterior à caixa de música arrancar o primeiro acorde ao rolo dentado onde estão gravadas, a relevo, as mais bonitas melodias.

Os dias que se seguiram chegaram-me, também, embaciados por um bafo qualquer, quente, vindo de dentro para fora de mim. E, aparentemente, apesar do ressoar de um longínquo eco, que não nos faria nunca esquecer os dias mais tristes de todos, parecia que, um a seguir ao outro, todos os sonhos voltavam a emergir, violentamente, respingando com uma esperança esmagadora os dias que nos chegavam, banhados com uma luz cada vez mais perfeita.

Os dias que se seguiram souberam também à primeira golfada de ar depois de se ter desejado com todo o ser, com toda a força, deixar de respirar, e havia, por isso, neles, também algo de água: todos os sons pareciam abafados por ela, os mais agudos e os mais graves não eram mais do que um sussurro, e nós rodopiávamos, leves, em manobras impossíveis dentro dela – piruetas, cambalhotas, e escarpávamos até às suas profundezas, para desenterrar todos os sonhos, até os mais velhos, os que foram quase esquecidos, e eles vinham à tona sem sequer lhes tocarmos, e nem nos lembrávamos sequer que ali os tínhamos mergulhado porque havíamos desejado deixar de respirar.

E por mais tempo que ali estivéssemos, que ali decidíssemos ter estado, as mãos nunca se haveriam de ter engilhado, o ar nunca nos haveria de faltar; ali não eram só os sons que se deixavam abafar por entre líquenes: tudo era morno e a luz, como eu já disse, era quase perfeita; era clara e sombria quando assim era preciso, e aquele sítio, para onde fomos arrastados nos dias que se seguiram, dava-nos tudo, e os sonhos pareciam mesmo saídos dali, de um lago de águas paradas e turvas, que os guardou em segredo, em paz, longe de todos, longe de tudo, e nós sorríamos entre golfões, tufos de lentilhas-de-água e emaranhados de raízes de nenúfares, afastávamo-los a todos como se afasta uma madeixa de cabelo que teima pousar à frente da cara, e banhávamo-nos com aquela luz quase perfeita que nos chegou nos dias que se seguiram.

Depois, foi o mais fácil, não foi preciso qualquer esforço, tudo corria de feição, como devia ter sido, como teria sido escrito da primeira vez, e a nossa missão era simples, trazermos os sonhos à deriva e, para grande surpresa de todos, eles estavam intactos, nenhum se esfarelou, nenhum se esborratou pelos dias tristes que agora acreditávamos ter enterrado.

E os sonhos pareciam ter sido sonhados a noite passada.

Podíamos até contá-los como uma história de encantar, pudéramos tê-los cantado como uma canção de embalar que se entoa, ao fim da noite, à cabeceira de uma criança que ainda não tem medo do escuro; eles voltaram como se os tivéssemos acabado de sonhar, como se ainda trouxéssemos a cara enrugada dos lençóis brancos onde pousámos o corpo durante dias que não foram mais do que noites; e os sonhos traziam em si as metáforas mais bonitas, todas as promessas, os melhores augúrios, e nós éramos heróis em todos os capítulos - a nossa força e coragem enterrava todos os monstros, todo o mal e toda a dor; éramos portadores de toda a esperança do mundo e da justiça também; sabíamos isso, tínhamos acabado de acordar e os sonhos, os nossos sonhos, afinal, não tinham ido a lado nenhum.


Para o meu filho António, que é o sonho mais bonito, é a luz, depois do pesadelo mais cruel.

Para o João – até ao infinito.

(E para a minha amiga Hermínia, para o meu amigo David, que nunca deixariam que me faltasse o ar, mesmo que eu desistisse de respirar)

terça-feira, outubro 21, 2008

Tantas, tantas vezes me aconteceu o mesmo.

É por isso que eu digo que não sou bem a filha da minha mãe. Ela nunca se mostraria tão vulnerável, seria mais impensável do que passear pela rua em trajes menores, ela nunca se deixaria paralisar por algo que não fosse francamente aterrador, nem o maior susto da sua vida, talvez nem o seu maior desgosto a fizesse quedar-se e quebrar-se em frente a uma multidão.

E ninguém parou, nunca ninguém parou quando tantas, tantas vezes me aconteceu o mesmo; nunca ninguém sequer abrandou, ninguém perguntou se eu precisava de ajuda, nunca ninguém estendeu a mão, ninguém olha para trás, nunca ninguém olha para trás, só para a frente, nunca ninguém saiu do piloto automático quando isto me aconteceu, tantas, tantas vezes.

Por isso é que me foi impossível continuar com a minha cómica marcha - um pé inchado atrás do outro, uma coreografia meio grotesca, barriga empinada, caminhar arrastado, bamboleante, gotinhas de suor a deslizarem pelo nariz, outras em fila de espera para andar no escorrega na minha testa.


Eu bem que podia ter feito como todos os outros, seguido o caminho das pedras que me leva todos os dias a um sítio onde eu sou um pouco menos eu, onde definho mais um bocadinho, onde experimento o desprezo depois de um nadinha de glória, o desânimo depois da alegria, onde cada vez mais me convenço da máxima maior, que sou boa demais, que sou boa demais para isto e para quase tudo o que já fiz na vida, que anda meio mundo a enganar o outra metade, a enganar sem tão-pouco disfarçar, e a metade enganada sorri, encantada.

Eu podia ter fingido que não era nada comigo, que tanto se dá como se me deu, como se ela fosse mendiga, como se ela fosse nojenta, como se estivesse desgrenhada, como se ela tivesse uma doença altamente contagiosa. Pior. Podia ter passado por ela como se ela fosse invisível.

Mas não podia ser assim. Porque tantas, tantas vezes me aconteceu o mesmo e ninguém parou, nunca ninguém parou. E só de olhar para ela, ao longe, fiquei tão triste – tinha que parar.

E era apenas uma mulher bonita, muito bonita mesmo, que chorava em silêncio, sentada num banco de jardim, e uma multidão imensa passava por ali, um formigueiro que não quer saber, que nunca vai parar, porque é só uma mulher triste a chorar num banco de jardim. Ridícula.

A minha mão parada na perna de uma mulher que chorava sozinha num banco de jardim. Se a minha mãe me visse, ia achar que eu sou mesmo filha do meu pai. Eu agachada, com esta barriga toda, à procura do equilíbrio, entre estalidos de articulações que não nasceram para carregar o peso do mundo, que podiam carregar muito bem uma criança mas não toda o excesso de bagagem que trago em mim.

Em que é que a posso ajudar, precisa de alguma coisa, quer que eu lhe vá buscar uma água, uma sucessão de perguntas tontas. Não valeu de muito, não valeu quase nada, foi só uma mão em cima de um joelho tapado por uma ganga preta, duas ou três frases de circunstância, atabalhoadas, eu também fiquei tão triste, como se a tristeza se passasse por um qualquer sensor de bluetooth.

Mas a mulher sorriu, sorriu de surpresa, eu estou aqui, afinal eu estou aqui, não desapareci, terá pensado ela, e sim, eu teria gostado que, um dia uma alma qualquer tivesse parado também, oferecido um lenço de papel com sabor a alfazema, que me assegurasse que tudo ficaria bem, mesmo desconhecendo que dores de crescimento eram ali curtidas num banco de jardim.

E a mim, certamente, ninguém me vai condecorar, nenhuma sessão solene será convocada para elogiar os meus nobres e gloriosos feitos, as minhas incríveis façanhas; não haverá centros de flores em cima da mesa de honra e no palanque, nem medalhas brilhantes com fitas de cetim para pendurar ao pescoço depois ouvir de bonitas palavras escritas por um qualquer assessor.

Porque isto acontece-me vezes demais, já me aconteceu vezes de mais, tantas, tantas vezes.

quarta-feira, outubro 15, 2008

Mamã, e se os números nunca acabam, porque é que nós acabamos?
Carolina Ralha, 4 anos, ao calor de 39 graus de febre, e com a garganta forrada a pus, no habitáculo de um Fiat Idea, parado em frente ao nº 19 da Avenida Almirante Reis.


Bem vistas as coisas, foi a primeira marca semi-permanente que deixei no mundo, ou no estuque de uma parede.

Tanto faz.

Para esta, para qualquer outra história não faz grande diferença, e nunca é muito relevante, sequer, saber de que forma é que se fez a ferida, qual foi o barulho do tombo, o tamanho e a forma da cicatriz, ou mesmo como foi e porque artes conseguimos chegar em primeiro, à frente de todos os outros; como é que conseguimos cantar mais alto, correr mais rápido, acertar em tudo o que havia para acertar, e suportámos cair nas graças do mundo, e aguentar até hoje a suportar o peso de todos os olhos pousados em cima de nós.

Para aqui pouco importa, só é de tomar nota que este foi um dos primeiros e nem por isso raros momentos em que uma coisa qualquer se serpenteou perto de mim, demasiado perto de mim, e anunciou baixinho que eu sempre caminharia pelos mesmos caminhos dos outros, mas num passo e de jeito diferente.

E essa certeza - e isto também não é muito relevante - só me chega agora, vinte anos depois, aparentemente só me chega agora.

Sempre soube que esta foi a primeira marca, mas apenas se torna tudo límpido em mais um impasse, em mais uma insónia, em mais uma moinha, já se transformou num incómodo apenas, uma espécie de zumbido, uma comichão, quando essa qualquer coisa se aproxima demais, e me chega mesmo a tocar, e depois recua, claro, queima só um bocadinho, só mais uma pequena picada para me lembrar que há-de ser sempre assim - eu hei-de andar pelo mesmo caminho dos outros mas num passo e de um jeito diferente.

Mas, primeiro que tudo, há a festa de Natal da escola no Bairro das Estacas, na sala 7, em frente àquela em que eu aprendia a desenhar os mais belos quês de quá quá, num quadro preto muito grande e que parecia feito de manteiga de ardósia.

Na sala 7, o quadro não era negro, nem de pedra arrancada à terra, era verde, de um qualquer composto industrial, naquele quadro as letras recusavam-se a ficar tão bonitas quanto as da sala do quadro preto rugoso da sala em frente - que sorte a minha ter aprendido a desenhar as letras naquele quadro - e foi ali, numa sala que me era estranha que eu ouvi o primeiro guincho de um pau de giz, e eu nunca percebi porque é que o pau de giz partido não guincha, ou pára mesmo de trinar.

Os apagadores da Cisne, de desperdício de fibras têxteis compactados, eu consigo ver tudo com demasiada nitidez, talvez me possa baralhar um pouco, efabular um pouco: na carteira para cima da qual me ergueram no encore, as tranças da Minashri e o pullover aos losangos do Pritesh ao meu lado, comigo a cantar a lenga-lenga em francês que a minha mãe me ensinara, muito encolhida.

Saint Nicolas va m'apporter une poupée, une poupée, Saint Nicolas va m'apporter une poupée pour m'amuser.


Essa foi a primeira vez do conhecimento de muitas coisas importantes, do poder emudecedor do som que me sai muito afinado da garganta, foi o dia em que descobri também que o coração por vezes sai do seu poiso e se faz ouvir em surdina junto à orelha direita.

Et des caramels pour les demoiselles, et des grand batons pour les vilains garçons


Foi o primeiro trago de uma coisa que a quem chamam espanto, eu espantei-me com o que acabara de acontecer: o silêncio, o medo, as palmas, e depois um rubor nas bochechas e na barriga quando tudo terminou.

Mas este momento só foi verdadeiramente relevante para mim, eu hei-de me lembrar da minha primeira canção em frente a uma escola inteira durante toda a minha vida; só eu me lembro da festa de Natal da Escola do Bairro das Estacas na sala 7.

E depois há o convite à menina tímida que acabara de mudar de escola, órfã de três avós em menos de um ano.

Eu não falava com ninguém, eu não ria de nenhuma graça, não trazia os meus berlindes nem o meu elástico, nem fixava verdadeiramente os olhos em nada. Não saltava nem brincava no recreio, e quando chovia, eu gostava quando chovia, transferiam-nos para um pavilhão de chapa de zinco e aí eu passava o tempo à margem, nunca perdi tempo a olhar para dentro, mas sempre a olhar para fora, e esgotava o tempo em que não estava na sala de aula – o quadro já não era de ardósia, aquela já não era a sala 5 - a contar as goteiras da gigante barraca e convencida que Deus me tinha como filha adorada, porque o mestre de Judo reciclado em professor de ginástica da criançada continuava doente e, assim, não teria que admitir em frente a toda a turma que não sabia dar uma cambalhota, fazer o pino, ou rodopiar numa roda.

Mas o dia em que eu deixei a minha primeira marca semi-permanente no mundo, ou no estuque de uma parede - como disse, tanto faz -, em que este vaivém começou chega-me agora, sem aviso, mais de vinte anos depois, enquanto vos escrevo com dois cérebros e vinte dedos das mãos, foi esse o dia em que o extraordinário me bateu à porta pela primeira vez, cedo demais, cedo demais, era só uma criança de oito anos quando uma directora de um colégio privado me encomendou o meu primeiro mural, pediu-me ela, em frente a toda a escola: Podes tirar duas tardes e pintar as paredes da sala dos bebés com os desenhos tão bonitos que só tu sabes fazer?

Depois de forrar as paredes com gatos gordos de várias cores, uma maceeira, flores, e da minha assinatura junto ao rodapé de uma das paredes - foi a primeira vez que eu assinei Diana Ralha, que nome bonito que me deram -, nesse mesmo ano, como seria de esperar, tornei-me invencível e rápido viria a ser a aluna-prodígio do professor Geraldes. Com a ajuda do meu querido irmão-primo Hugo, passei da menina triste para o mais perto de uma Nadia Comaneci que algum dia fui. Até grande ginasta eu já provei que conseguia ser - Quantas vidas cabem em mim?

Muita história poderia ter sido contada desde a última vez que eu aqui escrevi; desde a última vez que o extraordinário me tocou de raspão e voltou a deixar nódoa-negra.

A vida, a nossa vida, já não passa devagarinho entre as quatro paredes de Santa Marta. Agora, de vez em quando, conduzo um jipe do bloco de leste comunista e trago em mim uma outra, uma nova vida: tenho vinte dedos das mãos, vinte dedos dos pés, tenho dois cérebros, e cresce em mim um menino que se vai chamar António.

E porque o extraordinário já persegue o meu menino mesmo no escuro do ventre da sua estranha mãe, ou talvez porque, afinal, existe uma qualquer lei de compensação cósmica - coisas tão más não deviam acontecer a pessoas que, pelo menos, tentam não fazer mal a ninguém, só pode ter sido engano, não devia ter sido eu -, o António se calhar vai chegar ao mundo um ano depois do maior desgosto da minha vida. E está bem assim, se calhar está mesmo bem assim, eu aguento tudo, quem é que não acredita que eu aguento tudo?

A Carolina agora dorme num quarto cheio de fadas e estrelas que eu própria desenhei e depois pintei com todo o amor que me pode sair das mãos, sem me preocupar em assinar o gigante mural, como da primeira vez em que deixei a primeira marca semi-permanente no mundo.

A minha filha fez-me prometer que nunca mais mudamos de casa. Muito triste, numa noite destas, mesmo muito triste, ela explicou-me que é pequenina e que por isso se vai esquecer da casa onde fomos só nós duas e mais ninguém, e onde depois fomos três, onde as paredes abriram rachas de tanto amor que por lá passou.

E por isso, para que ela não se esqueça de Santa Marta, da D. Beatriz ou do Sr. Zé, do seu quarto cor-de-rosa cheio de gatos nas paredes, da parede laranja da sala, ou da cozinha vermelha, assentamos as histórias da sua memória de quatro anos num caderno muito bonito que a Teresa nos deu. Quem sabe se esta não será a sua primeira marca semi-permanente no mundo?

Agora, vivo numa casa cheia de sol, de tectos altos onde nascem flores de estuque feitas pelas mãos mágicas de alguém que conheceu as minhas paredes há mais de cem anos. Vivo na avenida maldita, digo isso aos turistas, que aquela avenida é amaldiçoada, conto sempre novas histórias, e tenho um amigo paquistanês que reza a Alá para que a garganta da Carolina a deixe em paz.

Subo cem degraus para chegar à nossa casa, onde cabem todos os nossos amigos, toda a nossa família, todos os nossos sonhos, e há remendos mal feitos no chão de tábua corrida, há os gritos do prédio da rua de trás, mas é a casa de onde eu prometi que não saía mais.

E sonho muitas vezes com o meu pai, lembro-me dele por tudo e por nada, vejo-o quando deixo o olhar perdido nos pequenos quadrados de mosaico azul de uma qualquer piscina, ou quando pinto fadas nas paredes com os pincéis que ele me deixou em herança.

E também sonho com o cheiro e com o colo da mãe do meu pai, com ela a abrir-me a asa e o cobertor da sua cama, com o cabelo muito comprido e branco, uma figura diferente daquela que eu conheci, como se ela tivesse envelhecido apenas nos meus sonhos, como se nunca tivesse morrido e vivesse nos meus sonhos, e ela a dizer-me, uma noite destas em que não dormi por causa de mais uma dor, a minha avó tapada por um cobertor estampado com o mapa mundi do século XV a dizer-me: entra, podes dormir aqui.

E penso - eu não sou a filha do meu pai. E repenso: também não sou a filha da minha mãe, muito menos da minha mãe, essa mulher inquebrável que nunca chora a não ser pelas suas árvores e pelos jardins votados ao abandono.

Eu sou qualquer outra coisa de intermédio, mas não sou mistura de nenhum dos dois. Sou a derrota e a glória. Sou bonita e sou feia. Sou amiga e venenosa. Sou mercenária e bondosa. Sou a mão que escreve e a mão que pinta. Sou a voz que canta e a voz que defende causas invencíveis.

Sou tudo e não sou nada.

quinta-feira, abril 03, 2008

E nada de extraordinário acontece (uma e outra vez)

A frase está trocada - eu quero dizer uma coisa, mas digo o seu contrário, não sei bem se é de propósito, mas faço isto a toda a hora, eu desdenho, eu provoco, e eu queixo-me à toa, trago os bolsos cheios de histórias de um cancioneiro que faz cair os queixos e esbugalhar os olhos, eu digo (como é que eu tenha a lata de dizê-lo?):

eu só quero uma vida simples, sem sobressaltos.

E sento o rabo no sofá da casinha de bonecas da rua do Monopólio (eu vou morar para a avenida maldita, mas ela também está no tabuleiro do jogo da minha infância, sentados em cima do tapete sobre o qual o meu pai morreu, as pernas da mesa enterradas em tacinhas de água por causa das formigas pretas, e eu decido morar na avenida maldita, porque sempre tive queda para acolher as maldições de todo o mundo) – eu sento-me e não posso deixar de pensar que o meu rabo está enorme, que isso não é de hoje, mas que agora já não sei, já não reconheço que corpo é este que arrasto.

(e quando o telefone tocou – foi quase há um ano, como é que já passou quase um ano -, junto ao recreio da escola de São Miguel, em frente ao prédio da segurança social, e o meu irmão disse, o Zé Ralha morreu, eu pensei imediatamente que ficaria com os seus olhos; lembro-me de baixar a pála do pára-sol e espreitar a medo se os meus olhos já tinham ficado grandes como bolas de cristal, e se já não eram os meus, umas amêndoas perfeitas, que viam tudo a andar à roda; e isto, todo este medo, porque há muito, muito tempo ele disse-me, na única sombra do terraço de tijoleira escaldante - a glicínia ainda estava em flor-, quando a tua avó morreu - és tão parecida com a minha mãe -, ela deu-me os seus olhos, nesse dia, eu sonhei com uma tangerineira, e acordei com os olhos da minha mãe).

Mas eu sento o rabo no sofá - e naquela casa há sonhos novos dentro do estafe de cada parede velha repintada -, e eu digo às minhas vizinhas (querendo acreditar nisto com todo o meu ser):

Eu não preciso de mais nada. Acreditem no que vos digo, não quero glória, não posso ousar pedir seja o que for, e mereço todas as agruras; é que não posso mesmo, se ninguém me põe no meu lugar eu mesma me ponho na ordem, eu sei ser humilde, eu sei agradecer de papo cheio ou mesmo quando tudo é deserto, porque quem tudo quer, tudo perde, e porque mais vale um pássaro na mão do que dois a voar; eu tenho tudo o que pedi.


Ousei pedir o impossível que se fez possível, eu tenho mais do que poderia ter sequer sonhado,

(e tenho só quase trinta anos)

eu tenho-o a ele, o meu grande, grande amor, aquele que arrastei para o incrível mundo do nada de extraordinário acontece.

Bem, sei, tens toda a razão, a frase devia ser ao contrário - e tudo o que é extraordinário acontece -, eu não sei bem porque é que não escrevo tanto como antes, se é porque tenho medo de ser pobre e mal agradecida, eu não queria mais nada, não preciso de mais nada, só uma vida simples, nas vidas simples os blogues não servem para nada,

(escrevo isto e tenho Álvaro de Campos a sair-me da boca para fora, se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz),

e visto isto, percebo que não há um pingo de humildade em mim, que digo isto da boca para fora, para ver se de tanto repetir consigo decorar, mas eu quero mais, sempre mais um pouco; há meses, uma boa meia dúzia deles, eu gravei no telemóvel o número de telefone do comendador – porque raio, queres tu o número do comendador, sabe-se lá, e nada de extraordinário acontece, e agora da janela do museu que lhe é homónimo, eu tenho Picasso e Magritte ao meu dispor (e quem haveria de dizer que os Litchensteins são tão grandes), ainda agora, há tão poucas semanas, eu embrulhava os quadros da herança do meu pai, um Bual, não sei quantos Limas de Freitas, e os quadros do meu pai, e o número do Comendador guardado no meu telefone rasca.

E zango-me, arrelio-me (Miguel, arreliar é uma das minhas palavras favoritas; e bem-haja também – era o meu avô Oliveira que as dizia sempre, Diana, não me arrelies, e Diana, bem-haja), tenho a Santa Filomena, de setas coladas ao peito a olhar para mim, e quantas vezes pensei – afinal, o meu pai não era bruxo; afinal, o meu pai nem sequer me deu os seus olhos, afinal, tudo o que me resta são prédios no Barreiro e centenas de telas embrulhadas em papel de cenário,

Mas o meu pai faz-me das suas, porque eu insisto, porque eu digo, à laia de ladainha em tom menor, e nada de extraordinário acontece, e um, dois, três, dias depois de eu perder o filho que não nasceu, aparece, sei lá vindo de onde, um fantasma monocromático ofendido com as palavras deste blogue, que abalroa a minha mãe na rua, que diz que eu sou uma galdéria, que não presto para nada, um fantasma se sumiu da vista há mais de dez anos, raios, raios, e tudo o que é extraordinário acontece, e virgem ofendida, devolve um quadro de um anjo que o meu pai em tempos pintou. E o imbecil ofendido nem percebe que me trouxe um presente do meu pai, nem percebe que foi joguete de um plano maior, que só serviu para isso, e espero que fique bem, e que tenha muitos filhinhos pela barriga da perna.

Mas não fica por aí - comovo o haitiano octogenário com o meu francês macarrónico – tu parles le francais comme une vache holandaise, diria o meu avô Oliveira – e convoco toda a imprensa para o seu trabalho, peço ao David o email da última voz da rádio, e digo quem sou, o que fiz (não sou nada, não posso querer ser nada, Álvaro de Campos está-me nas pontas dos dedos), que preciso da sua voz emprestada, e do outro lado do oceano, onde o ditador veste fatos-de-treino da Adidas – ele responde que me conhece muito bem, que muito estima o meu trabalho, e eu sem saber a que trabalho ele se refere.

E se tal já não bastasse – já era demais até ao final do ano, pelo menos -, pela manhã sorrio por dentro, porque a mulher com quem falo, desde o início da semana, de orquídeas, azáleas e hibiscos, diz em francês, ao telefone, que o recém nomeado director-geral das artes, é da terra do São Francisco Xavier, que lhe deve ter herdado o apelido

(Eu sorrio, porque o João acha que eu sou Xavier, porque a minha família goesa descende do santo)

E, de repente, ela desliga o telefone e em tom grave, pergunta:

Filha, qual é mesmo o teu apelido?

E eu respondo, a sorrir, Xavier Ralha, isso mesmo, o apelido dos monhés, e julgavas que era só isto, nã, nã, nã, faltam as palavras mágicas, essas mesmo, as que eu digo em jeito de feitiço dos contrários – e nada de extraordinário acontece -, e já temos as duas os pelos dos braços eriçados à espera do que está para vir, quando ela me deita ao chão (preciso de fumar, preciso de fumar 3 cigarros de seguida) e revela um dos segredos mais bem guardados da família:

O teu pai não tinha um gato chamado Leonardo?

E, de repente, eu percebo porque, afinal, guardei o telemóvel do comendador.

terça-feira, março 11, 2008

A escada

De certeza, a qualquer momento, vou-me esquecer – estou nisto há dois dias –, talvez não seja ainda hoje, mas de amanhã não passa, com certeza, vou-me esquecer, é tão certo como o remoinho da minha franja arrebitar o monte de cabelo sobre a minha testa, e vou levar à boca o copo de água que antes de mim matou a sede à gerbera oferecida pelo Spa das tias, na véspera do dia da Mulher.

Mas, inexplicavelmente, deixo-o ficar, aqui, do lado esquerdo.

Certamente, talvez aguente até amanhã – ando nisto há quantos dias? –, sou capaz de jurar que não vai demorar muito, semanas no máximo, vou tirar as conchas que me aquecem as orelhas com decibéis acima do que as autoridades comunitárias aconselham, e esqueço os máximos do petróleo, deixo de plantar dezenas de notícias sobre o preço do alumínio, peço desculpa ao meu adorado banqueiro, e agarro no pinheirinho que enquadrei entre as escadas de incêndio e o rio Tejo, saio pela porta sem mais explicações, sento-me num degrau frio da escada que ninguém sobe, que ninguém desce, e começo a cantar.

Qualquer coisa, o que me vier à cabeça – quantos gigas tem o lado direito do meu cérebro, eu acho que é do lado direito que guardo todas as músicas, mesmo em cima do olho -, às vezes, só vou lá acima para murmurar baixinho qualquer coisa pelas escadas, pego num cigarro, e vou lá acima, perguntam-me, não vais de elevador, não, não vou, não dou mais explicações, subo pelas escadas porque quero ver o Marquês e para murmurar baixinho qualquer coisa pela escada acima; só por isso é que vou lá acima.

Como é que era? Passávamos os intervalos escondidas, no breu, escondidas pelo caracol da escada, eu tinha a voz límpida, e a tua voz por vezes cheirava a mofo, tinha buracos como uma qualquer avenida de Lisboa, e a minha era constante e cristalina, nunca saía de tom, nunca hesitava, parecia tudo uma incrível magia, por vezes, espantava-me a beleza das nossas vozes juntas, tínhamos 14 anos, eu descobri a minha voz às escuras, contigo, a cada intervalo, e lá fora jogava-se à bola, e fumavam-se cigarros junto às casas-de-banho, mas nós fugíamos, não dizíamos nada a ninguém - aquilo era o segredo mais bem guardado, era melhor do que qualquer droga -, nós dávamos as mãos e íamos cantar para as escadas que já ninguém se lembrava.

Gostava de voltar àquelas escadas. Provavelmente, ao cimo do caracol, trancados a sete-chaves, ainda estão os xilofones que me faziam rir com a minha própria descoordenação motora, decerto, coberto de pó ainda está o piano desafinado, gostava mesmo de lá voltar contigo para cantarmos músicas de quando ainda não tínhamos nascido.

De certeza, eu sinto-me prestes a ceder, não vou aguentar muito mais estou assim desde que encontrei aquela foto dentro do CD da Elis, eu de cabelo muito ralinho, o maior tesouro da minha herança é aquela foto dentro do CD da Elis, o meu pai guardava-me dentro do CD da Elis, e desde que eu encontrei aquele retrato a preto-e-branco, cabelo em desalinho, a minha boca tão bem desenhada, assim a olhar para cima, todos os sonhos enterrados na covinha da bochecha direita –, já não sei quantas vezes cantei a “Saudosa Maloca”, ou as “Folhas Secas” e o “Cais” desde que encontrei aquela foto; por ora, eu só precisava de umas escadas, umas de mármore, no penúltimo andar de um prédio alto, não preciso de audiência, enquanto uns fumavam charros, enquanto outras descobriam o corpo, eu passava as tardes numa escada a cantar.

Sei bem que a Natalina, do sétimo andar, abria a porta devagarinho, e ficava a escutar, sei muito bem. Na altura eu não ria alto, eu não dava nas vistas, eu era invisível – dava tudo para ser outra vez assim –, naquele tempo eu não queria escrever, eu não gostava de canetas, e nunca tinha batido os dedos sobre nenhum teclado, e eu tinha esta certeza, eu trazia esta certeza agarrada à garganta, que o que mais me fazia feliz era cantar.

Na escada, sem audiência, sobretudo sem audiência, eu queria ver até onde é que eu podia chegar; eu levava o meu maço de SG Ventil e passava as tardes a cantar, matava as beatas com o sapato que também ainda não era de salto alto, eu matava as horas a cantar músicas que mais ninguém conhece, a cantar dores que ainda desconhecia, mas que adivinhava estarem à porta, eu sei que sou quem sou por causa dessas músicas que foram escritas e cantadas muito antes de eu nascer, sobretudo por elas, eu sou esta pessoa, não há palavras aqui, aqui ou noutro lugar, que me convençam do contrário, e não há nada que me faça tão feliz como quando cantava naquelas escadas.

Qualquer dia, a qualquer instante, eu tinha 14 anos, eu apaixonei-me pela minha voz há mais de 14 anos, e depois fechei a boca, como se faz a um amante traidor, eu fingi que esqueci o grande amor da minha vida, não tarda, sem mais demoras – eu sinto isto desde que encontrei a foto a preto-e-branco, fechada no tesouro mais precioso da herança do meu pai -, fecho a tampa do portátil, deixo a cadeira a girar sozinha, levo o maço na mão, saio porta fora e ponho-me a cantar.

Por enquanto, enquanto isso, fico por aqui, a adivinhar quando vou beber ao engano o copo de água choca que matou a sede à gerbera oferecida pelo Spa das tias, na véspera do dia da Mulher.

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

No dia seguinte

Eu penso muito nisto, e não fiques já com essa cara, com medo do que aí vem, porque eu sou absolutamente inofensiva; já fiz mal às formigas, mas apenas porque elas não se foram embora da bancada de mármore da cozinha após demoradas conversações, e depois de esgotada toda a diplomacia, ainda esperei três dias, mas em abono da verdade, e em minha defesa - raras vezes, como esta, eu saio em defesa do meu bom carácter -, que fique registado que nunca toquei numa mosca, apesar de descender de uma família de caçadores de varejeiras.

E por isso, talvez por isso mas daí talvez não, porque a minha mãe não é do lado da família que apanha moscas qualquer uma das mãos e até de olhos fechados, ela por vezes até me diz que me falta espinha dorsal, e que não me corre sangue nas veias, porque não quero sentir ódio ou amargura porque são sentimentos que me queimam, porque quase sempre ofereço a outra face, porque me vergo, porque não enfrento o touro pelos cornos, porque levo esta vida sem subir montanhas, e o problema, o único problema é que eu penso em tudo, sobre a mais insignificante merda que se me atravessa no caminho.

A toda a hora, e não é pêra doce, não é fácil ser eu a toda a hora, e às vezes lembro-me da Tiju a confidenciar-me na assoalhada que fica imediatamente em baixo da outra onde, em tempos tão mais felizes, fazia biscoitos em forma de estrela com a minha avó - os móveis da cozinha eram laranja mas não consigo refazer a copa, tinha uma predilecção pelo armário dos tupperwares que cheirava a plástico velho, mas não consigo ver nada na copa além do sorriso e dos lábios finos da minha avó; e sei que era lá que batíamos nos tachos à janela, quando o ano velho se despedia, mas não me lembro de que cor era a copa onde fazia biscoitos e bebia copos de água com pastilhas de Cecrisina -, a Tiju a dizer-me que o meu pai em tempos lhe disse isso mesmo: que não era fácil ser ele, que por vezes, nem ele tinha paciência para si próprio. E assim, eu tenho a certeza que sou mesmo filha do meu pai, que quem sai aos seus não é de Genebra, ou como raio é o provérbio.

Mas, descansa, eu não penso mais em ti do que penso em tudo o resto, não mais do que nas mãos da minha mãe, que estão cada vez mais torcidas como um tronco de uma árvore bonsai, não menos que nos resultados do banco de amanhã, ou nas cores dos azulejos da casa-de-banho nova que não sai do papel, e quase o mesmo do que no buço que só eu vejo reflectido do outro lado do espelho, nos olhos azuis costureira mongol que vive aos pés de Santa Marta, ou na peruca loura e despenteada da vizinha que todas as noites desce ao Andaluz para jantar com o marido gigante sempre com chapéus ascottianos enfiados na cabeça.

Mas penso muitas vezes nisto – se ao menos eu tivesse nascido no dia seguinte, naquele que vem depois da capicua 22, talvez fosse mais parecida contigo, talvez nunca reparasse no buço que mais ninguém vê, talvez eu não comesse bolachas de chocolate para esquecer todas as frustrações, muito provavelmente eu não duvidaria que sou mais inteligente do que toda a gente que me rodeia; eu podia reinar, como tu, talvez se eu tivesse nascido no dia seguinte, talvez eu escrevesse o tal livro que toda a gente me pede, se eu tivesse nascido um dia depois era leão como tu; eu penso muitas vezes nisto, que gostava de ser como tu.

E toda a gente me fala mal de ti, leãozinho, que és um predador, um mercenário, que não olhas para trás nunca, que traças o teu destino a tira-linhas todos os dias, e que arrasas quem quer que seja que te faça desviar do plano original; que te gabas do teu sucesso, que em tempos destruíste a minha reputação – como se eu tivesse alguma -, toda a gente me diz tem cuidado, que um dia tu me vais magoar, que não tens nada de santo, que és feito de pau oco, que és incapaz de amar; ninguém percebe porque gosto tanto de ti, e mesmo assim, eu oiço todos os argumentos, entra por um ouvido e sai por outro, e eu continuo a gostar de ti, a admirar-te de muito longe, e penso muito nisto, que, se ao menos eu tivesse nascido no dia 23, talvez fosse um bocadinho mais parecida contigo.

Vejamos se nos entendemos e se eu vou directa ao assunto. Eu nunca serei porra nenhuma, só vou ser dona do meu nariz empinado, eu nunca vou ser nada, não vou escrever o tal livro, já não sei se ninguém me respeita apenas porque tenho um par de mamas, não é fácil ser eu própria, não é mesmo, questiono cada centímetro do meu corpo, cada gesto impensado; pode até não parecer, mas meço todas as palavras, não é nada fácil, por vezes também me canso de mim, porque choro demasiadas vezes atrás do portátil, porque carrego o luto por todas as coisinhas que cirandam na minha cabeça que têm que me abandonar, porque é assim a vida, mas, talvez, nunca se sabe, se eu tivesse nascido no dia seguinte, eu se calhar ia mais longe, e se assim tivesse sido, eu queria ser como tu.

Agora falo menos, falo menos e rio menos, porque é melhor estar calada do que apenas falar sobre mim; no fundo, eu nasci um dia antes e, por isso, estou fechada sobre mim, e eu também penso tanto nisto, nem mais nem menos do que em todas as outras coisas juntas que andam aos saltos dentro da minha cabeça, quantas vezes estivemos juntos, se juntássemos todos os bocadinhos, ao longo de todos estes anos, quantas horas estivemos juntos, nem um dia estivemos juntos, e eu deposito quase tudo no amor que tu também me tens.

A história é esta. Simples. A do dia seguinte.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Quando é que se abre a porta aberta?

As portas estão todas fechadas, estão sempre fechadas, e quando as encontramos de outra forma, se é que as encontramos de outra forma (as portas não nasceram para estar abertas), estão escancaradas, em deboche; as portas são estridentes, elas nunca se entreabrem de soslaio, as portas nunca deixam ver o que está do outro lado por uma nesga,

(essa é a função das fechaduras, as fechaduras só existem para podermos espreitar o que está para lá da porta)

não há meio termo, nunca há meio termo, porque ensinaram-nos isto, de pequeninos - fecha a porta atrás de ti, não te esqueças de dar três voltas à chave, e não abras a porta a estranhos, nunca abras a porta.

E então, se é assim, se é sempre assim, quando é que se abre a porta aberta?


As portas estão sempre fechadas, nem que seja só no trinco, é simples o seu destino, as portas só existem enquanto portas porque devem estar fechadas, cumprem pena pesada, voto de clausura, por um pecado qualquer, por uma promessa qualquer, por um segredo qualquer, por vezes, não guardam nada, não escondem nada, mas, mesmo assim, têm que estar fechadas, com correntes, prisioneiras de aloquetes para os quais nunca foi feita nenhuma chave da salvação.

Ensinam-nos isto, que quem anda à chuva molha-se, que quem brinca com o fogo faz xixi na cama, e que as portas estão sempre fechadas, têm que estar fechadas.

E então, se é assim, se sempre foi assim, quem é que se lembra de abrir a porta aberta?


E talvez sejamos as únicas pessoas desta cidade que puderam acreditar que a porta estava encostada, apenas encostada, fomos os únicos que nos lembrámos de abrir a porta aberta – porque raio, desta vez, não levámos o pé-de-cabra, porque raio não trouxemos o alicate, o escopro e o martelo?

(E já pensaste quantos pares de pés passaram pela porta aberta antes de nós?)

E quem resisitiria a espreitar, quem não teria entrado também se ela tivesse deixado antever o que estava para lá de si - lá dentro já esperávamos a penumbra, a porta nem sempre fecha todos os segredos; lá dentro, sentia-se cá de fora, nem precisava de estar aberta para o sabermos, para adivinharmos o cheiro, uma mistura de velho com penas de pombo e pó, cá de fora eu ainda descortinava o cheiro da cera de abelha, do chão e das tralhas esquecidas -, mas quem, se não nós, se lembraria de apenas encostar a palma da mão à porta e, sem palavra mágica, sem impressão digital – todos os dias, o meu dedo abre uma porta -, ainda bem que eu acreditei que conseguia abrir a porta aberta, e que fui à frente, sem medo, e que depois pude olhar para trás, e sorrir, e dizer-vos:

Já está. A porta está aberta.


Eu juro-te, muita coisa mudou desde o último dia do ano, quando tu ficaste atrás de uma porta que eu não vou conseguir abrir apenas com a força que se acumula na ponta dos meus dedos; outros milhares de pares de pés passaram pela porta aberta, depois de lhe termos descoberto o segredo.

Sabes,

(a Carolina começa todas as frases assim, como eu, sabes?)

O meu cão desapareceu no início do ano, não volta mais, o Pax morreu e eu ainda não consegui chorar pela falta que ele me faz.

A D. Ilda morreu e eu fui a única a escrever no livro de condolências da Servilusa, eu fui a única a chorar, a chorar como uma criança, a chorar como quando ela me consolava na sala do papel de parede almiscarado (o Valter e a Teresa a falarem dos seus gatos, preocupados com os gatos, que estavam sozinhos há muito tempo, e eu a chorar ao lado do caixão da D. Ilda, e ainda bem que a D. Ilda me deu, era eu tão pequena, o vestido de princesa cor-de-rosa; a Teresa já nem se lembrava dele, eu escrevi sobre o vestido de princesa cor-de-rosa no livro de condolêncioas da Servilusa, mas cada um com o seu talento, a Teresa distingue o miado do gato persa em qualquer lado do mundo; a Teresa chorou pelo gato mas não pela D. Ilda, e eu não chorei ainda pelo Pax).

E o meu pai voltou-me a morrer outra vez, a semana passada, o meu pai voltou a morrer, quem é que podia acreditar - é tal e qual como a história da porta aberta, quantos pares de pés passaram por ela e só viram uma porta fechada, igual a tantas outras - que dois pintores partilhavam o mesmo estranho apelido e nem sem sequer eram parentes; o meu pai voltou-me a morrer esta semana, e eu ainda não fui ver o meu avô, não voltei às Finanças do Barreiro para entregar nova declaração do modelo 1 do IMI, nem passei os recibos do condomínio (ou marquei a reunião ordinária).

E todos os dias, todos, todos os dias, desde o último dia do ano, eu lembro-me de ti,eu lembro-me de ti, lembrei-me de ti,

(sabes, eu nunca me vou esquecer de ti)

sobretudo quando abri a porta aberta.


[post 777]

terça-feira, janeiro 29, 2008

O portageiro feliz

A Teresa diz que não conhece mais ninguém assim, que se dê ao trabalho, para quê, que bem há-de vir ao mundo, nenhum, nenhum mesmo, muitas vezes é assim é tão raro, só que há mais gente como eu, a Magui vê trevos de quadro folhas do parapeito da janela do seu segundo andar, e eu vejo histórias que me atropelam porque precisam de ser contadas, cada um com o seu fardo, cada qual com a sua sina.

Mas se nada se ganha, também não se perde coisa alguma, não custa muito, um minuto basta para que o mundo dê um soluço (e geralmente alguém tropeça nesse instante). E eu aprendi, eu sei lá bem com quem é que aprendi isto, que devo parar, para recuperar o fôlego, para esticar as pernas e imediatamente a seguir ouvir o estalido do meu joelho doente, devo impor-me uma pausa e pedir ao coração que não me saia da boca para fora, eu devo parar. E às vezes, sou travada, não sou eu que decido parar – às vezes paro para memorizar as janelas do 120 da Duque de Loulé e sou abalroada por gente com pressa de apanhar o 22 –, mas consigo congelar o curso natural das coisas, nesse instante não se ouve senão o ruído fininho do silêncio, apesar de os escapes, esses, continuam a emitir mais CO2 do que o estilete de papel que levo à boca, e que me queima os lábios, e nisto vem um ganido do violino desafinado à saída do túnel da República, e o mais incrível de tudo é o sorriso dourado, doce, eu revejo-me naquele sorriso, do homem que pede esmola à chuva por entre a fila de para-choques sujos.

O melhor dos meus dias não tem a ver com os sapatos caros que compro quando estou triste, esvaziada, e que depois me torturam o calcanhar, mas que me fazem a coxa e a barriga da perna perfeitas, deliciosas, por vezes, não é mais do que isto, por acaso, às vezes estou atenta no instante em que coisas raras acontecem (e a minha mãe coloca mais um trevo de quatro dentro da página de algum livro da biblioteca, ao lado dos olhos atentos de vidro das bonecas com pele de porcelana), e raios me partam, às vezes até me passa pela cabeça tirar o estilete de papel, e ter lábios perfeitos, sem quimaduras.

A Teresa diz que não conhece mais ninguém assim. Que fale com os portageiros. Mas quem é que se vai dar ao trabalho (e eu sempre com esta – é a pior profissão do mundo), até o motor do vidro eléctrico resmunga a cada área concessionada, desce a contragosto, e o Multijet ronrona lá à frente, dou-lhe uns segundos de descanso, e é por estas e por outras, que, por mais jeito que dê, que mais jeito que viesse a dar, eu nunca vou ter colada uma caixa da Via Verde atrás do espelho retrovisor, eu estico o braço e sai pela borda fora o cartão da águia azul, entre o polegar e o indicador, isto é maquinal, não dura mais que uns segundos, mas o que é que custa – às vezes custa, quando a alma dói –, um sorriso, olá boa tarde, passou bem? (e por vezes sinto-me um operador de call center, mas nunca me sai forçado, e sorrio à espera do que está para vir).

Há dias, raros, rarefeitos, incríveis, em que o portageiro sorri também. E diz mais do que um murmúrio inaudível que deveria soar qualquer coisa como boa viagem. E quando isto acontece, continuamos a viagem, e ela é mesmo mais prazeirosa, e pisamos o tabuleiro metálico da ponte sem que nos importe o zumbido do vento que vem dos segredos do Tejo; quando assim é, seguimos um pouco mais felizes porque o portageiro também o é.

No tabuleiro da Ponte sobre o Tejo, na cabine 14, tem que se pisar o Bus, seguir sempre pelo Bus, o portageiro feliz ganha a sua vida, fechado num aquário de um metro quadrado, e é mais feliz do que os escravos que me abalroam quando algo me obriga a parar, é mais feliz porque sim, sem dinheiro amealhado em horas e pestanas incineradas em frente a um monitor, sem casas espaçosas, postos de trabalho ergonómicos, sem qualquer motor de alta cilindrada estacionado na rua onde de certeza brotam trevos de quatro folhas.

Olá, boa noite, como está? (os olhos ainda marejados pelas árvores arrancadas ao solo para passar o metro da margem sul do Tejo, se calhar um suspiro por ele ser a primeira visão depois da lenha cortada para cima dos carris).

Há tanto tempo que não passava por aqui, está tudo bem consigo? (espreita para o banco de trás, a Carolina dorme). A menina está tão crescida. É linda…

Ele não sabe que eu me encostei à faixa da direita de propósito, que arrisquei, um tiro no escuro (a minha mãe encontrou mais um trevo, à noite), pisei a palavra Bus durante mil metros, porque a história do portageiro feliz tinha que ser contada.

Ele não sabe que eu acredito que ele saiba perfeitamente quem sou eu, apesar de só lhe ter esticado o cartão da águia azul três vezes na cabine 14 da Ponte sobre o Tejo.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Deusdado


Si Deus Nobiscum quis contra nos, se Deus está comigo quem está contra mim,

[Tenho quase a certeza, descambou, até pode ser que não, mas tenho quase a certeza, descambou]

debaixo da Ginkgo, porquê debaixo Ginkgo, logo a Ginkgo, na cama, depois do fim, sem perceber porque é que Deus nos abandonou, porque é que perdi o nosso filho debaixo da Ginkgo, porquê debaixo da Ginkgo, aquela do nosso jardim, justamente quando ela dourava o chão de Lisboa, e eu à cata da folha mais pequena sem sequer perceber que o estava a perder debaixo da copa da árvore sagrada que fazia sombra aos dinossauros à milhões de anos atrás, à procura da folha da sorte para ganharmos o Euromilhões e podermos ter a sala grande com três janelas duplas do projecto da Teresa, se ganhássemos o Euromilhões eu continuava a querer viver na Almirante Reis, com vista para o Castelo e para o Intendente,

[Depois de levantar os olhos do relatório da urgência, viu-me de olhos raiados, narinas muito abertas, jugular a querer rebentar no pescoço, quero deixar de respirar também, se eu pudesse ter dito alguma era quero deixar de respirar, faz barulho demais se eu respirar, 30 segundos sem respirar, deixar ribombar que já descambou e enquanto isso não respiro, maxilares cerrados, pescoço esticado, nariz empinado, pose de Estado, punho cerrado e unhas cravadas na carne dentro do bolso do casaco que tem o forro descosido, depois de me ver assim, voltou ao relatório, não para escrever que tinha descambado, só para ler, e pela primeira soube que o meu nome era Diana, Diana, repetiu Diana vezes de mais, só se lembrou que era importante saber que o meu nome era Diana antes de me dizer que o meu filho tinha descambado]

eu que gosto tanto das Ginkgos, e agora como vai ser a vida sem as Ginkgos douradas no Inverno, na Almirante Reis não há Ginkgos, só tílias, e lódãos, melhor assim, antes disto, um silêncio absoluto, horas, instantes, preces, todas as promessas foram feitas, a todos os Santos, foram invocados todos os Orixás, se Deus está comigo não me vai fazer isto, porque é que ele nos havia de abandonar,

[ela está muito nervosa, pelo amor de Deus tenha cuidado a tirar-lhe o sangue, porque ela está muito nervosa, e eu muda, sem respirar, de cabeça encostada à anca da enfermeira que chorou pelo meu silêncio, pelos meus olhos raiados, pelo meu pescoço esticado, a enfermeira que prendeu no quadro de cortiça da urgência, com pionaises dourados, o desenho que a Carolina fez na sala de espera da urgência]

só um ganido de dor por nunca mais poder contar com as Ginkgos para nada, nunca mais vou poder gostar das Ginkgos, lamento, não é possível, e se Deus está connosco quem é que tem a ousadia de estar contra nós, fico-me pelos eucaliptos, eu sempre gostei mais de eucaliptos, e de pombos, eu estava a perder o nosso filho debaixo da Ginkgo e as pombas do nosso jardim não me vieram à mão, Deus está comigo, deu-me todos os sinais, não, sinais não, são prenúncios, quando é um aviso de perigo é prenúncio, as pombas que não vieram ter comigo, e o nevoeiro gelado que caiu sobre nós, e logo a seguir a febre da Carolina, e lá em casa, sem eu saber ainda, a rosa de Inverno que perdeu todas as pétalas sem qualquer explicação,

[mas o título do post era Esperança, e Deus está sempre comigo de mãos dadas, não há plafond de milagres por ano, pois não, há milagres sempre que é preciso, eu troco o meu cabelo por este filho, ela está muito nervosa, tirem o sangue com cuidado, não a magoem, e se ele ainda cá estiver eu troco o meu cabelo por este filho, chamo-lhe Deusdado ou Teófilo, a seringa espetada no meu braço, o torniquete de borracha e o meu braço a parecer uma perna gorda de recém-nascido, cabeça encostada à anca da enfermeira que chorava baixinho, e de repente, a Deodata, e aí sim era um sinal – estás aí, Deus? –, um sinal e não um prenúncio, a Deodata, de cabelos vermelhos até ao rabo, vermelhos sangue e a raiz do cabelo muito branca, a Deodata que fez nascer a minha primeira filha, que quando ela sufocava enredada no cordão umbilical e fazia disparar todos os alarmes da maquinaria a que eu estava ligada, colocou aqueles cabelos vermelhos ao lado da minha almofada, enquanto corria para o elevador, e cantava para mim, a Deodata a garantir-me que estava tudo bem, ia ficar tudo bem – estás aí, Deus, consegues ouvir-me?]

na pala do sol do Idea, onde todos os dias confirmo se trago remelas coladas às pestanas, se o rímel não borrou a pálpebra, e a folha da sorte, amarela fluorescente, minúscula, em forma de borboleta, de leque, não sei, espalmada, não sei porque a trouxe, porque andava à procura dela sem perceber que estava a perder o meu filho, as Ginkgos este ano ficaram douradas fora da hora, tarde demais, tanto melhor, e no Outono os Jacarandás voltaram a florir só para mim, Deus não me abandonou, em Novembro os Jacarandás floriam de novo e eu certa que só o faziam para mim, eu a ver sinais de Deus no lilás da cinzenta 5 de Outubro, os Jacarandás a dizerem-me que só por mim me davam a esperança de um novo começo, de um recomeço.

[todos os sinais, todos os prenúncios, todas as promessas, todos os santos com cera derretida ao seus pés, eu a falar com o meu pai na casa-de-banho do Hospital, eu a sangrar e a pedir-lhe para não me deixar mal, que ele sempre foi bruxo, a pedir-lhe para me deixar ficar com este filho dentro de mim, o Santo António da mãe do Stucky preso dentro da minha mão em jeito de protecção, o mundo soluçou naquela tarde, o abraço da Teresa depois do fim, os cigarros da Hermínia à porta da Maternidade, os bebés do ano a nascerem, a adolescente a chorar de dor na sala de espera, contracções de seis em seis minutos, o Leonardo ao telefone a garantir-me que a culpa não era minha, e uma lágrima a cair no linóleo, depois as lentilhas do Stucky antes das doze badaladas, a Ginkgo não podia ter feito nada, debaixo da Ginkgo, daquela, não podia ter sido debaixo daquela, se Deus está comigo, não há quem tenha a coragem de estar contra mim, porque é que ele me abandonou, deu-me todos os sinais, mas descambou.]