terça-feira, julho 19, 2011

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Numa consulta bianual de rotina, na linha de montagem de uma salinha minúscula de uma oftalmologista indiferenciada, num hospital privado qualquer nos subúrbios da cidade, a médica não perdeu mais que três minutos a espreitar por uma lente potente os meus olhos, emoldurados por gigantescas pestanas encaracoladas.
Congratulou-se pela acuidade de ave-de-rapina que ainda traziam mais de três décadas depois de se terem expandido pela primeira vez com a claridade de um dia capicua de Julho, espantou-se depois, por breves instantes, com os mil cristais que existem nos olhos azuis da minha filha que lhe transmutam a cor com recurso a toda a paleta do arco-íris conforme os seus estados de alma.
Voltou aos meus, castanhos da cor do mogno, iguais a tantos outros que haviam passado por ali desde o início da manhã, e deixou o alerta para a vigilância apertada em relação ao sinal de sangue que se colou à íris do meu olho, como um apêndice, há tantos anos como aqueles que trago em mim, desde aquele dia do calendário gregoriano em que um dois se colou a outro dois num ido sétimo mês. E garantiu que, fosse esse o meu desejo, um mero procedimento em ambulatório restituiria a candura ao globo ocular do meu olho direito, como uma borracha humedecida pela ponta da língua.
Poderia ter dito à médica indiferenciada, no hospital privado qualquer do subúrbio da cidade, que partilho o sinal de sangue com a mulher de quem herdei o formato e a cor dos meus olhos, o sobrolho levantado em sinal de quem não está a gostar do rumo da conversa, o olhar grave e por vezes distante, o beicinho proeminente de quem tem sempre alguma coisa a dizer sobre todo e qualquer assunto, o corpo obscenamente arredondado em forma de pêra, o fascínio por coisas brilhantes e bonitas, e, provavelmente, sem lhe chegar aos calcanhares, qualquer coisa da genialidade desse ser maior, de seu nome Isaura.
Poderia ter posto mais achas à fábula e dizer-lhe que apesar de ter nascido sessenta anos depois de Isaura uma coisa incrível aconteceu entre avó e neta, porque eu trouxe em mim o mesmo sinal que ela tinha tatuado no olho direito.
E a história ganharia contornos sobrenaturais quando eu desvendasse que Isaura não nascera assim, como eu, que só se vira marcada de sangue por ter picado o globo alvo, branco como a mistura de todas as cores, nos anos 30, numa roseira no jardim de uma casa senhorial do Barreiro que o seu pai, António, teimara que um dia havia de oferecer à mãe quando veio para junto do Tejo secar bacalhau sob o olhar atento dos golfinhos que ali animavam a paisagem. Ou assim me contaram – se calhar é lenda, foi história inventada para eu poder agora estar a escrevê-la sem detalhes. A do espinho, da roseira, da Quinta das Canas, a praia de Copacabana no Barreiro.
Mas herdei também o tom teatral do meu pai, que hoje não está comigo, apesar de fazer 59 anos. E que está aqui comigo, neste momento, ao meu lado.
Disse: é natural que o sinal ali esteja e que seja, passo a redundância um sinal de tudo o que havia de se passar na minha vida. Lamento, mas não há fogo algum que o queime, não há feixe de luz que o apague por magia.
Ele está ali, no sítio onde está, nem mais abaixo, nem mais para um lado ou para o outro, para que todos os dias eu me lembre que já vi demasiado, que eu nasci porque havia de ter que ver tudo de bom e tudo de mau.
Riu-se. Tem nome a patologia. Está descrita, disse a médica indiferenciada no hospital privado qualquer no subúrbio da cidade. Tem tratamento, acredite, o laser de que falei. É muito simples, indolor, caso queira podemos marcar ainda esta semana.
Pois fique com a sua, e eu fico com o humor vítreo do meu olho direito intacto, e com a certeza de que tenho um sinal de sangue porque já vi demasiado. Talvez mais do que poderia aguentar. Por vezes, sinto que foi mais do que eu podia aguentar sem ter que viver com os dias com o reflexo do espelho a lembrar-me, no olho direito, que descaiu um pouco face ao esquerdo, que já vi demais.
Seguramente, vi mais do que a maioria se poderá gabar de ter visto a vida inteira. Vi tudo aquilo que me estava destinado. Nada mais, nada menos. E não vai parar por aqui, sei-o bem.
Por vezes, senti-me a cegar da brutalidade das coisas que já vi.
À noite, quando tenho os olhos bem fechados, e consigo até distinguir do zumbido agudo do silêncio o lamento do frigorífico na outra ponta da casa, por vezes volto a ver o que nunca devia ter visto. O que gostava de não ter visto, e que me ensanguentou a vista como uma ferida aberta que não sara.
Mas há também o clarão de beleza de tudo o que já me foi dado a ver. Por estes olhos.
Mas eu já vi demais. Lamento tantas vezes o meu fado.
E o sinal de sangue sempre ali, uma pinta encarnada perfeita fundindo-se com o castanho do meu olho direito, a lembrar-me todos os dias aquilo, tudo, que já vi. Como uma tatuagem.
Sou constantemente perseguida por sequências de 16 a 24 fotogramas por minuto (quantos fotogramas haverá num sonho a dormir e quantos há num sonho acordado?). E se acordo a gritar pela minha mãe – e é sempre pelo nome das mães que chamamos num momento de maior aflição –, a meio da noite, torcida no sofá, é porque, até de olhos fechados, eu vejo mais do que devia e queria. Porque eu vejo até o que não me foi dado a ver, e o que me foi deliberadamente ocultado por ingénua protecção. Como um superpoder, um dom que vira maldição.
Eu vi um revólver Smith & Wesson, calibre 38, o S enrolado no W, à cabeceira de um octogenário. Vi tudo por detrás da porta e, por vezes, vejo tudo sempre a mesma, atrás da cortina de voile branco, que afasto com a mão, como quem espreita pelo buraco da fechadura. E de todas as vezes que o vejo, falho sempre, e não consigo impedir o disparo. E acordo a gritar pela minha mãe.
Agora, mais recentemente, vejo, dia sim, dia não, árvores mortas e um mato de ervas daninhas, ruínas assombradas e um lago cheio de peixes cor-de-laranja mortos, a boiar, num recanto onde os golfões de água não chegaram a cobrir as águas – que vêem tanto como eu – de vergonha.
Antes disso, vi o meu corpo a expulsar um filho tão amado, tão desejado, na casa de banho imunda de um qualquer hospital privado, este não no subúrbio mas sim no centro da cidade, e vi também a cegueira dos olhos brancos de um qualquer obstetra indiferenciado, quando lhe mostrei, desesperada, um papel ensanguentado com o meu filho morto, e soube que ele não veio, nem virá a ser marcado com um sinal de sangue no olho direito.
Sorte dele, mas não me venham dizer que há uma máquina que apaga a marca de sangue que vive e cresce no meu olho direito.
Sexta-feira faço 33 anos, a capicua perfeita e que só será superada pelos 77, que não sei se chegarei a ver nesta terra (há cláusulas escondidas e escritas a tinta invisível a quem é dado tudo a ver por apenas dois olhos; e é bom que me habitue às regras do jogo, que podem, a qualquer altura do caminho, ser alteradas).
Vi o meu corpo expandir-se até quase aos cem quilos, carregando no ventre estriado os meus dois filhos – e eles são a coisa mais bonita que eu já vi nesta vida. Da primeira vez que os vi, a ambos, os meus olhos – podia jurar que assim foi – não suportaram tanta beleza e choraram as lágrimas mais felizes.
Vi-me humilhada, enxovalhada, vi pérolas deitadas a porcos imundos. Vi um destino fabuloso a escorregar-me, como pau ensebado, à frente de uma vista cansada e marcada de sangue que já viu demasiado.
Vi a minha mãe envelhecer ao meu lado, vi-a vergar-se como um bonsai perante a adversidade – árvore que verga não parte, assim me contou ela, e é por isso que partilhamos o amor por quem morre sempre de pé. E por quem larga raízes fundas por onde passa.
E vi como ela me defende dos demónios que nunca supôs que se atravessassem à minha frente, protegendo-me sempre, primeiro a mim e depois aos meus, dos grandes estrondos que rebentam a distâncias demasiado próximas de nós, soltando estilhaços afiados. E ela, colocando-se sempre à frente do estoiro, com o seu escudo de guerreira celta, de olhos muito azuis já turvos, de quem viu também mais do que uma vida podia ver, testa enorme, e molares pronunciados.
E aprendi como se faz, como ela faz, porque ninguém faz como ela, porque um dia terei que fazer de embondeiro como ela sempre fez por mim, desafiando os deuses e levando os filhos em segurança ao céu, ou onde eles quisessem ir. Se for preciso, até ao Inferno. Como ela fez, como ela faz sempre que o infortúnio se atravessa à minha frente.
E dando-me depois a mão, sempre ao meu lado, cantando comigo sem vergonha para quem quiser ouvir, quando caminhamos juntas até às portas do paraíso. E já lá estivemos bem perto, tão, tão perto.
Vi-me envelhecer, os fios longos de cabelo tingirem-se de branco e quebrarem-se pequenas rachas na porcelana outrora fina do meu rosto. Eu vejo tudo, tudo mesmo. Pressinto o nascimento das flores e vejo-as brotar a cada segundo que passa. Vejo diariamente as minhas mãos a deformarem-se mais um pouco numa precoce herança de doença óssea da família beirã, desconfiando que já é tarde para aprender a tocar piano.
E, todas as manhãs, vejo através do amor o que há de mais belo nesta passagem. E o sinal do meu olho direito também está lá para me lembrar.
Acordo a contragosto, muitas vezes depois de ir atrasando a hora, em intervalos de cinco em cinco minutos, e fico ali parada, o sol a cegar, da janela, imagino os melros e os pintassilgos que não vivem lá fora e fico a olhar para o grande amor da minha vida.
O gato Pi geralmente vai-me mordiscando a mão que lhe afaga a cabeça, e o João, a dormir como um anjo, do lado direito da minha cama, sempre colado a mim, como o meu sinal de sangue.
Eu já vi demasiado, bem sei.
Mas o melhor ainda está para vir.