segunda-feira, novembro 26, 2007

Carolina e as luzes de Natal




Foi assim desde sempre - mesmo antes de as minhas cordas vocais vibrarem da boca para fora cascatas de sons cheios de nexo e significado, ou de o meu sistema nervoso central processar pouco mais do que um mundo feito da água de colónia Bien Être da minha mãe muito loira, do Âmbar e as madeiras da roupa da minha avó muito morena, e da lixívia das mãos da minha outra avó, que me embalava todas as noites no seu regaço, ao compasso do seu batimento cardíaco, sentada no sofá de napa laranja: chegava Dezembro, a porta do Ford Cortina branco do meu avô Ralha abria-se, e da Praça Pasteur seguíamos em romaria para ver o Natal nas ruas de Lisboa.

O pinheiro comprava-se junto à linha de comboio do Arreeiro, e debulhávamos um pacote de algodão hidrófilo pelas fagulhas, colocando bolas de vidro coloridas nos ramos. A minha avó, que quando não cheirava a lixívia, trazia consigo o aroma de roupa lavada no tanque de betão com sabão azul e branco da Clarim, tirava do porta-moedas uma nota de cinco mil escudos dobrada em quatro, e ditava que o seu destino era para comprar presentes para os meninos. No chão dos bazares da Avenida da Igreja, eu comprava um estojo de canetas da Molin, e tinha ainda dinheiro suficiente para comprar um "Meu Pequeno Ponéi" (lá em cima, na Erasmus, o meu tio Zé já teria comprado a tão desejada Barbie Cintilante, descrita ao pormenor na carta escrita ao Pai Natal).

O cabelo muito branco da minha avó muito morena, sentada no banco da frente do Cortina, iluminava-se de muitas cores quando íamos ver o Natal, e quando ela olhava para o banco de trás, os seus olhos, eu não sei se eles não sorriam mais do que os meus, colados à janela esquerda do Ford Cortina, as mãos em pose de ventosa no vidro e a boca aberta de espanto, dos sinos, das estrelas e dos anjos e da alta voltagem do Natal.

Nascida e criada no Bairro de Alvalade, apenas uma vez ao ano eu descia com a minha avó muito morena a Avenida da Liberdade. Depois, subíamos o Chiado, voltávamos atrás para o Martim Moniz, seguíamos em frente pela Almirante Reis, torneando a João XXI, e voltávamos à Lisboa que eu conhecia, à Avenida de Roma e Avenida da Igreja, mas o Natal, as luzes mais bonitas, só as podia ver do lado de dentro do Ford Cortina.

Com três anos, a minha filha Carolina, nascida primeira semana de Dezembro, já domina conceitos abstractos tão complexos como cidade, país e região autónoma. Tem todos os sonhos deste mundo e sabe que quer ser “artista das tintas” quando for grande, e que, daqui a duas semanas, assim que soprar as quatro velas do seu bolo de aniversário do Noddy e da Ursa Teresa, a vida lhe reserva feitos notáveis, como aprender a andar de bicicleta, ou ir dançar na televisão (não sei como descalço esta bota da televisão).

Trauteia Mozart e Rodrigo Leão, mas sabe-se lá porquê, também vem para casa a cantar o jingle das Chiquititas, ou as canções carregadas de conotações sexuais das mini-Doce, a minha Carolina possui uma memória notável - sabe que comeu favas há um ano nos Açores, e já distingue algumas letras, nos anúncios da publicidade, entre as quais, as que compõem o nome do seu ídolo Noddy.

Mas não é só: a morte também se aprende em pequenino, e sempre que a minha Carolina vê um pombo esmigalhado na estrada (e nesta família, gostamos de pombos e também de eucaliptos - malfadados e mal-amadas criaturas do reino animal e vegetal), diz "esta pomba está estragada", ou mais recentemente, porque já é uma pessoa em miniatura e não um bebé, diz "esta pomba está morrida".

Sabe que o gato Artur está no céu, ao pé da Lua (ainda hoje não gosta de ir ao consultório do Veterinário porque sabe que, no ano passado, o Artur entrou e não voltou mais para casa), de vez em quando, se a vê muito cheia no alto de um céu límpido, jura que avistou o nosso gato laranja lá em cima ao pé das estrelas.

Não pergunta pelo avô Ralha, o motivo pelo qual, supomos nós, ela quer, quando for grande, ser "artista das tintas". Apesar de não lhe termos dito que ele morreu, que ele partiu, que foi para o céu dos artistas, ou qualquer outra desculpa esfrangalhada; sabe-se lá porquê, ela sabe que ele não volta mais, mesmo que ninguém lho tenha dito ou explicado o seu súbito desaparecimento da face da terra, portanto, concentra a sua atenção e fixa os seus olhos muito azuis nos quadros que ele pintou e que nos deixou, e o seu preferido é um retrato de Fernando Pessoa, que diz ser "aquele senhor muito simpático".

No seu pequenito cérebro em constante ampliação, a Carolina sabe que a Câmara de Lisboa caiu quando estávamos de férias nos Açores (eu sosseguei-lhe o espírito aflito garantindo que a Câmara nao se tinha aleijado), e repete a lenga-lenga, sempre que lhe perguntam o que é que a mãe faz na vida: "A mamã trabalhava no Público, depois foi para a Câmara Municipal, mas a Câmara caiu (e não se aleijou), e depois foi para a casa cor-de-laranja (sede de campanha do PSD, onde confraternizou com as mais altas figuras do partido) e agora está na Cunha Vaz".

A sua percepção do mundo não é muito diferente do que ele é, apesar de visto à altura de um metro e dez centímetros, e de as fadas terem sempre um papel importante em tudo o que acontece.

Um dia destes, no autocarro, zangou-se do alto dos seus três anos com um grupo de púberes estudantes de arquitectura, que desfilavam baboseiras sobre a cidade, e que apontavam e se riam para uma empena cega tapada por uma tela publicitária do Cristiano Ronaldo. Reza a lenda, contada pelo meu marido, porque não a presenciei, que pontapeou um dos jovens que anunciava que o que era bom era uma cidade cheia de arranha-céus, e que o mandou calar, porque a mamã é que trabalhava na Câmara Municipal.

Sei lá eu se é de eu lhe contar histórias sobre um grande arquitecto chamado Ventura Terra, ou um outro, o Keil do Amaral, de lhe estar sempre a apontar as casas bonitas, muito antigas como aquela onde vivemos e que é mais velhinha que o bisavô Ralha, para que ela guarde tudo, porque antes de ela chegar à idade adulta já não existirão, apenas na memória de quem as guardou.

No mês do seu aniversário, dia da Padroeira de Portugal, a Carolina já sabe que entramos em romaria no Fiat Idea cinzento escuro, e que vamos ver o Natal. É sempre assim. Foi sempre assim, graças à minha avó muito morena que me morreu cedo demais. Todos os anos, eu tenho a minha avó comigo quando desço a Avenida da Liberdade e vejo o Natal pendurado nos Plátanos centenários do Boulevard da minha cidade.

Moramos no Marquês, mas a volta é a mesma de há vinte nove anos atrás (sem o Cortina, sem a minha avó muito morena). Porque foi sempre assim.

Descemos a Avenida da Liberdade, subimos o Chiado e, como numa Montanha Russa, voltamos a descer para ver a árvore de Natal Gigante do Terreiro do Paço (em tempos, quando a convencia a comer a sopa toda para ficar enorme como a árvore de Natal do Millenium BCP, ela assustou-se porque não queria ter uma estrela luminosa no cimo da cabeça), subimos depois o Martim Moniz, se calhar, ainda paramos na Verbena de Natal da Alameda e, com uma nota de cinco euros, temos meia hora garantida de luz, cor e música, de um carrossel à moda antiga, depois, se ainda sobrarem dois euros, trazemos um pauzinho com algodão doce cor-de-rosa, e vamos ver o resto do Natal, João XXI, Praça de Londres (antes, uma voltinha só à Praça Pasteur para eu me lembrar do Cortina e da minha avó muito morena), Avenida de Roma, Avenida da Igreja, e depois marcha-atrás para o Marquês.

Ontem, a Carolina pediu para ir ver o Natal. E saímos, chave na ignição, travão-de-mão desengatado, à procura dele pelas ruas de Lisboa, já o vimos nos Centros Comerciais, nos anúncios do Intermarché, e da Pópota e Leopoldina, mas nas ruas não o encontrámos.

Procurámo-lo em Alvalade, e nada, seguimos pela Almirante Reis, tudo às escuras. No Rossio tínhamos que o encontrar, pensámos. Não. Timidamente lá o conseguimos vislumbrar na Rua do Ouro e no Chiado. Os olhos e as mãos da Carolina não se colaram ao vidro. Não deu pulinhos e risinhos de felicidade absurda. Pelo contrário, lançou:

"A Lisboa está feia, não está, mamã?", e esta pergunta doeu-me mais do que um parto sem epidural.

Não se mente às crianças, não se deve mentir às crianças, está feia sim, filha - no meio, um suspiro, uma pausa, para a voz se recompor. As mães não choram pelas luzes de Natal que não se acenderam, que este ano não se vão acender.

Depois do passeio de ontem, a minha Carolina acha que o Natal não vai chegar a Lisboa. Só aos centros comerciais. Que a cidade está feia e sem magia pelo ar. Tem razão: à porta de nossa casa, em pleno Marquês de Pombal, há lixo, há folhas mortas amontoadas nas sarjetas e por debaixo das rodas dos carros estacionados, há obras, passeios esburacados, carros em segunda e terceira fila, apesar de estarmos a 20 metros da Divisão de Trânsito da PSP, e da propaganda barata da Tolerância Zero.

Ontem, colocámos luzes de Natal no quarto da Carolina para ela não adormecer de coração murcho. Porque a cidade não tem luz, porque este ano nenhuma VW pagou as iluminações, prometemos ir à loja chinesa mais próxima e comprar luzes para as janelas da nossa casa no Marquês. Em tempos, um treinador de futebol pediu aos portugueses para colocarem a verde rúbea nas janelas, numa febre patriótica como não se via desde os tempos da ditadura. Este ano, eu peço aos lisboetas que acendam luzes pelo Natal.

Hoje, porque a minha Carolina tem todos os sonhos do mundo, porque um sorriso de uma criança vale mais do que ordenados milionários de assessores e adjuntos, vamos a Oeiras ver o Natal, onde me dizem que o espaço público ainda não morreu.

Declaração de interesses - De Maio de 1997 a Março de 2007, fui Jornalista do diário Público, sete anos na secção de Economia, os últimos três na secção Local Lisboa. De Abril de 2007 a Maio de 2007, fui Assessora de Imprensa do Vereador António Prôa, responsável pelo Pelouro do Espaço Público e Espaços Verdes de Lisboa. A Carolina, essa, não percebe nada de política. Nesta foto, em 2005, fotografada por Diana Quintela, para o Diário de Notícias, junto à árvore de Natal do Millennium BCP, no Terreiro do Paço, para uma peça jornalística sobre as iluminações de Natal em Lisboa.

quarta-feira, novembro 07, 2007

O calcanhar (uma espécie de carta para ti)

Não julgues que já não me dói o passo, que nunca mais me vai doer o passo, às vezes esqueço-me de trazer pensos na mala, o calcanhar fica esfolado, e vou a mancar pelo caminho.

Sabes, a Sílvia já não é loira, mas até já há quem nem se lembre de que, em tempos, a Sílvia já foi loira.

O presidente do banco fazia o seu melhor, tentava refrescar-me a memória à força, dizia, não podia ser mais gráfico – aquela jornalista ruiva que estava à minha frente –, e eu olhava para cima à espera que a nuvem desenhada no céu me revelasse o rosto da jornalista ruiva, olhava para cima como aquela outra com quem jantei debaixo de um tecto desenhado pelo Keil do Amaral, que falava, falava, tagarelava como poucos, mas não me olhava nos olhos enquanto dialogava sobre banalidades com fervor, fixava os olhos verdes no tecto, como se estivesse a falar com Deus, ou talvez com o fantasma do Keil do Amaral, eu meses depois fazia o mesmo, franzia o sobrolho e depois olhei para cima como ela, na esperança de me lembrar da ruiva (eu sempre adorei ruivos, como não me lembro de uma jornalista ruiva?), e só depois percebi – a Sílvia já não é loira; é ruiva.

Mas eu nem reparei, porque para mim, a Sílvia vai ser sempre loira. O que ninguém repara, o que provavelmente ninguém reparou, porque é uma pequena disrupção da realidade aparentemente irrelevante, coisa da moda, é que a Sílvia já não traz na mão direita o cachucho de ouro branco com uma pérola reluzente de que eu tanto gostava.

Todos mudámos, e a cor do cabelo da Sílvia é o lado menos visível e menos chocante de toda a mudança. Eu estou à direita do presidente, e à minha frente estão os meus amigos, eu não estou ao lado deles, e na sala do hotel de cinco estrelas perco a manhã a contemplar tudo o que mudou.

A maçã-de-adão do Pedro continua nos seus rodopios, aquilo fascina-me verdadeiramente como poucas coisas, a João já não tem um dente encavalitado, mas eu revejo de soslaio no rosto o mesmo sorriso de boneca de porcelana com que ela me recebeu no dia em que me ensinou a fazer as páginas da bolsa do jornal de referência. E a Sílvia já não traz no dedo um pedaço do fundo do mar. Ah, sim, já sabes desde o segundo parágrafo – é ruiva.

Não julgues que eu perdoo tudo o que me aconteceu, que compreendo e aceito o meu destino, e que não nunca mais me dói o passo, que nunca mais me vai doer o passo.

Eu só queria aprender a tocar piano, era capaz de jurar que desta vez nasci só de propósito para tocar piano. Se quiseres, eu canto-te as mil canções que sei de cor, eu embalo-te baixinho até se pedires, mas só não me perguntes como é que eu sei tantas músicas de cor, porque eu não te sei explicar, não te sei explicar que tudo faz sentido para mim.

Mudamos milimetricamente todos os dias. A Sílvia já não traz o anel no dedo direito, a João já não tem o dente encavalitado, o Pedro até já é editor, a tua barba, eventualmente, sufocou-te mais um bocadinho (eu trago na cabeça que essa barba te mata lentamente; se ao menos fosse tudo tão fácil como cortar a barba). Mas não me digas que eu sou outra, lá porque estou ao lado do presidente.

Continuo a chorar baixinho sempre que um prédio vai abaixo – porque os prédios, e tu sabe-lo tão bem quanto eu, não são só prédios. Eu contei-te a história do prédio que me chamou durante dias a fio, e eu a pensar que estava louca, porque os prédios não têm voz, e quando tu partiste a janela, escondido pela glicínia, enquanto umas vacas coloridas eram licitadas no Parque das Nações por seres perturbadores que desembolsaram milhares de moedas de euro para exibirem uma vaca nos quintais das suas vivendas geminadas, sabes bem como eu tremi quando abriste a porta debaixo do caramanchão, e como eu já conhecia todos os cantos de uma assoalhada onde nunca tinha entrado.

Tu devias saber que eu sofro por cada telhado desmontado, por cada pedaço de entulho no contentor, por cada pedido de informação prévia que entra na Câmara, porque as casas não são tijolos e tabique, não são telhas e madeiras, são pedaços de nós, e sempre que uma casa morre, morre um pedaço de alguém, uma memória que vai a incinerar no Alto de São de João dentro de um caixão de pinho barato; no fundo, todos nós morremos um bocadinho também, uns mais do que os outros, sempre que a cidade muda, e a cidade, tal como nós, e sobretudo por nossa causa, não está em paz.

Eu já guardo milhares de canções em mim, eu guardo as minhas avós em mim, e agora atafulhei tudo, desarrumei a casa toda para me caber o meu pai também, eu só não sei quanto mais canções é que eu posso guardar, quantos mais telhados e fachadas eu consigo trazer em mim – por isso, não julgues que já nunca me dói o passo, como é que não me havia de doer o passo, eu trago tanta coisa em mim, e por vezes não tenho pensos na carteira, e o calcanhar fica esfolado e eu vou a mancar pelos dias fora.

A Sílvia já não é loira, e eu, de facto, já não te envio sms esquizofrénicos, profundos, eu tenho medo dessa palavra, sinto vertigem só de a escrever, quando era pequenita chorava só de ouvir a palavra esqueleto, e profundo, e profundezas, dão-me vontade de chorar.

Vê lá tu como as coisas mudam, um ex-ministro da nossa República, com quem o meu avô fez a reforma do sistema educativo no Robalo (quando as árvores do Robalo eram mais pequenas que a Carolina), repete baixinho, fracções de segundo depois, o discurso de um líder empresarial, voltou a ser criança, sem sonhar que eu reparei na brincadeira. Isto é tudo o que mudamos durante uma vida inteira.

E eu sei de cor milhares de canções, e sei reproduzir também o momento em que gritei pela primeira vez socorro, se quiseres até te digo quando aprendi o que era jurar, ou como fiquei envergonhada, com nove anos, por não saber no último teste de português do primeiro período o que é que era imolar. Ou posso contar-te quando era muito pequenina e descobri o que era a polifonia, e dizer-te que, desde então, nunca mais ouvi a música como um todo.

Dói-me o passo.

Somos camadas, como as músicas. Fazemos sentido como um todo, mas eu só vejo, e só oiço as partes, os detalhes, as pequenas coisas extraordinárias – diz-me quais são as possibilidades de duas pessoas que mal se conhecem, mas que trabalham para o mesmo patrão, sonharem, ao mesmo tempo, com o bacalhau à braz do restaurante Andaluz? Como é que eu não hei-de andar enamorada pelo raríssimo extraordinário?


Eu estou sentada ao lado do presidente. Do lado direito. Falo de obrigações hipotecárias e obrigações permutáveis, até já sei qual é a diferença entre elas, caso alguém queira saber, e tagarelo sobre turbo warrants na pausa do cigarro, mil milhões para aqui e para acolá, se bem que ainda tenho a lata de contar ao inglês com quem falo religiosamente às terças e às quintas-feiras dos milagres operados pelo fantasma da rainha D. Estefânia nos corredores do hospital pediátrico.

Eu continuo a mesma, mesmo que já não te envie sms perturbadores, mesmo que este blogue seja actualizado numa base mensal, a que tem ressentimentos cósmicos com o destino que não se há-de cumprir, a que se diverte a decompor a melodia que toca o oboé, e que por cima dele ouve o clarinete, e que sem esforço algum ouve os ferrinhos e o quinteto de cordas, a que chora nos concertos porque não suporta a beleza da união das coisas.

E, por vezes, não trago pensos na carteira, e levo o calcanhar esfolado pelo caminho.